Ano 0-14 anos 15-39 anos 40-64 anos 65-80+ anos Totais
1.6 Componentes da peçonha do escorpião amarelo
Estudos pioneiros para o isolamento de componentes da peçonha do escorpião amarelo datam do fim da década de 60 a meados da década de 70, empregando técnicas simples de extração da peçonha, juntamente com filtração em gel e cromatografia em CM-Celulose (GOMES; DINIZ, 1966; TOLEDO; NEVES, 1976; POSSANI et al., 1977). Nos anos 80, mais toxinas foram identificadas empregando procedimentos experimentais semelhantes (POSSANI et al., 1981; POSSANI; MARTIN; SVENDSEN, 1982; SAMPAIO; LAURE; GIGLIO, 1983; POSSANI et al., 1985; ARANTES et al., 1989) e nos últimos anos vários componentes foram descritos através de técnicas de cromatografia em fase reversa por HPLC em coluna C-18, espectrometria de massas e análises transcriptômicas (PIMENTA et al., 2001; NASCIMENTO et al., 2006; RATES et al., 2008; MARCUSSI et al., 2011;
ALVARENGA et al., 2012; VERANO-BRAGA et al., 2013; ROCHA-RESENDE et al., 2017; DE OLIVEIRA et al., 2018).
De forma geral, a peçonha do T. serrulatus é composta por muco, sais inorgânicos, lipídeos, aminas, nucleotídeos, enzimas, inibidores de calicreína, peptídeos natriuréticos, proteínas de alta massa molecular, peptídeos, aminoácidos e neurotoxinas (revisado por PUCCA et al., 2015a). Estudos atuais efetuados por De Oliveira e colaboradores (2018), envolvendo o transcriptoma das glândulas de peçonha, demonstraram que mais de 30% do VTs é composta por enzimas e, aproximadamente 40%, por peptídeos.
Em relação aos componentes enzimáticos, a primeira peptidase isolada da peçonha foi a antarease, uma metaloprotease associada aos possíveis casos de pancreatite decorrentes do escorpionismo, sendo capaz de clivar in vitro proteínas conhecidas como VAMPs, que participam da exocitoses de vesículas no pâncreas (FLETCHER et al., 2010). Indo além, especulou-se que a antarease teria papel endógeno nas modificações pós-traducionais de peptídeos da peçonha (VERANO-BRAGA et al., 2013). Após, Carmo e colaboradores (2014) demonstraram a presença de mais enzimas pertencentes à classe das metalopeptidases no transcriptoma das glândulas através de análises por similaridade das sequências. Estas enzimas foram classificadas como metalloserrulases (enumeradas de 1 a 10), podendo ter funções endógenas na própria glândula, relacionadas às modificações pós traducionais de toxinas, ou ainda ação direta no envenenamento. Destas metalloserrulases descritas, nosso grupo purificou as metalloserrulases 3 e 4, que são capazes de clivar neuropeptídeos humanos in vitro, como os peptídeos da família do neuropeptídeo Y e dinorfina 1-13 (CAJADO- CARVALHO et al., 2018, no prelo). Ainda sobre a composição enzimática, nosso grupo purificou e caracterizou uma enzima conversora de angiotensina símile (ECA-símile), que pode ter papel nos sintomas de hipertensão apresentados pelas vítimas em acidentes graves (CAJADO-CARVALHO et al., 2016). Por fim, a presença de hialuronidases, enzimas capazes de degradarem o ácido hialurônico encontrado na matriz extracelular dos tecidos conjuntivos frouxos, também já foi descrita. Estas enzimas facilitam a difusão de toxinas através dos tecidos, potencializando a toxicidade de outros componentes da peçonha (POSSANI et al., 1977; MARCUSSI et al., 2011).
Como visto acima, além das enzimas, os componentes mais abundantes da peçonha são os peptídeos. Os componentes peptídicos podem ser classificados como estruturados, que são estabilizados por ligações dissulfeto, ou lineares (PUCCA et al., 2015a). Os componentes denominados estruturados são os mais estudados, classificados como neurotoxinas que
pela peçonha (COLOGNA et al., 2009; PUCCA et al., 2015a). Na Tabela 2 estão descritas as principais neurotoxinas da peçonha do T. serrulatus.
Tabela 2 - Principais neurotoxinas do T. serrulatus que atuam em canais de Na+ e K+
Toxina Canal Descrição Autores
Ts1 Na+
Liberação de catecolaminas e aumento da pressão arterial. Indução da ativação de macrófagos e produção de mediadores da
resposta imune
VASCONCELOS et al., 2005
ZOCCAL et al., 2011
Ts2 Na+ Inflamação por mecanismo dependente de lipídeos e produção
de citocinas ZOCCAL et al., 2013
Ts3 Na+ Liberação de vários mediadores como catecolaminas e
acetilcolina CLEMENTE et al., 2002
Ts4 Na+ Rações alérgicas, lacrimação e espasmos nas patas traseiras de
camundongos. Afeta canais Nav1.6
MARANGONI et al., 1990; SAMPAIO et al., 1996
PUCCA et al., 2015c
Ts5 Na+
α-toxina onde os prováveis mediadores responsáveis pela hipertensão são as catecolaminas, conduzidas pelas alterações nos canais para Na+. Inibe os canais Nav1.2, Nav1.3, Nav1.4,
Nav1.5, Nav1.6 e Nav1.7. Ação pró-inflamatória sobre macrófagos
ARANTES et al., 1994; GONÇALVES et al., 2003
PUCCA et al., 2015b
Ts6 K+ Atividade pró-inflamatória, imunodepressora e bloqueio de
canais Kv 1.3
ZOCCAL et al., 2013 PUCCA et al., 2016a
Ts7 K+
Capaz de bloquear, com elevada afinidade, mas sem seletividade, canais para K+ em células de fibroblastos transformadas para Kv1.2. Afinidade por canais Kv1.3
WERKMAN et al., 1993 CERNI et al., 2014
Ts8 K+
Capaz de bloquear seletivamente canais para K+ não inativantes dependentes de voltagem de sinaptossomas de cérebro de ratos.
Bloqueio de Kv4.2 e indução de nocicepção
ROGOWSKI et al., 1994 PUCCA et al., 2016b
Ts9 K+ Potente ligante de canais para K
+
ativados por cálcio de baixa
condutância e sensível a apamina LEGROS et al., 1996
Ts11 K+ Identificada através de biblioteca de cDNA. Similaridade com
toxinas para canal de K+ PIMENTA et al., 2003
Ts12 K+ Identificada através de biblioteca de cDNA. Similaridade com
toxinas para canal de K+ PIMENTA et al., 2003
Ts13 K+ Identificada através de biblioteca de cDNA. Similaridade com
toxinas para canal de K+ PIMENTA et al., 2003
Ts15 K+ Bloqueia seletivamente os subcanais Kv1.2 e Kv 1.3. Atividade
imunodepressora
COLOGNA et al., 2011 PUCCA et al., 2016a
Ts16 K+ Identificada no transcriptoma. Similaridade com toxinas para
canal de K+
ALVARENGA et al., 2012
Ts17 Na+ Identificada no transcriptoma. Similaridade com toxinas para
canal de Na+
ALVARENGA et al., 2012
Ts18 Na+ Identificada no transcriptoma. Similaridade com toxinas para
canal de Na+
ALVARENGA et al., 2012
Ts19 K+ Identificada no transcriptoma. Similaridade com toxinas para
canal de K+
ALVARENGA et al., 2012 Ts19
Frag-I K
+ Ação pró-inflamatória, induz liberação de IL-6. Similaridade
com toxinas para canal de K+ LIMA et al., 2015
Ts19
Frag-II K
+
Bloqueio específico para canal Kv1.2 CERNI et al., 2016
Além das enzimas e neurotoxinas descritas acima, temos os peptídeos lineares como constituintes da peçonha. Estes peptídeos, apesar de encontrados com certa abundância, ainda são pouco caracterizados. A análise peptidômica realizada por Rates et al. (2008) demonstra a
existência de uma grande diversidade de peptídeos ainda não caracterizados no VTs. Muitos não puderam ser encontrados em banco de dados, uma vez que estas informações são raras, necessitando desta forma de um sequenciamento de novo. Dentre as moléculas descritas neste peptidoma estão componentes considerados como “não tóxicos”, denominados como fragmentos peptídicos tipo PAPE, por possuírem sequência em “tandem” de resíduos de prolina (P), ácido glutâmico (E) e alanina (A). Outros estudos empregando técnicas “ômicas” estão demonstrando a complexidade da peçonha em relação aos peptídeos lineares oriundos do processamento de proteínas maiores, gerando listas com centenas de fragmentos (NASCIMENTO et al., 2006, VERANO-BRAGA et al., 2013; ROCHA-RESENDE et al., 2017). Na Tabela 3 estão descritos os peptídeos lineares caracterizados da peçonha do T. serrulatus.
Tabela 3 - Principais peptídeos lineares já caracterizados do veneno do T. serrulatus
Peptídeo Descrição Autores
Ts10 Potenciação da bradicinina, inibição da ECA FERREIRA et al., 1993 Ts14 Potenciação da bradicinina independentemente
da inibição da ECA
VERANO-BRAGA et al., 2008 KEILG
Inibidor não competitivo da timet oligopeptidase. Aumento no rolamento de leucócitos na microcirculação de camundongos
CARVALHO et al., 2012 DUZZI, 2014 FTR* Ação antinociceptiva em ratos DUZZI, 2014 [des-Arg1]-
Proctolin* Inibição da NEP humana DUZZI et al., 2016 RLRSKGKK Aumento de IL-6 em macrófagos. Inibição da
ECA PUCCA et al., 2016c
RLRSKG Aumento de IL-6 em macrófagos. Inibição da
ECA PUCCA et al., 2016c
KIWRS Aumento de IL-6 em macrófagos. Inibição da
ECA PUCCA et al., 2016c
* Peptídeos estudados no presente trabalho
Estas informações demonstram que muitos estudos deverão ser realizados para a identificação de novos peptídeos lineares, principalmente lineares, que apresentem atividade biológica, uma vez que uma grande quantidade destas moléculas ainda não caracterizadas compõe a peçonha do escorpião amarelo.
Assim, o estudo de componentes da peçonha do T. serrulatus vem acumulando dados científicos importantes e, por isso, nosso trabalho teve como ponto de partida o estudo de peptídeos do VTs que pudessem interagir com peptidases de importância médica que, quando moduladas em oposto sentido à homeostase, podem estar relacionadas a sintomas graves apresentados nos quadros de envenenamento. Estas peptidases serão apresentadas no tópico a seguir.