• Nenhum resultado encontrado

Comunicação de massa: o crivo industrial como origem epistêmica

D A TÉCNICA COMO HIPÓTESE DE TRABALHO

3.4.  Comunicação de massa: o crivo industrial como origem epistêmica

O contexto, então, marcado pelo aparecimento das “novas” ciências do social faz com que já não se fale aqui de qualquer comunicação em qualquer nível, circunstância ou época, ou seja, trata-se agora daquela que se convencionou denominar “de massa” e que surge em meados do século XIX, muito especialmente em decorrência da chamada Revolução Industrial. Como desdobramento direto das novas ciências do social, começa a delinear-se um novo campo de estudos; segundo Venício Lima,165 trata-se do surgimento da comunicação – não mais aquela oral, já pensada desde a Grécia clássica por Sócrates e Platão, sendo, portanto, objeto de estudos das áreas de filosofia, letras ou antropologia, mas

164

Idem, ibidem: 226.

da “comunicação humana stricto sensu caracterizada pelo uso de tecnologias específicas e pelo surgimento de instituições. Contemporaneamente aquela a que se convencionou chamar meios de comunicação de massa (mass media) ou mídia”.166 Significa dizer que, quando nos referimos ao surgimento do campo de estudos que hoje tem como uma de suas questões a busca de seu objeto de estudo, estamos nos remetendo não a qualquer tipo de comunicação, mas àquela que tem como peculiaridade o fato de encontrar sua originalidade na chamada comunicação de massa.

Fazemos aqui, então, o recorte teórico em torno do problema comunicação, isto é, embora possamos remetê-lo a um determinado tipo de fenômeno vasto e longínquo, quando nos referimos à questão comunicação, não falamos de qualquer dinâmica ou atividade teórica, senão daquele campo de estudos que se convencionou chamar da comunicação social, o qual encontra no crivo da comunicação de massa sua delimitação epistêmica e, portanto, os primeiros traços de alguma especificidade possível. Segundo Venício Lima já não se trata de qualquer comunicação, em qualquer âmbito ou época, mas do surgimento dos meios de comunicação convencionalmente denominados de massa, que surgem na passagem do século XVIII ao XIX, responsáveis, então, pela criação de uma nova prática social cujas diversas reflexões e interesses viriam a desdobrar-se na constituição de um novo campo do saber. Trata-se, portanto, da constituição da comunicação de massa como origem epistêmica dessa nova área do conhecimento, ou seja, do acontecimento que incorpora, à irrupção das multidões nas cidades, o aparecimento das novas técnicas de comunicação – o telégrafo, o telefone, o rádio, o cinema e, depois, a televisão –, podendo, assim, ser considerado o marco inicial de estudos cujo acúmulo produziria, enfim, uma nova área do conhecimento. Essa, diz Miège, encontrou naquelas três correntes originárias, assim como nas quatro propostas de cooperação, seu cenário de fundação.

Entretanto, continua o autor, as profundas mudanças culturais ocorridas sobretudo no final da década de 1960, como as grandes transformações estruturais na ordem econômica, nos anos seguintes, fizeram com que tal cenário inicial sofresse importantes alterações. As mudanças ocorridas no cenário histórico ecoaram diretamente na formulação

das perspectivas comunicacionais, provocando novos engendramentos reflexivos, os quais, naturalmente, resultaram numa enorme variedade de temas e abordagens teóricas. Nesse sentido, sugere o autor, é importante ver de perto não apenas os resultados de tais mudanças, mas, sobretudo, como atuaram diretamente na produção de novos quadros e escolas, que hoje, efetivamente, apontam para outro cenário reflexivo em comunicação.

Em nossa atualidade, diz Miège, diferentes das três grandes correntes ou propostas de cooperação, o pensamento comunicacional poderia ser dividido em seis grandes categorias ou tradições teóricas, a primeira denominada crítica da economia política da comunicação.167 Segundo ele, se até o começo da década de 1960, as reflexões econômicas estavam dissociadas das pesquisas em torno da natureza da informação, a partir do avanço de tal tradição teórica começa-se a pensar em que medida “a mudança tecnológica depende não só das decisões tomadas em relação aos equipamentos, mas também das decisões que dizem respeito às inovações organizacionais”.168 Segundo Miège, é Fritz Mchlup169 que inaugura os estudos acerca do desenvolvimento da indústria do conhecimento nos EUA, os quais representam propriamente a corrente de análise que procura unir as problematizações de custo e mercado àquelas que dizem respeito às questões de organização e informação. Trata-se aí, portanto, da compreensão de forte influência marxista concentrada, agora, nas modernas indústrias da informação e da cultura. Configuram-se como importantes pensadores Herbert Schiller, Dallas Smythe (americanos), Nicholas Garnham, Graham Murdock, Enrique Bustamante, Ramon Zallo (europeus).

A segunda categoria em que giram os estudos de comunicação hoje é a pragmática.170 Sob forte influência de Simmel, surge como recusa ao modelo matemático a chamada escola “invisível”, em Palo Alto, San Francisco, Califórnia. Sustentando severa crítica ao modelo linear e funcionalista que pensa o indivíduo e o ato verbal como consciente, voluntário e isolado, Gregory Bateson e Goffman, entre outros teóricos, inspirariam trabalhos em torno da adoção de um modelo circular e retroativo, situado nos

167 MIÈGE, Bernard. Op. cit.: 56. 168 Idem, ibidem: 57.

169

MCHLUP, F. The Production and distribuction of knowledge in the Unites States. Princeton University Press, 1962.

processos relacionais e interacionais. Para eles, o valor comunicativo estaria nos processos sociais, que integrariam múltiplos modos de comportamento, sinalizando então uma análise para além do conteúdo em que predominaria o elogio da fala, do gesto, do olhar, do espaço interindividual. Tal abordagem se pergunta pela existência de uma “gramática dos comportamentos que, mais ou menos conscientemente, os homens utilizariam nas relações interpessoais”171 e que fundamenta as interações sociais, especialmente, nas relações intersubjetivas, “aquelas que esclarecem e estruturam o funcionamento da vida em sociedade”.172 Vislumbrando um tipo de comunicação integrada em que o gesto, as expressões, o olhar, a palavra, enfim, diversos modos de comportamento apontam para a constituição de sentido, tal corrente tem como grande referência autores como Paul Watzlawick e Yves Winkin, considerados fundadores da idéia de que “não é possível não comunicar”.173

A terceira categoria responsável por oferecer importantes contribuições aos estudos de comunicação em nossa atualidade é a chamada etnografia da comunicação, a etnometodologia ou sociologia das interações.174 Tal tradição teórica, diz Miège, é bastante confundida com a pragmática, dado que ambas trabalham com o universo microssocial. No entanto, ressalva o autor, devem ser diferenciadas, pois suas perspectivas se distinguem tanto no nível teórico quanto no metodológico. Duas questões merecem ser assinaladas quanto a essa corrente de pensamento. Ele pretende, num primeiro momento, afastar-se das circunscrições lingüísticas predominantes ao concentrar seus esforços nos atos de fala entendidos como unidade básica da comunicação verbal, isto é, via de acesso fundamental ao comportamento humano. Daí o rigor da “observação etnográfica das situações de comunicação”,175 ou seja, os fenômenos de interação social. E, num segundo momento, demonstrar que essa observação pode apontar para características de grande abrangência, envolvendo a sociedade como um todo, isto é, os fenômenos observados no nível de interação individual podem apontar para as grandes tendências sociais. Muitos são os autores importantes nessa abordagem. Podemos citar Georg Simmel, com a teoria da 171 Idem. 172 Idem, ibidem: 67. 173 Idem, ibidem: 65. 174 Idem, ibidem: 71. 175 Idem, ibidem: 72.

sociabilidade; G. H. Mead, com a teoria da ação comunicativa; Erving Goffman, com a teoria da “dimensão cênica” da vida social; e, finalmente, Harold Garfinkel e Alfred Shutz através da etnometodologia.

A quarta categoria apontada por Miège diz respeito às sociologias da tecnologia e da mediação.176 A corrente caracteriza-se fundamentalmente pela abordagem com que procura pensar de modo não dissociado os problemas que envolvem os desdobramentos tecnológicos e suas respectivas repercussões na ordem das mediações sociais e culturais. Dito de outra maneira, trata-se aí da compreensão de que as transformações tecnológicas operam necessariamente mudanças nas estruturas de mediação, ou seja, aponta-se aí para a imbricação entre as mediações sociais e seu respectivo entendimento junto à “questão das modalidades de difusão das técnicas de comunicação na sociedade (...)”.177 Nesse caso, portanto, procura-se enfatizar a relação homem/tecnologia/homem, sobretudo o avanço tecnológico e seus diversos engendramentos na ordem das mediações culturais.

Na quinta categoria, a Recepção das mensagens e a utilização dos meios, segundo o autor, junto com o paradigma fundador da manipulação e daquele outro que diz respeito ao papel determinante da oferta, são dos mais importantes. Trata-se aí de um terceiro que advém dessa corrente teórica e que pode ser denominado da recepção negociada. Para Miège, a idéia apresentada por Stuart Hall de que a recepção é negociada, isto é, “supõe que os receptores decodificam as mensagens modificando os significados preferenciais de acordo com seus interesses e práticas culturais”,178 é talvez uma das mais bem aceitas na cena acadêmica de comunicação. A abordagem tem origem em cinco matrizes diferentes: as reflexões de caráter fenomenológico de Hans Robert Jauss;179 a Escola de Constância quanto à interpretação dos textos literários; a pragmática austiniana;180 a “análise genealógica das formas culturais ocidentais de Michel de Certeau”;181 os estudos transculturais dos “media studies” britânicos, sobretudo na figura de Stuart Hall; e,

176 Idem, ibidem: 76. 177 Idem, ibidem: 77. 178 Idem, ibidem: 85. 179

JAUSS, H. R.. A estética da recepção como provocação. São Paulo: Ática, 1994. 180

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. 181 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.

finalmente, as reflexões mais recentes da corrente empírico-funcionalista (em especial as pesquisas de Elihu Katz e Thomas Liebes sobre a recepção do seriado Dallas).182

Segundo o autor, trata-se do surgimento não apenas da negociação como categoria fundamental dos estudos de recepção, mas efetivamente, de um novo paradigma que desloca o problema do sentido da emissão para a recepção fazendo surgir consigo uma enorme variedade de temas e abordagens comunicacionais. Em decorrência do novo acontecimento tem-se o surgimento, na Itália, do A-Gemelli, grupo de pesquisadores que, reagindo também à supremacia da sociologia da mídia americana, vai empenhar-se de maneira mais constante do que os semiólogos franceses nas pesquisas sistemáticas acerca dos fenômenos de comunicação e cultura de massa. Aqui encontramos nomes como Umberto Eco, Paolo Fabri e Francesco Casseti. Na década de 1960, mais precisamente em 1964, surge o Centre of Contemporary Cultural Studies (CCCS) cuja preocupação concentra-se nas formas, nas práticas e nas instituições culturais e suas relações com a sociedade e a transformação social. A linha de estudos, que tem, a partir de 1968, em Stuart Hall, o grande representante, rompe com a tradição teórica européia e americana, que até então concebia a cultura como algo fora da sociedade. A escola de Stuart Hall opta por uma definição antropológica, em que a cultura é o próprio processo global através do qual as significações seriam social e historicamente construídas; nesse caso, a literatura e a arte apareceriam como parte da comunicação. A escola, com forte influência do interacionismo social do grupo de Chicago, incorpora definitivamente a preocupação em trabalhar a dimensão etnográfica, analisando os valores e significações vividos, as maneiras pelas quais as culturas dos diferentes grupos se comportam diante da cultura dominante – uma perspectiva que tenta pensar algumas definições a partir da própria condição em que vivem os atores sociais analisados; uma maneira de fazer história social diferente: de baixo para cima.

Pode-se dizer, de certa forma, que é a semente dos chamados estudos de recepção aquela responsável por romper com um marxismo ortodoxo e redutor em favor de uma perspectiva dita complexa, que permite estudar a relação entre a cultura e demais outras

182

KATZ, E. e LIEBES, T., Watching Dallas: the export of meaning. New York, Oxford University Press, 1990.

práticas sociais. Com isso, questiona-se o primado da superestrutura que então reduziria a cultura, submetendo-a à determinação social econômica. Tal crítica coloca Gramsci como uma das principais influências da Escola de Birmingham. Sua concepção de hegemonia é amplamente utilizada: “capacidade de um grupo social de assumir a direção intelectual e moral sobre a sociedade, sua capacidade de construir em torno de seu projeto um novo sistema de alianças sociais, um novo bloco histórico”,183 noção que se desloca de classe dominante, cujo poder residiria inteiramente em sua capacidade de controlar as fontes do poder econômico. Nessa análise do poder introduz-se a necessidade de considerar negociações, compromissos e mediações e recusa-se a alinhar, de modo mecânico, questões culturais e ideológicas e as de classe e de base econômica, trazendo para primeiro plano, a distinção das idéias de sociedade civil e Estado.

A Escola de Birmingham influenciaria de maneira decisiva os estudos de comunicação de massa na América Latina. Preocupados também em formular concepções que se diferenciassem das teorias estruturais-funcionalistas, que por muito tempo dominaram a cena sociológica, pensadores como Jesús Martin-Barbero, Maria Immacolata V. Lopes, Nestór Garcia Canclini e Renato Ortiz endossam o chamado revisionismo crítico, acerca das teorias da modernização, aplicadas às análises da difusão dos meios de comunicação de massa. É o surgimento de outra visão do espaço mundial que leva à renovação do estudo das relações internacionais em matéria de cultura e comunicação. Tal pensamento, assim como as de Birmingham e Frankfurt, também opera inicialmente a partir da inclusão, nas análises dos meios de comunicação de massa, de aspectos de ordem ideológica e cultural. Adepta de um marxismo não ortodoxo, a “escola” latino-americana toma, num primeiro momento, como afirma Martin-Barbero,184 a ideologia como centro das questões intelectuais. Marcada em seu surgimento por uma época de forte politização nas reflexões dos anos 70 e 80 na América Latina, a escola iria pensar os meios de comunicação como instrumentos, como discursos do poder. Entretanto, diferente da Escola de Frankfurt, que se limitou, talvez, à formulação de um discurso crítico (quem sabe

183

MIÈGE, Bernard. Op. cit.: 108. 184

MARTIN-BARBERO, Jesús. Ofício de Cartógrafo. Travessias latino-americanas da comunicação na cultura. São Paulo: Loyola, 2004.

moralista em excesso) 185 construído exclusivamente a partir da perspectiva da produção, da transmissão das relações de poder, a América Latina produz um importante deslocamento que coloca a cultura e a ordem popular no centro das atenções. Acredita que, em vez de se restringir às análises superestruturais, deve levar em consideração os usos e as reinvenções operados pela cultura diante das diversas ofertas produzidas pelos meios de comunicação de massa. Nesse caso, afirma Martin-Barbero, “o popular se colocaria como grande desafio à razão dualista euro-americana”.186 Assim também pensam Canclini, em Culturas Híbridas e a Globalização imaginada, Renato Ortiz ao propor, em A Moderna Tradição Brasileira, a diferenciação dos termos globalização e mundialização, e Maria Immacolata Vassallo de Lopes em Vivendo com a telenovela, que é um protocolo metodológico de pesquisa em recepção, com base na teoria das mediações de Jesus Martin-Barbero. Podemos dizer, então, que essas concepções, assim como as do grupo de Birmingham, estariam atentas aos fenômenos produzidos também na ordem da cultura. Seriam concepções teóricas interessadas em outras metodologias e unidades de análise, configurando, portanto, uma escola atenta aos microprocedimentos de análise, à inclusão do grupo, às relações intersubjetivas, à pessoa e à vida cotidiana em suas reflexões; uma escola que rejeita, sobretudo, o primado exclusivo da sociedade sobre o sujeito, e que, nesse sentido, constrói, também na América Latina, uma vertente cuja preocupação teórica se fundaria nos fenômenos de ordem cultural.

Por fim, a sexta e última categoria segundo a qual os estudos de comunicação ganham notada e relevante atribuição, configura-se nas chamadas filosofias da comunicação. Segundo Miège, se, historicamente, a comunicação caracterizou-se por receber leituras ditas setoriais, isto é, específicas “de alguns campos de atividade social e praticamente fora de qualquer relação próxima com os sistemas filosóficos e intelectuais existentes”,187 em nossa atualidade o que se observa é que a comunicação tem sido tema de diversos debates agora na cena da própria filosofia. Trata-se, pois, do aparecimento de novas perguntas e novos empreendimentos, responsáveis, então, pela abertura de caminhos inéditos, sobretudo naquilo que diz respeito ao debate heurístico. Tal perspectiva, afirma

185

SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. Petrópolis: Vozes, 2001: 07. 186

MARTIN-BARBERO, Jesús. Op. cit.: 109. 187 MIÈGE, Bernard. Op. cit.: 88.

Miège, encontra-se situada nessa corrente de análise e tem em autores como Jean Baudrillard, Niklas Luhmann, Habermas, Pierre Lévy, Gianni Vattimo, Jean-François Lyotard, Lucien Sfez, Ciro Marcondes Filho e Muniz Sodré importantes nomes.

Documentos relacionados