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Compreensão Multidimensional da Pobreza e a emergência de novos indicadores

3 POBREZA E JUVENTUDE: NECESSIDADES DE DIÁLOGOS

3.1 Compreensão Multidimensional da Pobreza e a emergência de novos indicadores

O fenômeno da pobreza sempre esteve presente na história da humanidade (LACERDA, 2009). As diferentes definições e as variadas formas de abordá-la ao longo do tempo favoreceram a compreensão do processo de sua evolução fortemente relacionada à “(...) gênese da construção ideológica da pobreza” (SIQUEIRA, 2009, p. 3), fundamentada, inicialmente, em concepções cristãs de predestinação divina.

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Segundo trecho original: “(...) ser pobre es un modo de vivir, de pensar, de amar, de orar, de creer y esperar, de pasar el tiempo libre, de luchar por su vida” (GUTIÉRREZ, 1992, p.32).

Entre os séculos XII e XV, a concepção de determinação divina da pobreza e a associação dos pobres a sentimentos positivos de compaixão e solidariedade (SPRANDEL, 2004) cederam lugar a compreensões dos sujeitos nessas condições como preguiçosos, vagabundos e incompetentes, enfraquecendo, assim o ideário espiritual da pobreza (SIQUEIRA, 2009). Ao pobre, mão-de-obra potencial, caberia a função de se adaptar às novas exigências do mundo do trabalho.

Durante os séculos XIX e XX, pesquisas foram desenvolvidas com o intuito de estimar a quantidade nutricional mínima necessária para garantir a sobrevivência de uma pessoa (LACERDA, 2009). O intuito era assegurar que um número reduzido de benefícios e beneficiários fossem mantidos, haja vista a necessidade do capitalismo de manter um excedente de mão-de-obra.

A pobreza passa a representar um tipo de deficiência na renda ou na capacidade de consumo dos sujeitos, sendo, para tanto, necessário estipular uma linha de pobreza como parâmetro de análise entre os ricos e os não-ricos (LADERCHI, SAITH, STEWART, 2003; LACERDA, 2009). Encontra-se, neste aspecto, a base para a elaboração da Abordagem Monetária da Pobreza, fundamentada em concepções de mensuração e a identificação dos pobres (MATTOS, 2006).

De acordo com Néri (2006), a linha da pobreza dispõe sobre o limiar no qual o indivíduo possui capacidade de custear alimentação, vestuário, transporte e habitação, já a linha da miséria, representa o custo mínimo necessário para assegurar uma alimentação suficientemente calórica para manter viva uma pessoa. Segundo esta compreensão, o pobre seria o indivíduo pertencente a um agregado familiar cuja renda

per capita estaria abaixo da capacidade de atender suas necessidades alimentares e não- alimentares, enquanto que, no caso da miséria ou indigência, nem mesmo a necessidade alimentar mínima seria sanada.

Há, presente no desenvolvimento de linhas de mensuração da pobreza, da miséria e da indigência, uma noção de bem-estar fundamentada em uma racionalidade utilitarista (MATTOS, 2006; LACERDA, 2009). Uma vez que “a ‘utilidade’ de uma pessoa é representada por alguma medida de seu prazer ou felicidade” (SEN, 2000, p.77), o consumo seria, do ponto de vista da Abordagem Monetária da Pobreza, caminho encontrado para obtenção de bem-estar individual por meio da satisfação de necessidades pessoais. Quer dizer, o bem-estar individual é estimado em função da utilidade gerada por meio do consumo de mercadorias.

Nesse sentido, o bem-estar social é fruto da “(...) maximização da soma das utilidades, ou a função consumo total” (LACERDA, 2009, p. 39), ao passo que a pobreza representa a impossibilidade do sujeito de viver sua utilidade total em decorrência de sua inviabilidade financeira.

A viabilidade econômica dos indivíduos (CHAUDHARY, 2009) e suas experiências de bem-estar são confundidas com seu poder de consumo, sendo este colocado como elemento primordial de análise e de definição da população pobre. Para Sloan (2009), o consumismo representa a estrutura ideológica central que sustenta a globalização corporativa, incidindo nos níveis: a) comportamental (consumo de bens desnecessários à sobrevivência); b) emocional (construção de um universo simbólico de bem-estar); c) cognitivo (o consumismo seria a força impulsionadora do crescimento) e d) institucional (apoio das instituições financeiras na manutenção e expansão do poder de compra dos indivíduos).

Uma vez associando a pobreza à incapacidade de consumo, as estratégias de enfrentamento a esta situação culminam por ignorar aspectos relevantes, reduzindo a uma única dimensão um fenômeno complexo que congrega múltiplos elementos. Contudo, o que pode ser percebido é a constante associação entre pobreza e desenvolvimento econômico, fazendo com que, em muitos países, as estratégias de combate à pobreza sejam confundidas com estratégias de desenvolvimento (ROLIM et al., 2006). Ocorre, nestes casos, que as peculiares formas de expressão da pobreza no cotidiano dos indivíduos são mascaradas e sua superação é atribuída apenas às mudanças econômicas.

Tenciona-se, portanto, de um lado, o discurso entre um combate à pobreza associado meramente à distribuição de alimentos e valores monetários e, do outro, a necessidade de criação de condições estruturais e redes sócio-assistenciais para a sua superação, o que englobaria não somente medidas econômicas, mas, sobretudo, de saúde, educação, habitação dentre outras. Afinal, conforme ilustra Rolim et al (2006, p.514), “[...] dependendo da conceituação de pobreza considerada, serão propostas diferentes estratégias e programas para superá-la”, inclusive associando a esta concepção o reconhecimento de que indicadores sobre o desenvolvimento de uma nação devem considerar as diferentes esferas da vida humana em sociedade.10

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De acordo com Rolim et al (2006), foi justamente a evolução de uma visão essencialmente econômica do desenvolvimento e que trazia como indicador sintético mais famoso o PIB (Produto Interno Bruto) per

Embora seja atraente o equívoco de atribuir ao descompromisso das organizações sociais e instituições a responsabilidade pela perpetuação da pobreza (SLOAN, 2009), tal atitude, é bem verdade, apenas corrobora para a manutenção da compreensão da pobreza como fenômeno dissociado de campos como a saúde, a educação e a habitação ofertadas à população. É preciso ter em mente que a definição dos critérios de pobreza em patamares mínimos de renda reduz a atuação das políticas sociais (LACERDA, 2009) ao centralizar em um único elemento o caminho de superação de um fenômeno que possui raízes históricas concretas e inter-relacionadas a vários elementos da vida cotidiana.

Assim, a ampliação da concepção de pobreza, avançando em direção ao reconhecimento das necessidades peculiares dos indivíduos inseridos em contextos sociais e culturais específicos, possibilitaria que novos elementos sejam acrescidos com o intuito de alcançar sua superação. Este processo de expansão conceitual, que, desde já, anuncia também transformações metodológicas nas alternativas visualizadas para transformação desta realidade, permite o avanço em direção a um enfoque multidimensional da pobreza, segundo o qual, uma vez nesta condição, o indivíduo passa a conviver com situações adversas de sobrevivência material e simbólica.

Segundo Amartya Sen (2000), o desenvolvimento deve ser compreendido como um processo de expansão das liberdades reais desfrutadas pelos indivíduos e não meramente com sua associação ao crescimento do Produto Nacional Bruto de um país, ao aumento de rendas pessoais, ao avanço tecnológico, ao processo de industrialização ou à modernização social. É preciso ter em mente que, aos fatores expressos pela economia nacional, faz-se necessário associar as disposições sociais, políticas e econômicas dos indivíduos, as possibilidades de garantia de seus direitos civis e os modos como vivem e tomam decisões. Assim,

O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos (SEN, 2000, p.18).

O enfoque sobre a pobreza, ao ser adotada esta perspectiva de desenvolvimento, deve recair sobre a situação de privação de capacidades as quais os sujeitos estão submetidos. Significa dizer que, diferentemente de métodos normativos de análise da

capita para uma conceituação mais ampliada, que favoreceu o surgimento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a ser melhor abordado posteriormente.

pobreza, que a definem em termos de limite (ou limites) baseado em padrões mínimos de vida (BOLTVINIK, 1996), a abordagem da pobreza como privação de capacidades foca sua atenção nas possibilidades reais dos indivíduos de exercer sua liberdade.

A “capacidade” [capability] de uma pessoa consiste nas combinações alternativas de funcionamentos cuja realização é factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos (ou, menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida diversos) (SEN, 2000, p.95).

Contudo, é necessário enfatizar que, segundo tal enfoque, a ausência de renda pode sim designar uma das razões primordiais da privação de capacidades de uma pessoa (SEN, 2000). No entanto, outros elementos como o funcionamento social de uma população (padrões de consumo, por exemplo) devem ser considerados.

Enfatiza-se, portanto, as capacidades e oportunidades disponíveis aos indivíduos para que tenham uma vida longa e saudável, sejam alfabetizados e participem livremente na sociedade em que vivem (ROLIM et al, 2006). Com isso, redireciona-se o indicador da pobreza dos meios (são pobres os que têm uma renda pessoal ou familiar abaixo de um determinado nível) para os fins (são pobres os que não possuem as habilidades e oportunidades mínimas para viver em um nível aceitável). Esta mudança nada mais é que uma demonstração da ênfase sobre a qual recai a abordagem das capacidades: a liberdade individual.

Nesse sentido, o ser humano é dotado de um potencial para transformação, necessitando, para tal, que processos e oportunidades sejam assegurados tendo em vista o alcance de sua liberdade. Caberia, porém, ao Estado e a sociedade o compromisso social para o fortalecimento e a proteção das capacidades humanas (SEN, 2000)

Considerando a importância do reconhecimento da pobreza como elemento multifacetado e, por conseguinte, multidimensional, o Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2010a, p.98), esclarece que suas dimensões

(...) vão muito para além de rendimentos inadequados, abrangendo a saúde e a nutrição deficientes, um baixo nível de educação e competências, meios de subsistência inadequados, más condições de habitação, exclusão social e falta de participação. (PNUD, 2010a)

Baseando-se na Abordagem das Capacitações, o PNUD, em parceria com centro de pesquisas The Oxford Poverty and Human Development Initiative (OPHI), elaborou

o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM). Este índice, que substituirá o Índice de Pobreza Humana (IPH) 11 utilizado desde 1997, foi formulado com o intuito de fornecer um retrato amplo da pobreza (PNUD, 2010b). Ele integra as dimensões educação, saúde e padrão de vida, também consideradas para o cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)12, acrescentando a elas dez indicadores com pesos diferenciados, conforme podemos observar na Tabela 3.

Tabela 3 – Relação entre dimensões, indicadores e pesos correspondentes para o cálculo do IPM

Dimensão Indicador Há privação se... Peso no

índice

Educação

Anos de

Estudo

Nenhum membro do domicílio completou 5 anos de estudos

16,70%

Matrícula das crianças

Pelo menos uma criança em idade escolar não estiver freqüentando

16,70%

Saúde

Mortalidade Pelo menos uma criança na família morreu

16,70%

Nutrição Pelo menos um adulto ou criança desnutrido

16,70%

Padrão de Vida

Eletricidade O domicílio não é servido por eletricidade

5,6% Sanitários A estrutura de sanitária não

é adequada ou é partilhada com outros domicílios

5,6%

Água O domicílio não tem acesso à água potável ou a fonte de água potável está a mais de 30 minutos a pé de casa

5,6%

Piso É de terra, areia ou esterco 5,6% Combustível

para cozinhar

A família usa lenha, carvão ou esterco

5,6% Bens

domésticos

O domicílio não tem mais de um: rádio, TV, telefone, bicicleta ou moto e se não tem carro ou trator

5,6%

Fonte: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2010b)

11 O Índice de Pobreza Humana (IPH) considera o desenvolvimento humano a partir de três variáveis: a)

vulnerabilidade à morte prematura; b) analfabetismo; e c) padrão de vida abaixo do aceitável, o que compreende a falta de acesso a serviços de saúde, água potável e alimentação adequada (PNUD, 1997).

12 A mudança no cálculo do Índice de Pobreza está atrelada, também, a mudança no cálculo do que já é chamado de “novo Índice de Desenvolvimento Humano”, algo mais adaptado a proferir leituras sobre a perdas no desenvolvimento humano devidas às desigualdades na saúde, na educação e no rendimento (PNUD, 2010a; 2010c). Neste indicador, por exemplo, a variável ‘Alfabetização’ foi substituída por ‘Anos médios de estudo’, o que poderá auxiliar na discriminação do processo educacional junto à população e na conseqüente realização de ações para sua melhoria.

Segundo esta nova concepção, uma família para ser considerada multidimensionalmente pobre deve estar em situação de privação de, pelo menos, dois até seis indicadores do IPM, obedecendo ao peso atribuído a cada indicador específico na medida geral. Assim, seu calculo resultará da “(...) contagem da pobreza multidimensional (o número de pessoas que são pobres em termos multidimensionais) e do número médio de privações que cada família multidimensionalmente pobre sofre (a intensidade da pobreza)” (PNUD, 2010a, p.114), o que permitirá uma leitura mais cautelosa e ampliada sobre situações de carências que vão além daquelas oriundas da pobreza de rendimentos.

As mudanças propostas com a adoção do IPM, contudo, não retratam interesse em negar os valores obtidos nas pesquisas realizadas adotando-se os critérios do IPH, por exemplo. Ao contrário, pretende-se, complementar as medidas da pobreza monetária, incluindo a estimativa de 1,25 dólares por dia, e a elas acrescentar peculiaridades inerentes a vida dos indivíduos e que não estavam sendo abordadas nos indicadores anteriores.

Com isso,

o novo indicador revisa para cima o número de pessoas em estado de pobreza no conjunto de 104 países que abrigam 5,2 bilhões de habitantes (78% do total mundial). Segundo o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), quase um terço da população das nações abrangidas (1,75 bilhão de indivíduos) vive com privações (PNUD, 2010a, p.1).

Se, na América Latina, em 2008, ocasião na qual a região concentrava cerca de 563 milhões de habitantes (CEPAL, 2009a), deste total, 180 milhões de pessoas viviam em condições de pobreza e 71 milhões em situação de indigência ou miséria (CEPAL, 2009b), de acordo com estimativas referenciadas nos padrões de renda, a implementação dos parâmetros de privações do Índice de Pobreza Multidimensional revelariam quadro ainda mais alarmante. Para se ter uma idéia, visualizando apenas a questão da desigualdade nos rendimentos, a região que abrange a América Latina e Caraíbas13 congrega, atualmente, nove dos 15 países do mundo com maiores perdas no Índice de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2010b).

Quanto à realidade brasileira, segundo o IPM, já se sabe que 8,5% da população total do país, atualmente mensurada em cerca de 185 milhões, vive em situação de pobreza multidimensional e 13,1% se encontra em risco de entrar nessa condição. Há,

também, uma percentagem de 28,2% de habitantes com privação em pelo menos uma das dimensões do IPM, sendo 20,2% com ao menos uma grave privação em educação, 5,2% em saúde e 2,8% em padrão de vida (PNUD, 2010a). Em termos de rendimento domiciliar per capita, estima-se que, no Brasil, 3,7% da população residente na zona urbana se encontra em pobreza extrema, vivendo com renda mensal de até R$ 70,00 e 11,5% em situação de pobreza, com até ¼ de salário mínimo, que equivale à R$ 127,5. No cenário rural, estes dados sobem para 20,8% dos sujeitos em situação de extrema pobreza e 39% em pobreza (IBGE, 2011)14.

Manifestas no cotidiano dos povos, porém, as expressões da pobreza são ainda mais assustadoras que os números obtidos nas pesquisas. Ela se perpetua através de modos de acumulação de capital, de ‘círculos perversos’ (KLIKSBERG, 2002) que originam processos regressivos, de construções ideológicas que mantém a opressão e o sentimento de ‘ser menos’, incapaz de alterar suas circunstâncias de vida e, assim, empreender processos de mudanças sociais profundas.

Neste estudo, portanto, é interesse apresentar como estes círculos de pobreza e de marginalização se imprimem no cotidiano dos povos da América Latina e, especificamente, do Brasil, atingindo a juventude pobre como contingente vulnerável a estas variáveis. Afinal, como afirma Sen (2000), dentre os fatores que acentuam a relação negativa entre renda e privação de capacidades estão, justamente, aqueles referentes às necessidades dos grupos etários, os quais estão inclusos os mais jovens.