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CAPÍTULO 2 – PARTICIPAÇÃO DO PACIENTE PEDIÁTRICO EM

2.3. Compreensão de crianças sobre saúde e doença

Os primeiros estudos realizados sobre a relação da criança com questões de doença se focavam principalmente nos aspectos afetivos, priorizando a repercussão emocional que a doença trazia para ela. Este foco de pesquisa começou a mudar a partir dos anos 1980, com a influência de Piaget (1936; 1937, conforme citado por Bibace & Walsh, 1980). O crescimento do interesse em pesquisar a aquisição de conceitos pela criança, inclusive aqueles relacionados à saúde, doença e morte, se focavam em conhecer como as crianças assimilavam suas experiências com a doença, ficando em segundo plano as reações afetivas que elas emanavam durante o adoecimento (Bibace & Walsh, 1980).

Em seus estudos, Piaget (1936; 1937, conforme citado por Bibace & Walsh, 1980) havia demonstrado experimentalmente que a criança apresenta uma lógica com princípios próprios, qualitativamente diferentes da do adulto, na aprendizagem de áreas fundamentais do conhecimento, como na aquisição da noção de espaço, tempo, causalidade e número. A hipótese de que há uma mudança previsível nos conceitos infantis sobre a causa, prevenção e cura das doenças, que acompanha a compreensão dos outros fenômenos físicos e que é a conseqüência do aumento da idade e experiência, foram devidamente comprovadas por alguns estudos (Bibace & Walsh, 1980; Hansdottir & Malcarne, 1998; Tates & Meeuwesen, 2001).

Ao longo dos anos 1980, Bibace e Walsh, (1980) se propuseram a avaliar como as crianças assimilam sua experiência com a doença, do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo. Estes autores desenvolveram um modelo de como as crianças concebiam as doenças, baseado nos estágios de desenvolvimentos piagetianos: crianças em Estágio Pré-

operatório (dois a seis anos) conceituam a doença em termos circulares, indiferenciados e mágicos. Fixam-se em características externas e recorrem a explicações auto- culpabilizantes. Além disso, acreditam que adoecem porque não obedeceram ações concretas e vão sarar de forma mágica. As crianças em Estágio Operacional Concreto (sete a 11 anos) fazem uma distinção clara entre fenômenos internos e externos, mas continuam dando maior importância a fenômenos externos como causa das doenças. Acreditam que são os germes os principais responsáveis pelo adoecimento e que podem evitar a doença evitando o contágio. As crianças do Estágio Operatório Formal (12 a 16 anos), por sua vez, conseguem ter um pensamento hipotético e entender a doença como uma combinação de um estado corporal que responde às diversas agressões externas. Para eles, as doenças são causadas por uma interação complexa entre agentes e hospedeiros (Bibace & Walsh, 1980).

Baseados nestes estudos, pesquisadores apontam a necessidade de considerar a idade ou o estágio cognitivo da criança no momento de explicar a doença, por exemplo, no Estágio Pré-operatório, utilizar comparações, metáforas e explicar as cirurgias atendo-se aos aspectos externos, deixando as explicações anatômicas para crianças no Estágio Operatório Formal (Hansdottir & Malcarne, 1998; Perosa & cols., 2006).

Outsubo e Becker (2005) realizaram uma investigação com duas crianças com quatro anos e duas com oito anos, investigando o que as crianças com doenças crônicas pensavam sobre suas enfermidades. Os autores verificaram que independentemente da idade, as crianças se referiram à doença como sintomas, tais como, tosse, febre, vômito, espirro; assim como, associavam a doença aos hábitos e comportamentos inadequados, dentre eles: não dormir direito, pisar no chão gelado, tomar chuva, não lavar as mãos. Em relação ao órgão afetado, todas as crianças tinham noção precisa do órgão afetado.

Alguns trabalhos adotam a vertente piagetiana, mas outros sustentam enfoques mais funcionalistas, dando prioridade ao papel da aprendizagem, experiência e cultura na aquisição dos conceitos. A partir deste enfoque, a vivência do adoecer é uma experiência aprendida, devendo sofrer influências maiores das experiências do que dos estágios cognitivos. Eiser, Patterson e Eiser (1989; 1994), apontam que ter conhecimento sobre a doença permite às crianças superarem os limites dos estágios cognitivos, sendo possível que tanto a qualidade como a quantidade de informações repassadas sejam maiores, assim como, quando a criança está vivenciando o processo do adoecer, este aspecto aumenta seus conhecimentos em saúde.

Algumas evidências empíricas parecem dar suporte ao enfoque funcionalista. Perosa e Gabarra (2004) estudaram o desenvolvimento cognitivo e as explicações de causalidade das doenças em 50 crianças hospitalizadas (entre cinco e nove anos). Os autores constataram que foi estatisticamente significativa a relação entre a complexidade das explicações e o número de internações. Além disso, a maioria das crianças, independentemente da idade, atribuiu o adoecimento à desobediência.

Entretanto, também existem evidências contrárias a esta concepção. Perrin (1991) verificou as concepções das crianças sobre a causalidade das doenças, bem como a parte do corpo afetada. O resultado evidenciou que as crianças doentes apresentavam menor compreensão de doença quando comparadas com as saudáveis.

Para alguns autores, as concepções das crianças sobre as doenças também são influenciadas pela escolaridade, principalmente se elas estudam em uma escola onde há aulas de ciências (Hansdottir & Malcarne, 1998; Mann & Tolfree, 2003). Outros autores, ainda, consideram que as diferenças culturais incidem sobre a conceituação do processo saúde/doença (Outsubo & Becker, 2005; Perrin, 1991; Tates & cols., 2004) e sugerem a realização de estudos transculturais. A justificativa subjacente é de que a maioria das pesquisas ocorre em países desenvolvidos e com crianças com doenças crônicas, internadas ou saudáveis; porém, acredita-se que as mudanças climáticas, as diferenças de recursos lingüísticos, a facilidade/dificuldade de acesso aos serviços de saúde e à escola, podem influenciar a resposta das crianças em diferentes países e contextos (Tates & cols., 2004; van Dulmen, 2004).

O debate ainda está em aberto, entretanto, parece haver um consenso de que a aquisição dos conceitos de saúde e doença pelas crianças é bastante precoce, iniciando-se no Estágio Pré-operatório, de acordo com a perspectiva piagetiana. Por este motivo, parece não haver justificativas para a passividade infantil que se observa, ainda, em alguns serviços de saúde. A pouca participação da criança parece ter uma conexão maior com as expectativas que se tem dela no contexto da consulta médica, do que com sua capacidade de compreensão (Nussbaum & cols., 2003; Perosa & Gabarra, 2004).

Essa realidade precisa mudar, tendo em vista que compreender as concepções da doença, a partir do próprio discurso da criança, auxiliaria tanto na promoção da humanização nos contextos de saúde, como facilitaria ou ampliaria os caminhos de diálogo entre a criança e os profissionais de saúde, auxiliando no desenvolvimento de estratégias eficazes de comunicação de acordo com cada idade (Nussbaum & cols., 2003; Outsubo & Becker, 2005).