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COMUNIDADE ÁRABE DE CAM PO GRANDE (MS) – DE VOLTA ÀS

No documento MARTIN BARBERO desafios politicos diversidade (páginas 111-117)

RAÍZES AINDA QUE EM SONHO

Apresentação no restaurante Ariche imagem: Luan Barros

Dizem os estudos que os primeiros libaneses vieram ao Brasil pela influência da visita de dom Pedro II ao Líbano. Fluente em árabe, segundo alguns registros, o imperador atraiu os primeiros imigran- tes. Com o decorrer da história, os problemas socioeconômicos e as constantes tensões militares da região intensificaram o fluxo mi- gratório. Independente desde 1943, a República Libanesa passou a ser palco de diversos conflitos entre Israel e o grupo xiita Hezbollah, cujas consequências foram acompanhadas mundialmente pela im- prensa, além da complicada relação com a Síria, que tinha tropas no país até 2005, e os imigrantes palestinos em fuga das ações israe- lenses no território que seria árabe.

O espírito desbravador dos fenícios (povo que na Antiguidade esta- beleceu o comércio e a cultura marinha no Oriente próximo e que deu origem, entre outros, aos libaneses) incentivou sua interioriza- ção no Brasil. Em lugares até então remotos, eles se estabeleceram como comerciantes, fazendo a distribuição dos produtos desde sua fonte, as fazendas, até a população da cidade. Nessas viagens, alguns chegavam a fazer o serviço dos Correios onde não havia o serviço público. No caso de Campo Grande, sua habilidade no comércio e na distribuição de produtos foi bastante útil, seja para os fazendeiros brasileiros, seja para a outra grande colônia campo-grandense, de agricultores japoneses. Daí a referência popular na cidade que a de- fine como “uma ilha de turcos cercada por japoneses”. Turco, entenda- se, foi a maneira grosseira com que os libaneses e os demais árabes foram chamados aqui. Com o tempo, e como resultado da misci- genação com a cultura brasileira, eles próprios assumiram o apelido. Nova realidade no novo lar

A primeira mudança cultural vivenciada pelos imigrantes em território brasileiro foi a união de seus diferentes grupos, originalmente separa- dos em razão de suas marcas religiosas. Em consequência, se em seu país cada qual zelava por seus próprios interesses, no Brasil isso foi dei- xado de lado. Para se estabelecer nas terras daqui, ainda mais com to- das as dificuldades e o isolamento proporcionados pela vida no interi- or, era indispensável contar com a confiança e a lealdade daqueles que compartilhavam ao menos o idioma. Os próprios libaneses analisam o fenômeno e acrescentam outras explicações. O doutor Chales Lotfi, libanês que passou a maior parte de sua vida no Brasil e estudioso da imigração daquele país, disse, em entrevista, que “vindo de um país que passou e passa por tantas guerras, nada mais justo que vivenciar a paz na nova casa”. Tanto pela tranquilidade quanto pela esperança de uma vida financeira melhor, sem dúvida eles fizeram daqui um novo lar. Apesar do respeito e da solidariedade que marcaram o rearranjo em solo brasileiro, as diferenças não foram abandonadas como referên- cia. Fica claro, em qualquer conversa com algum imigrante, que se vivem as raízes quando o assunto são suas identidades. Os muçul- manos, por exemplo, relataram maior dificuldade na adaptação, cla- ro que pela maneira com que vivem sua religiosidade. Impacto pelo qual os cristãos, a maioria em Campo Grande, passaram com maior tranquilidade, vinculando-se diretamente ao catolicismo brasileiro.

Avenida Calógeras, Rua 7 de Setembro

A já citada habilidade dos árabes para o comércio os fez dominar esse setor da economia de Campo Grande. No centro da cidade, precisa- mente na Avenida Calógeras, ficavam, lado a lado, as lojas dos imi- grantes, cada qual com sua especialidade. Já na Rua 7 de Setembro, encontram-se até hoje armazéns com produtos árabes, como a mo- vimentada Confeitaria Árabe. De pequenos a grandes empresários, o que não se imaginava é que, em pouco tempo, tantas mudanças aconteceriam e restassem tão poucas famílias ainda negociando no local. Há pouco, um passeio por ali era descrito como uma viagem pelos aromas que saíam das lojas, que, hoje, contam praticamente apenas com comerciantes brasileiros.

As riquezas geradas nos áureos tempos das atividades no comércio mudaram definitivamente as perspectivas das famílias, possibilitan- do uma vida de conforto. Curiosamente, isso acabou por afastar os filhos do dia a dia das lojas. Os descendentes libaneses, hoje, domi- nam outro setor de serviços na cidade; eles são grande parte dos advogados e dos médicos de Campo Grande. Outros se tornaram empresários e muito poucos ainda seguem no balcão, atendendo diretamente os clientes. Essa geração, contudo, e a de seus filhos protagonizam uma interessante contrarrevolução cultural na comu- nidade árabe-libanesa campo-grandense.

Os imigrantes que vieram do Líbano conquistaram sucesso econômi- co, influência política e importância para o desenvolvimento da região. Mantinham laços diretos com suas origens – lá nasceram e aqui cresceram em comunidade. Cultivaram, assim, suas datas festi- vas e demais costumes, tais como a comida e a dança dabke, em que várias pessoas ficam de mãos dadas, dançando em círculo, como na célebre cena final do filme Lavoura Arcaica. Tinham no Clube Libanês um centro de encontro onde podiam passar o tempo compartilhan- do memórias e notícias de sua terra natal. Era onde aconteciam as festas das famílias árabes e da colônia em geral, além de aulas do idioma natal.

Já seus filhos, nascidos aqui, lidam com suas identidades de origem de maneira bastante distinta. A maioria dos descendentes dessa ge- ração não teve tanta preocupação com a manutenção desses laços, pelo contrário. Entre esses, não era comum que mantivessem o há- bito de conversar em árabe nem mesmo viver outros pontos-chave da cultura, como a dança, a religião e uma relação familiar mais con- servadora. Queriam crescer como brasileiros e, dessa vontade, mini- mizaram sua identificação com a origem. Tal enfraquecimento levou ao fechamento do Clube Libanês, no final dos anos 1990, episódio que marcou profundamente os mais velhos, que temeram pelo abandono completo de seus valores.

Sonho

O professor Munir Sayegh faz parte dessa geração nascida no Brasil. Ele caracteriza seu vínculo com o Líbano como algo “de sonho”; de lugar de origem, o país se transformou numa comunidade imagina- da. Em sua fala, “o Líbano foi sempre um lugar com o qual sonhei a respeito, por causa das histórias fantásticas que ouvia principalmente do meu pai. Mas, como nunca conheci pessoalmente o lugar, vivia o amor àquela pátria dessa maneira diferente, imaginada. Sempre tive esse desejo de vivenciar o país, mas o vivi como um sonho”.

Se os sentimentos de pertencimento mudaram, e com eles os ritos de reafirmação identitária, a condição de libaneses não. Nos anos seguintes ao fechamento do clube, os pais de Munir organizaram a Associação Cultural Monte Líbano, uma forma institucionalizada de não deixar de celebrar as datas importantes, marcas simbólicas do tempo, já que não havia mais um espaço físico específico para isso. Outro importante e curioso fato revela os novos processos de in- tegração entre as tradições e a atualidade. Dizem que foi a novela

O Clone que desencadeou nos mais jovens, já de outra geração, o

interesse pela cultura árabe em geral. Elie Haidar, estudante de ciên- cias sociais, é o exemplo perfeito dessa retomada. Seus pais, filhos de libaneses muçulmanos, não falam a língua em casa nem têm es- pecial preocupação com as tradições religiosa e cultural que herda- ram. Ele explica que “meus pais pensam como árabes e se sentem parte de lá, mas, quando novos, não queriam ser diferentes. Naquela época [anos 1960 e 1970], ser diferente era algo mais pesado”. Porém, o próprio Elie foi diretamente em busca de suas raízes. Aprendeu a falar fluentemente o idioma e se dedicou à religião de seus avós, o islã xiita. “Vivi a comunidade já estabelecida, tanto economicamente como culturalmente. Tive contato desde muito jovem com pessoas que se orgulhavam muito da origem libanesa.”

Hoje, os jovens da geração de Elie chegam a demonstrar maior or- gulho e envolvimento com as questões libanesas do que os próprios pais. Eid Anbar, atual presidente da Associação Cultural Monte Líbano, comenta que “meus filhos, apesar de não terem ido até lá, amam mais o Líbano do que eu. Muitas vezes, escrevem meus textos em árabe ou, sobre a situação do país, chego a consultá-los para tirar dúvidas”. A novela talvez tenha funcionado como um espelho no qual os mais jovens puderam ver uma imagem de si até então desconhecida ou enfraquecida na memória. Porém, ainda que com essa imagem en- fraquecida, o orgulho desse povo fala mais alto uma vez despertado. Seja por causa da televisão, seja pela necessidade humana de preservar raízes culturais ou mesmo por orgulho, vê-se hoje jovens frequentando a mesquita de Campo Grande. A comunidade árabe tem, inclusive, um ponto de encontro na noite de Campo Grande, o restaurante Ariche. Todas as sextas-feiras, o lugar fica completamente lotado para que assistam aos shows de música do Oriente Médio, acompanhado de apresentações de dança do ventre e do dabke.

Confeitaria Árabe

imagem: L

uan Bar

A diáspora do povo árabe promoveu no Brasil o encontro harmonio- so entre seus componentes, marcados por diferenças e conflitos em suas origens. Tal convivência, entretanto, não desfez as singulari- dades, apenas produziu arranjos identitários suficientemente estra- tégicos e fortes para o jogo com a alteridade. No caso específico dos libaneses de Campo Grande, a primeira geração de migrantes trans- portou para o solo brasileiro seu cotidiano, seus ritos e seus negócios, garantindo assim as condições para a manutenção de identidades de origem. As gerações seguintes, usufruindo da riqueza construída por seus pais, mas também vítima das mudanças, diversificou seu modo de presença e pertencimento. Além disso, foi com um espe- lho construído pelo outro, o brasileiro, que voltou a olhar para si. Não mais com os valores de seus antepassados, mas com as misturas que o mundo contemporâneo realiza. Tradição e modernidade revelam um novo processo de identidades reconstruídas midiaticamente e que alimentam novas sociabilidades libanesas.

Luan Barros

Formado em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC Minas), em 2003, depois de passagem pela Universitat Autònoma de Barcelona. Produz textos, fotografias e documentários. Tem trabalhos que vão desde performances audiovisuais até progra- mas para a TV.

Rafael Munduruca

Os pomeranos constituíam uma nação, a Pomerânia, que estava localizada ao sul do Mar Báltico. Os últimos pomeranos que habitaram aquela região se dividiram em dois grupos: os que estavam mais próximos da Alemanha e foram incorporados territorialmente e os que por questões culturais e políticas foram expulsos por soviéticos e poloneses e obrigados a migrar durante a Segunda Guerra Mundial.

O processo migratório se iniciou ainda no século XVIII, quando mais de 330 mil pomeranos foram para a América do Norte, se espalharam por lá, miscigenaram e conseguiram se integrar por completo. Já os cerca de 30 mil que chegaram ao Brasil se concentraram em comunidades agrárias fechadas, localizadas, sobretudo, no Espírito Santo e na Região Sul do país, preservando muitas tradições.

A pequena cidade de Santa Maria de Jetibá, no Espírito Santo, se intitula “o município mais po- merano do Brasil”. A 75 quilômetros da capital Vitória, possui fortes características rurais, pouco mais de 30 mil habitantes, muitos deles falantes da língua pomerana. Todos os anos o municí-

pio organiza a Festa Pomerana. Neste ano, a 20a edição da festa aconteceu entre os dias 29 de

abril e 3 de maio e comemorou os 150 anos da imigração pomerana para o Brasil.

POMERANOS

No documento MARTIN BARBERO desafios politicos diversidade (páginas 111-117)