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Composição, “grupo social” e elite cultural no CEC-BA

A fim de desenvolver seu projeto nacional, nas décadas de 1960 e 1970, os militares voltaram-se para os intelectuais disponíveis que apoiaram o golpe, sendo que alguns deles faziam parte do CFC. Na medida em que esse projeto ia se ampliando, a composição dos conselhos de cultura apresentou-se como uma característica comum a esse grupo de intelectuais:

[...] membros de um grupo de produtores de conhecimento que pode ser caracterizado como de intelectuais tradicionais. Recrutados nos Institutos Históricos e Geográficos e nas Academias de Letras, esses intelectuais conservadores e representantes de uma ordem passada irão se ocupar da tarefa de traçar diretrizes de um plano cultural para o país. A origem e a ideologia desses intelectuais não deixarão de criar problemas para o desenvolvimento dos objetivos a que se propõem, pois suas idéias não têm mais a força da necessidade histórica. (ORTIZ, 1985, p. 91).

Quando esses intelectuais foram recrutados pelo Estado para construir a política de cultura, a noção de Estado vai se adequando ao discurso tradicional quando isso é possível:

O primeiro problema com o qual os conselheiros se defrontam se refere à democracia. Em quase todos os documentos que nos remetem a uma eventual política de cultura, esta preocupação se manifesta [...] A contradição é resolvida retomando-se o velho tema do ‘totalitarismo’ [...] O Estado assumindo o argumento da unidade na diversidade, torna-se brasileiro e nacional, ele ocupa uma posição de neutralidade, a sua função é salvaguardar uma identidade que se encontra definida pela história. O Estado aparece, assim, como guardião da memória nacional e da mesma forma que defende o território nacional contra possíveis invasões estrangeiras preserva a memória contra as descaracterizações das importações ou das distorções dos pensamentos autóctones desviantes [...]

A segunda dificuldade que surge com a associação dos intelectuais tradicionais ao Estado se refere ao relacionamento entre cultura e desenvolvimento [...] existe um

descompasso entre as falas do Ministério da Educação e a ideologia dos conselheiros, pois, ao se considerar a cultura como elemento complementar ao desenvolvimento, está-se na prática subordinando-a aos interesses de outras áreas, em particular, da economia [...] São várias as queixas que se referem à cultura como o “primo pobre” da economia [...]. (idem, p. 99-102).

O CEC-BA também estava formado por intelectuais – 24 conselheiros (titulares e suplentes) – nomeados pelo governador. De acordo com o historiador Cid Teixeira (2001), o governador Luiz Viana Filho convidou os maiores “sábios da Terra”, diretores de jornal, brilhantes sujeitos, um grupo de notáveis que tinha como função definir um plano estadual de

cultura47. Os membros-fundadores do CEC-BA foram: os médicos Francisco Peixoto de

Magalhães Netto48 e Hélio Simões; o engenheiro civil Américo Simas Filho; os Bacharéis em

Direito Carlos Eduardo da Rocha, José Calasans, Nelson Sampaio e Odorico Tavares49; os

arquitetos Diógenes Rebouças e Godofredo Filho, e o artista plástico Mário Cravo Júnior, personalidades que se destacavam por seu trabalho intelectual e que tinham em comum, nos seus currículos, obras publicadas em diversas áreas, em especial literatura e patrimônio, sendo

que alguns eram colaboradores em jornais locais e nacionais50.

De acordo com o relatório do então presidente Nelson Sampaio (1969-1971), o número total de conselheiros nunca se completou, nem se nomearam os suplentes, mas a “exemplar assiduidade de seus componentes fez com que não se sentisse falta dos suplentes e

por conta disso nenhuma sessão deixou de ser realizada por motivo de quórum”51.

Desde sua criação, em 1967, passaram pelo CEC-BA cerca de 150 intelectuais e artistas baianos, em 21 gestões até 2010. Nesse universo, 25 mulheres integraram o colegiado, e dessas duas ocuparam a presidência do colegiado, em gestões diferentes: Eulâmpia Reiber (2005-2006) e Lia Robatto (2010-2011). Na década de 1990, a conselheira Myriam Fraga ocupou a vice-presidência por dois mandatos. Desde sua criação, o advogado Carlos Eduardo da Rocha foi o conselheiro que mais tempo permaneceu no colegiado, sendo reconduzido por várias gestões. O quadro abaixo mostra as gestões que passaram pelo CEC-BA:

      

47 ALVES, Rossana, Conselho de Cultura, a hora da verdade. Soteropólis, agosto 2001, Ano 4, Edição 35, p. 19. 48 O conselheiro Magalhães Netto faleceu em 31 de março de 1969

49 Também era jornalista e diretor da TV Itapoan

50 Enquadram-se como colunistas e colaboradores de jornais locais os conselheiros Thales de Azevedo, Aluisio Prata e Wilson Lins

Quadro 5 - Gestões dos presidentes e vice-presidentes do CEC-BA 1967-2010

Dados coletados pela pesquisadora 

Em relação à composição do CEC-BA, na primeira gestão, foram indicados, pelo governador em exercício, membros oriundos da sociedade civil que, em tese, representavam os mais diferentes domínios das artes e ciências, e, em menor número, integrantes de instituições culturais do Estado, como diretores de museus locais:

O conselho de cultura é composto por personalidades de destaque na vida intelectual e artística. Nesse modelo, a cultura é vista como um campo regido por leis próprias, acessíveis a um pequeno número de indivíduos que, por méritos próprios ou por força do destino, teriam sido revestidos de um status e uma aura que as pessoas ditas comuns não têm. Delegar aos notáveis a formulação de políticas culturais implica o reconhecimento, pelo Estado, de que a cultura não se adapta à racionalidade burocrática normalmente aplicada a outros setores [...]. (MATA-MACHADO, 2010, p. 227).

Os notáveis-especialistas que formavam o CEC-BA foram se destacando, principalmente, por sua atuação na área de preservação do patrimônio e da memória. Na sessão do dia 12 de agosto de 1969, o Conselheiro Américo Simas Filho informou ao colegiado que as notícias veiculadas nos jornais locais a respeito das atividades do Conselho, particularmente em defesa do patrimônio, estavam provocando um “interesse desusado, pois

era grande o número de pessoas e entidades que o procuravam para tratar desse assunto”52.

      

52 Livro de Atas do CEC-BA, 12 de ago. de 1969.

12/03/1968 - 30/04/1968 Francisco Peixoto de Magalhães Netto*

30/04/1968 - 03/09/1968 Odorico Tavares Nelson de Souza Sampaio 17/09/1968 - 31/01/1969

31/01/1969 - 31/01/1971 31/01/1971 - 15/03/1971

Nelson de Souza Sampaio Thales de Azevedo 15/03/1971 - 22/03/1973 Godofredo Filho Américo Simas Filho 22/03/1973 - 15/03/1975 José Calasans Renato Berbert de Castro 15/07/1975 – 12/07/1977

12/07/1977 - 13/04/1979 José Calasans Thales de Azevedo 06/07/1979 - 15/03/1983 Ruy Santos Thales de Azevedo 17/12/1983 - 17/12/1985

17/12/1985 - 15/03/1987 Wilson Mascarenhas Lins Remy de Souza 29/06/1992 - 27/12/1994

27/12/1994 - 07/11/1995 Renato Berbert de Castro Myriam Fraga 07/11/1995 - 11/11/1997

11/11/1997 - 25/11/1999 25/11/1999 - 27/11/2001 27/11/2001 - 01/07/2003

Waldir Freitas Oliveira Manoel Veiga

04/07/2003 - 12/07/2005 Oscar Dourado Luis Henrique Dias Tavares 05/07/2005 – 13/12/2006 Eulâmpia Santana Reiber Waldir Freitas Oliveira 19/03/2008 – 09/04/2010 Albino Rubim Pasqualino Magnavita

Ao analisar a composição e funcionamento de instituições culturais como: CFC, IHGB e ABL, na década de 1970, Maria Madalena Diégues Quintella (1984) caracterizou os integrantes desses órgãos como um grupo social. A pesquisa desenvolvida por Diégues investigou, dentre outros fatores: postura, relacionamento, representação e legitimidade dos atores sociais componentes desses grupos. O fato de alguns intelectuais participarem das mesmas instituições faz pensar em certa homogeneidade do grupo, tanto no Conselho Federal de Cultura como a Academia de Letras ou o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro devido à formalidade para a admissão de novos membros, que deviam cumprir com alguns requisitos “de tal maneira que os possíveis membros dessas instituições já entram com certas características ou qualificados, comuns a todos”. (QUINTELLA, 1984, p. 121). Participar em duas ou até três instituições atestava o lugar natural onde se recrutar um homem de cultura o CFC era uma instituição nova, por isso a maior parte de seus membros foi recrutado da ABL, IHGB ou em ambas.

Na Bahia, nesse período, vários conselheiros do CEC-BA transitavam nos lugares de sociabilidade local: Câmara de Letras da Bahia e Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e, por isso, também podem ser enquadrados como o grupo social definido por Quintella. Além desses dois lugares comuns à intelectualidade baiana, ABL e IHGB, há uma terceira instituição que também pode ser considerada como um lugar comum de atuação dos conselheiros: a Universidade Federal da Bahia. Lugar comum presente até na composição atual do CEC-BA. Nas palavras da ex-presidente do Conselho de Cultura, Lia Robatto (2010- 2011):

[...] (o)53conselho continua elitista [...] mais de 80% dos membros do colegiado são professores universitários [...] nós todos temos esse vínculo com a universidade, que não deixa de ser uma elite. Não sei se é bom, não sei se é ruim. Então, nesse ponto é parecido com o antigo, que também tinha a maioria de seus membros ligados ao meio universitário, só que eram muito mais notáveis.”54.

Um levantamento feito apenas com os conselheiros titulares, mostrou o lugar-comum dos membros do CEC-BA como é evidenciado a seguir:

Nome Conselheiro/Gestão Academia de Letras da Bahia Inst. Geográfico e Hist. Da Bahia

Gestão 1968-1971

Carlos Eduardo da Rocha x x

Francisco Peixoto de M. Neto x x

       53 Grifo nosso

54 Entrevista da então presidente do Conselho de Cultura, Lia Robatto, concedida à pesquisadora em agosto de 2011

Godofredo Rebello de F. Filho x x

Hélio Simões x x

José Calasans Brandão da Silva x x

Odorico Montenegro Tavares x

Thales de Azevedo x x

Gestão 1971-1973

Renato Berbert de Castro x x

Wilson Lins de Albuquerque x

Nelson de Souza Sampaio x

Ary Guimarães x x

Gestão 1975-1977

Adriano de Azevedo Pondé x

Gestão 1979-1981

João Eurico Mata x

Remy deSouza x Germano Machado x Gestão 1983-1987 Claudio Veiga x x Ruy Santos x James Amado x Paulo Ormindo x

Quadro 6 - Participação dos conselheiros baianos na ALB e IGHB

Fonte: Dados coletados pela pesquisadora

Na primeira gestão (1968-1971), sete deles (60%), dos 12 conselheiros titulares, eram membros da Academia de Letras da Bahia e do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Na segunda gestão (1971-1973), dos quatro conselheiros empossados, apenas Mário Mendonça de Oliveira não fazia parte dessas instituições. Na terceira gestão (1973-1975), continuou essa mesma tendência, sendo que a única nomeação nova foi a de Adriano Pondé, que era membro da Academia de Letras. Na quarta gestão (1979-1983), foram empossados seis novos conselheiros, sendo que três dos empossados pertenciam a uma dessas duas instituições. Na quinta gestão (1985-1987), foram quatro conselheiros, novos integrantes da ABL e do IGHB.

A formação com características de grupo social/elite intelectual, descrito por Quintella (1984), apresentava as ideias de mérito e eminência como sendo critérios subjetivos, na medida em que se referem a uma avaliação qualitativa, balizada por um reconhecimento informal das qualidades intrínsecas nos trabalhos dos possíveis membros da elite. Essas duas ideias conduzem à categoria “notório saber” para definir o autor de uma obra notável em qualquer dos saberes a que se dedique ou que desempenhe “nestes setores uma atividade que só poderia ser exercida por um autêntico líder”. (QUINTELLA, 1984, p. 125). Um dos requisitos informais apontados pela autora é a formação “polimorfa”, ou “polivalente”, sem que isso impeça a especialização em alguma área.

Mesmo que todos estivessem aptos a discursar sobre temas variados, as fronteiras do conhecimento estavam mais ou menos delimitadas: “Não se trata de uma formação escolar, mas adquirida, sobretudo, através de atividades e vivências variadas no universo cultural” (idem, p. 127). Isso pode ser observado, na prática, quando o presidente do Conselho da Bahia, na formação das Câmaras e Comissões, designava os conselheiros de acordo com sua área de interesse, ou, ainda, definia os oradores oficiais das homenagens, conforme a aproximação do homenageado, nas relações de parentesco (avô, tio, pai), biógrafo do homenageado, dentre outras questões.

As ligações de história de vida dos participantes, ou de “biografia”, descritas por Quintella, também estão presentes na composição do CEC-BA. A maioria dos conselheiros mantinha um forte vínculo pessoal. Outro traço biográfico refere-se à formação acadêmica dos conselheiros, traduzida no grande número de membros com bacharelados. “Contudo, este título, que os qualificaria em uma profissão, nada ou muito pouco tem a ver com sua atual atividade” (idem, p. 129). Durante sua posse para o biênio (1981-1983), o então presidente

Ruy Santos55 observou que o conselho passava a ser presidido por dois médicos, pois “a

cultura precisava da medicina para o diagnóstico e do tratamento para a cura”. Além da medicina, outras áreas eram comuns aos integrantes do colegiado baiano: a de letras (jornalismo e literatura); e a de preservação do patrimônio (museus) e da memória.

Em relação a outro requisito apontado por Quintella, na ocupação de altos cargos públicos, no colegiado baiano tem-se como exemplo Magalhães Netto e Nelson Sampaio. Alguns conselheiros baianos demonstravam orgulho pelo grande acervo literário acumulado ao longo da vida, o que lhes permitia acesso às fontes inacessíveis ao grande público e também favorecia a manipulação, por via de referência, das datas passadas. O apelo à memória era comum aos integrantes tanto do colegiado estadual, como do federal. Outro motivo de orgulho dos conselheiros era o acervo de obras ou coleções raras, que lhes permitia agregar valor ao capital intelectual. Na gestão do presidente Renato Berbert de Castro (1992- 1995), essas coleções raras (moedas, objetos de prata) foram admiradas pelos pares durante algumas sessões.

Por orientação do CFC, o colegiado baiano organizava o Calendário Cultural do Estado, publicação mantida até a década de 1990, com efemérides de valor cultural que eram comemoradas durante as sessões do CEC-BA. Amaral (2010) explica que a medida do “tempo” foi o pré-requisito utilizado pelo CFC na seleção das efemérides comemoradas nos       

55 Ata de posse do conselho, dia 06 de julho de 1979, foram escolhidos presidente Ruy Santos e vice-presidente Thales de Azevedo, respectivamente.

Calendários Culturais, nas homenagens, nas Casas de Cultura etc. Essa medida vinculada ao tempo foi muito utilizada, ainda, pelo Conselho de Cultura, nas sessões especiais de comemoração dos centenários de nascimento ou de obras dos intelectuais baianos. Um hábito de celebrar os mortos, muito comum entre os intelectuais ligados aos conselhos, que surgiu na modernidade como “ritual de evocação dos mortos”, associado à perda da memória coletiva das sociedades industrializadas.

Esse esfacelamento gerou a necessidade de construtores da memória social, verdadeiros criadores dos lugares de memória. Esse ritual evocativo promovido pelos agentes responsáveis pela construção da memória coletiva personifica em alguns mortos as representações do mundo moderno, ao identificá-los como portadores de características valorativas para determinado grupo. Dessa forma, os mortos passam a carregar consigo marcas simbólicas que identificam os comportamentos e atitudes esperados daqueles vivos que compartilham o mesmo espaço social. Isso significa que os mortos adquirem a mesma importância que os vivos ao serem evocados como exemplos a serem seguidos. Nesta perspectiva, alguns aspectos eram ressaltados no processo de comemoração dos mortos. A morte era declarada como uma perda irreparável para todo o país e só superada pela certeza da imortalidade da obra – esta compreendida como a produção intelectual e a ação política no setor cultural (AMARAL, 2010).

Geralmente, as homenagens eram realizadas, ou nas datas vitalícias desses intelectuais e personalidades, ou para registrar a passagem do tempo de suas obras. As sessões extraordinárias, na maioria das vezes, eram convocadas para prestar homenagem aos intelectuais mortos. A partir da década de 1990, por sugestão do então presidente Waldir Freitas Oliveira, as homenagens foram incluindo personalidades vivas, como o escritor Jorge Amado, Pedro Calmon, ACM, dentre outras.