• Nenhum resultado encontrado

A complexidade do futebol: as múltiplas faces do torcer e a peculiar condição do torcedor

2. AS TORCIDAS ORGANIZADAS DE FUTEBOL

2.1 A complexidade do futebol: as múltiplas faces do torcer e a peculiar condição do torcedor

A última rodada do campeonato se aproximava e, com ela, a definição de um longo período de disputa se anunciava. O panorama não era nada positivo. O objetivo da temporada, o tão sonhado acesso à elite do futebol brasileiro, agora parecia distante. O time que em mais da metade do campeonato permaneceu no desejado grupo dos quatro primeiros colocados, os que ao final seriam agraciados com a possibilidade de disputa da série A no ano seguinte, por sucessivas derrotas, crise financeira, protesto de torcedores revoltados, via seu sonho transformar-se em utopia. A perspectiva de maiores investimentos e alívio financeiro aos cofres já combalidos, de neutralizar a pretensão de superioridades dos rivais e de formar uma melhor equipe no ano seguinte para manter a hegemonia no campeonato regional já não se revelava alcançável. A frustração era compartilhada por todos. Somente uma improvável combinação de resultados tornaria a meta possível: amargando a sexta colocação, precisava de uma vitória, dentro de sua casa, contra o time de maior tradição no campeonato, e contava com a derrota ou empate de seus dois adversários diretos, um deles jogando dentro dos seus domínios e o outro contra um time matematicamente já rebaixado na competição. Ou seja: a crença no sucesso desafiava a lógica e beirava à loucura. Mas loucos por escolha, lá estavam os torcedores do Avaí Futebol Clube/SC. O dia: 29 de novembro de 2014. O momento: 16 horas. O local: Estádio da Ressacada em Florianópolis/SC. O adversário: Clube de Regatas Vasco da Gama/RJ.

No período do pré-jogo, vive-se um misto de expectativa, angústia e ansiedade para a batalha que se aproxima. A dificuldade da tarefa amplifica os sentimentos, deixando até o mais fanático dos torcedores reticente quanto às chances de sucesso. Mas o que é ser torcedor senão acreditar no impossível? O caminho para a partida de futebol se desenvolve a partir de uma lógica particular de sociabilidade. Os torcedores visualizam no semelhante um reforço do eu. Cumprimenta-se calorosamente o desconhecido, regozija-se com sua presença, o qual por portar a mesma indumentária já demonstra pertencer à grande família. Nos minutos que antecedem a partida entra em cena uma ritualística própria e individual de cada torcedor, todos os tipos de superstições – as mais variadas possíveis – são executadas, na expectativa de concretização dos desejos da mente.

A bola rola e, com ela, o improvável costuma se fazer presente. O início do primeiro tempo não reserva grandes emoções, jogo truncado com marcação intensa de ambos os lados e com ligeira superioridade do time visitante. Até que um lance muda o cenário da partida, o atacante do Avaí recebe um cruzamento dentro da grande área, domina a bola, gira o corpo preparando a finalização e é derrubado pelo zagueiro adversário. O estádio fica em silêncio aguardando a decisão da autoridade máxima em campo. O juiz aponta para a marca de cal: pênalti. Um momento singular no jogo de futebol em que se comemora a esperança. O objetivo ainda não foi alcançado – e por vezes não se alcançará – mas mesmo assim a projeção do gol já toma conta dos torcedores. A euforia é contagiante. O capitão do time toma a bola em suas mãos, ajeita-a com carinho na marca indicativa da penalidade e se prepara para a cobrança. Nesse momento todas as atenções estão voltadas para o ídolo da torcida. Este símbolo opera como personificação do amor pelo clube, uma espécie de divindade cultuada pelos torcedores no universo paralelo do futebol. Ele corre para a bola, chute forte, o goleiro nada pôde fazer. Gol. O estádio destila alegria. A massa torcedora atua como um só corpo, reverberando a comemoração dos jogadores em campo. Esse prazer coletivo, cada torcedor vivencia à sua maneira. Alguns abraçam-se, beijam-se – ocasião especial em que fronteiras étnicas, de gênero e classe são esfaceladas –, outros agradecem a seus deuses individuais, por vezes executam rituais específicos para a ocasião em tom de agradecimento, ou ainda insultam torcedores rivais – o outro –, ainda que não participem do confronto, em uma espécie de exaltação da identidade coletiva. O primeiro tempo acaba. Os resultados de momento são favoráveis. Ambos os adversários diretos na disputa pelo acesso à primeira divisão do Campeonato Brasileiro – Atlético Clube Goianiense/GO e Boa Esporte Clube/MG – vão empatando suas partidas. O improvável se transforma em realidade possível.

O segundo tempo começa em ritmo lento, com ambas as equipes aparentemente já satisfeitas com o resultado. O Vasco da Gama, já garantido no grupo dos quatro primeiros, tem poucas pretensões na partida, além de ter dispensado boa parte de seus jogadores. O panorama da rodada agrada aos torcedores, com o empate dos adversários o sonho já não parece tão distante. O grande golpe sobrevém com o gol do Atlético Goianiense em apenas dois minutos do segundo tempo, em jogo disputado no estádio Serra Dourada/GO contra o Santa Cruz Futebol Clube/PE, time sem nada a almejar na competição e com o pensamento já na temporada seguinte. O desespero é generalizado. Como esperar a virada de um time sem nenhum compromisso com a vitória? Mas o inesperado acontece, e supreendentemente o Santa Cruz empata a partida em apenas seis minutos depois. Ainda é possível, repetem os torcedores, como forma de auto-incentivo. Ocorre que outra grande decepção se apresenta. O Boa Esporte marca

seu gol aos doze minutos do segundo tempo contra a Associação Desportiva Recreativa Cultural Icasa/CE, equipe já matematicamente rebaixada na competição, em jogo disputado no estádio Mauro Castelo Branco Sampaio/CE. Agora a decepção toma conta da massa torcedora. Esteve tão perto... O empate do Icasa a essa altura já parece tarefa impossível, considerando as circunstâncias da partida e aspirações dos times. Aí é que a lógica sai de cena e, mais uma vez, o imponderável dá as caras. Dois minutos depois, o atacante do Icasa faz grande jogada, recebe na ponta direita, invade a grande área, dribla o zagueiro cortando para o meio e finaliza no canto esquerdo. Sem chances para o goleiro: gol. Os deuses do futebol zombam dos idiotas da objetividade. Os torcedores do Avaí, incrédulos no que ouviam em seus rádios, comemoram como se fosse um gol do próprio time. O sonho, em um movimento pendular entre quimera e concretude, novamente está ao alcance dos torcedores. E para reforçar a crença no sucesso, nos quinze minutos subsequentes são marcados mais três gols: um do Atlético Goianiense, vencendo momentaneamente a partida por dois gols a um, e outros dois do Icasa, liderando por três a 1. O objetivo nunca esteve tão próximo.

Mas a conquista não viria assim tão facilmente. Não sem uma pequena dose de agonia com temperos de tortura. Aos quarenta e quatro minutos do segundo tempo, o Atlético Goianiense empata a partida. O desespero vai ganhando terreno à medida que a informação ouvida atentamente no rádio é repassada de torcedor a torcedor. Nesse estágio, qualquer gol da equipe goiana, tendo em conta o pouco tempo restante, inviabilizaria qualquer chance de reversão do placar. O juiz daquela partida, tomado por um prazer sádico, indica mais quatro minutos de acréscimo. A apreensão dos torcedores do Avaí é grande. O seu jogo já acabou, vitória, foi tudo que se pôde fazer. Os momentos seguintes são marcados por um silêncio sepulcral no campo de jogo, ninguém se arrisca a falar para não atrair maus agouros. Todos acompanham atentamente em seus rádios ou se amontoam à frente das TVs dos bares nas dependências inferiores do estádio. A apreensão chega ao fim poucos minutos depois. Aos quarenta e nove do segundo tempo o atacante do Santa Cruz marca o terceiro gol de sua equipe. O êxtase é total, os torcedores do Avaí comemoram efusivamente aquilo que muitos consideraram impossível. O clímax se prolonga por muito tempo, o gozo é intenso e uma emoção extrema toma conta da massa torcedora. Como se fossem um único ser, os torcedores tomam o gramado do estádio, a apoteose, o auge de todo o plexo de sentimentos vivenciados ao longo da partida. Expectativa, apreensão, medo, alegria, desespero, esperança, dúvida, decepção, incredulidade e euforia agora se fundem no prazer supremo da conquista. Não há mais barreiras entre time e torcedor. Este, toma o objetivo alcançado como seu próprio, como uma vitória pessoal que por muitas semanas será fruída à companhia de seus semelhantes e a

contragosto dos rivais. Experiência única que por muito tempo permeará o imaginário da torcida, como uma grande realização conjunta.

A representação da partida do Avaí Futebol Clube/SC nos é útil para a visualização das complexas variantes pertencentes à condição de torcedor e da ampla gama de circunstâncias vivenciadas ao longo do jogo de futebol que tornam a experiência tão atrativa para os torcedores. Estes, muito mais do que expectadores de um espetáculo esportivo, participam ativamente do evento. A ligação com o clube não funciona em uma lógica simplista de fornecedor-consumidor, mas constituída por um conjunto de sentimentos e construída periodicamente ao longo de cada partida. Tal elo é tão forte que integra a própria identidade individual, fazendo parte de uma das muitas versões do eu.

A utilização do termo “torcedor”, por sinal, remonta às raízes do próprio desenvolvimento do futebol no Brasil. Sua aplicação corrente data da década de 1910, época em que passa a ser utilizado por cronistas esportivos, profissionais da imprensa ou literatos, pela mídia de uma forma geral. Nesse contexto, a partir de então, “os torcedores passariam a ser mais precisamente caracterizados e transformaram-se em objetos de reflexão”.124 Com efeito,

aqueles que escreviam sobre o futebol para a grande imprensa passaram a dotar um termo específico para identificar esse sentimento de apoiar alguém ou alguma agremiação esportiva, em detrimento de outra. No futebol, querer a glória dos seus e a derrota dos outros era ‘torcer’. O espectador, ou a espectadora, que gritava, gesticulava, apoiava seu time e ofendia os adversários era um ‘torcedor’, ou uma ‘torcedora’. Fazer parte de um grupo de torcedores de um mesmo cube, ou da seleção brasileira, era fazer parte de uma ‘torcida’.125

Tratava-se, naquele período, de um dos poucos termos utilizados de origem genuinamente brasileira, porquanto o esporte, de ascendência bretã, ainda era profundamente marcado por expressões na língua inglesa.

O cerne da designação passa pela atuação do público feminino nas partidas disputadas. Nesse sentido, consta que o início da prática esportiva do futebol, ainda de certo modo restrito às elites urbanas, era circunscrito aos clubes recreativos. Ainda que houvesse uma proibição de que as mulheres fossem sócias, as esposas e filhas dos sócios podiam acompanhá- los sem cobrança de entrada ou pagamento de mensalidades extras. Nesse caso, a gratuidade

124 MALAIA, João M. C. Torcer, Torcedores, torcedoras, torcida (bras.): 1910-1950. In: HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; et al. A torcida brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 60.

concedida fez com que as partidas de futebol se transformassem em importante palco de convivência social para as figuras femininas da época.126 Ocorre que

algo diferente acontecia com as mulheres presentes nos estádios de futebol. Bem vestidas, usando luvas, chapéus e longos vestidos, as moças presentes nos estádios torciam seus objetos com suas mãos delicadas. Contorciam seus corpos com pulos e gestos, além de soltarem gritos altíssimos a chamar os nomes de seus jogadores preferidos, a grande maioria também sócios dos clubes e possíveis bons partidos. Esse era o comportamento inusitado que tanto chamou a atenção da imprensa e da sociedade e que configurou um novo personagem do futebol do período: as ‘torcedoras’.127

Não obstante seu corrente emprego para designar a massa de presentes aos jogos de futebol, a aplicação do termo década de 1920 ainda causava certa dúvida entre os próprios cronistas da imprensa, os quais não sabiam se denominavam o conjunto de torcedores como “a

torcida” ou “os torcida”.128 A esse respeito, cumpre destacar que a primeira aparição em um dicionário do verbete “torcer” remonta à 1926, na primeira edição do Dicionário de Língua Portuguesa escrito por João Ribeiro. Neste, o autor, no verbo “torcer”, “após inúmeros

significados tais como ‘desviar a linha recta’, ‘dar sentido forçado’, ‘perverter’ ou ‘corromper’, inclui o novo significado: ‘No desporto, animar com gestos a victória dos jogadores (Brasil)’”.129

Uma definição mais precisa, condizente com a real condição torcedora, só foi veiculada em 1949, em dicionário escrito por Orlando Mendes de Moraes. A saber:

Enquanto o ‘torcedor’ continuava a ser ‘aquele que torce nas competições esportivas’ e ‘torcida’ o ‘ato ou efeito de torcer’, ‘a coletividade de adeptos de um clube’ ou ainda ‘grupo de torcedores’, o verbo ‘torcer’ ganhava um significado ainda mais especial. Passava a significar ‘pugnar pela vitória de seu clube desportivo’. Diferentemente de animar, desejar, ou trabalhar pela vitória, agora o torcedor ‘pugnava’ pela sua equipe. Ou seja, ‘lutava com esforço e defendia com veemencia’.130

A análise etimológica do verbo “torcer”, ademais, já indica a realidade particular em que se insere o indivíduo ligado a essa prática esportiva. Designa, outrossim, a grande carga de energia psíquica que envolve o ato de torcer. Com efeito, necessário mencionar que

a etimologia de ‘torcer’ vem do latim torqueo, torquere, ‘torturar’, ‘atormentar’, e também ‘sustentar’, ‘suportar’. É este último sentido que prevalece em francês

126 MALAIA, 2012, pp. 62-63. 127 MALAIA, 2012, p. 64. 128 MALAIA, 2012, p. 80. 129 MALAIA, 2012, p. 80. 130 MALAIA, 2012, p. 82.

(supporter) e inglês (to support), vindos do baixo latim supportare, ‘sofrer’, ‘ajudar’, ‘sustentar’. Em italiano, o verbo tifare deriva de tifo, ‘entusiasmo’, ‘paixão’, ‘fanatismo’, todos vocábulos de sentido essencialmente religioso e com forte conotação emotiva vinda do original grego thyós, ‘furor’. Como tifo designa também a doença infecto-contagiosa do mesmo nome, disseminada na Itália dos anos 1920, o termo estava muito associado ao sentido de sofrimento. Em espanhol, aficionar decorre de afición (por sua vez do latim affectionis, ‘afeto’), palavra que indica ao mesmo tempo ‘amor a alguma pessoa ou coisa’ e ‘torcida’. Em alemão, o termo escolhido para o aficionado oscila entre o laço social e o laço afeito: Anhänger, ‘partidário’, ‘adepto’, pertence à família lexical do verbo anhängen (‘ser ligado por afeto’, ‘estar preso a’), dos substantivos anhang (‘apêndice’, ‘séquito’, ‘família’) e Anhänglichkeit (‘afeição’, ‘lealdade’), dos adjetivos anhängich (‘fiel’) e anhängan (‘afeiçoado a).131

Ainda, na dicção de Franco Júnior, o poder atrativo do futebol pode ser dimensionado pela representação simbólica que este proporciona de todo o corpo social. Neste, um dos papeis do futebol é relegado àquele das guerras nas sociedades tradicionais, na medida em que estas são caracterizada pela presença de i) uma codificação delimitada visando a não perturbação dos demais grupos, consubstanciada na construção de um calendário para lutas; ii) a presença de guerreiros homens adultos, escolhidos por sua força física e moral; iii) a limitação e regulamentação dos conflitos e sua frequente suspensão por períodos de trégua, operando, nesse caso, como mecanismo de equilíbrio e solidariedade social; iii) a desumanização do outro. De fato,

tal descrição pode facilmente ser estendida ao futebol. Este é codificado e limitado no espaço (estádios) e no tempo (duração da partida, calendário esportivo) de maneira a não alterar a rotina da sociedade global. A guerra simbólica do futebol [...] tem como personagens centrais homens jovens e fortes distribuídos em pequenos grupos (times) que se enfrentam, mas que se unem para combater os estrangeiros (seleções nacionais).132

A dinâmica de guerra também é responsável pela criação das rivalidades entre grupos, em que os conflitos periódicos polarizam a identidade coletiva de cada time. Esta rivalidade, ademais, é mais intensa na proporção da proximidade geográfica das equipes. Nesse sentido, a tendência natural é que a rivalidade entre clubes da mesma cidade seja maior do que entre clubes de cidades distintas. Ainda, a rivalidade é influenciada pela frequência em que ocorrem os confrontos. A esse respeito, “comunidades que se enfrentam apenas de tempos em

tempos sentem-se menos adversária do que aquelas que se cruzam periodicamente. Daí por que seleções nacionais despertam menos emoção do que clubes”.133

131 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 294.

132 FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 202. 133 FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 204.

O imaginário da guerra, presente nas partidas de futebol, também tem influência na ânsia pelo poder e pela debilidade do outro. Análise possível do desenvolvimento do futebol é de que

a lógica de todo clube, como de toda sociedade, é seu reconhecimento por parte dos congêneres, é a afirmação e difusão de seu poder. As vitórias esportivas, em certo sentido, não são os objetivos últimos, e sim instrumentos privilegiados para o fortalecimento clânico. [...] A existência de todo clube de futebol, como de todo clã, está baseada em auto-imagem megalômana. É para alimentá-la que toda comunidade clubísticas mantém atualizada sua ‘contabilidade da guerra’: quantos títulos na história e na temporada, quantas vitórias sobre os principais rivais, quantos torcedores possui, quanto de público leva aos estádios e à frente dos aparelhos de televisão.134

A representação do corpo social pelo futebol também se estende a uma dimensão de religiosidade. Nesse contexto, cada clube pode ser representado por uma divindade e cada partida por um rito a ser desenvolvido, na acepção de um conjunto de atos repetitivos com a pretensão de ordenação cósmica ou humana. Isso porque “toda partida de futebol é constituída

por gestualidades (passes, dribles, chutes, carrinhos, abraços etc.) e sonoridades (apito, exclamações, gritos, advertências, palmas, vaias, cânticos etc.) próprias que possuem significância para todos os envolvidos”.135

Não é relevante, dessarte, se a partida a ser disputada é a final da Copa do Mundo ou um jogo de várzea em uma pequena cidade, da mesma forma que não é significativo se uma missa é realizada na Basílica de São Pedro ou numa igreja de uma pequena paróquia interiorana: o rito é o mesmo. E sua eficácia simbólica não está relacionada com a dimensão social e estética.136

Como um fiel que segue irrestritamente os dogmas de sua crença religiosa,

seguir determinado clube é acreditar, mesmo contra evidências racionais, que ele vá vencer. Como o futebol é jogo de muitos erros (sessenta passes errados numa partida é algo comum no Brasil) e pouca pontuação (mais de três gols em uma partida não é frequente), mantém o torcedor em constante expectativa. Impotente na arquibancada, o adepto de um clube crê que sua fé e seu estímulo possam colaborar para que seus ídolos levem a divindade comum à vitória.137

Nesse caso,

não é por impropriedade discursiva que se diz que ‘meu time’ ganhou do ‘seu’, que ‘meu’ Deus é superior a todos os outros. Os nomes possessivos revelam aí profundo

134 FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 207. 135 FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 270. 136 FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 271. 137 FRANCO JÚNIOR, 2007, p. 292.

sentimento de identificação, seja com a divindade clubísticas, seja com a divindade convencional. Em última análise, todo adepto do futebol torce para si próprio devido a uma identificação com o clube tão enraizada quanto a de qualquer outro fiel que encontra no seu Deus a si mesmo. A distorção egocêntrica está presente nos dois casos e pode atingir dimensões paranóicas, dependendo das circunstâncias nas quais tal sentimento é exteriorizado.138

A marca da religiosidade também é sentida a partir da mais ampla gama de superstições presentes no jogo de futebol. A condição de fiel-torcedor, com a crença de que por ação individual se pode mudar o resultado da partida, é fonte de uma ritualística particular e característica de diversos momentos do jogo, sempre na tentativa de distorcer o futuro. O empreendimento das superstições guarda relação com um denominado “princípio da

similitude”, em que o que foi feito e deu certo é mantido como prática assídua, da mesma forma

que o um ritual associado a um insucesso não é repetido. Ainda a crença na magia da superstição é tão grande que, por vezes, o erro não é diretamente associado a uma perda de eficácia, mas sim em uma falha na execução do ritual.139

O torcedor, de fato, representa uma figura central e das mais complexas no mundo do futebol. É permeado por uma parcela significativa de narcisismo, sadismo e masoquismo. Narcisismo ao introjetar a capacidade técnica de seus jogadores-ídolos e a as conquistas de seus clubes como se suas fossem; um sadismo advém no prazer da dor de um adversário derrotado, especialmente se for um rival tradicional; masoquismo na fidelidade a um clube que nunca ganha algo importante, ou a um clube que passa por longa fase sem qualquer conquista.140 É envolto por um conjunto de emoções, porquanto