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PARTE I ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1.4. Conceber e avaliar manuais escolares 22

Se podemos observar o manual como um objecto marcadamente social ou ideoló- gico, outro percurso de exploração é a análise do processo que se estende desde a géne- se e desenvolvimento até ao seu objectivo final: o consumo pela população a que se des- tina. O manual apresenta-nos, assim, um estatuto paradoxal. Se o lugar é, por excelên- cia, a escola, instituição de utilidade pública, é também produto de uma empresa livre com interesses prioritariamente comerciais, não tendo o principal interessado interven- ção directa na sua realização ou selecção. Actualmente, é um produto de consumo, colo- cado no mercado, sujeito às suas leis, tantas vezes alheias às preocupações educativas.

Entre o projecto de publicação e a sua recepção pelo público alvo, consumidor, existe uma cadeia de operações que tornam possível que um conjunto de ideias se mate- rializem num livro e que constituam as denominadas cadeias editoriais. A tomada de de- cisão de produção dum manual assenta, antes de mais, num rigoroso estudo de mercado, tendo em vista a viabilidade económica do produto. Só após a tomada de decisão de produção do manual se passa à sua concepção.

A concepção do livro escolar pode ser definida «como o processo de elaboração dum manuscrito, indo do acto intelectual que é preponderante na redacção até à própria redacção», tendo como principais intervenientes neste estádio: «os autores (os que con- cebem, redactores, …); os directores de colecção; os adaptadores e os tradutores».17 O

editor define os critérios relativos a aspectos técnicos, financeiros e pedagógicos. Apre- senta uma progressão dos conteúdos, os gráficos, o formato, o número de páginas, a es- colha de caracteres, espaços, ilustrações, ou seja tudo o que diz respeito ao lado físico do livro e que propicia a acessibilidade textual. E assim é elaborado o esboço de um ma- nual.

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MAGALHÃES, Justino - Um apontamento para a história do manual escolar: entre a produção e a represen-

tação. In Castro, Rui Vieira de [et al.]. Manuais escolares: estatuto, funções, história. I Encontro Internacional sobre

Manuais Escolares. Braga: Centro de Estudos em Educação e Psicologia: Universidade do Minho, 1999. p. 285. 17

GÉRARD, François-Marie; ROEGIERS, Xavier - Conceber e avaliar manuais escolares. Porto: Porto Editora, 1998. p. 22.

O professor pode, ainda, optar pela substituição integral ou parcial do manual por outros materiais, cabendo-lhe a planificação e o desenvolvimento do processo de en- sino-aprendizagem. O professor pode elaborar os seus próprios materiais de apoio (tex- tos, fotocópias, relatórios, bibliotecas de aula), utilizar materiais existentes no mercado (revistas, jornais, panfletos publicitários, enciclopédias…) ou recorrer a materiais im- pressos com recursos audiovisuais, informáticos e meios de comunicação de massa (te- levisão, jornais, rádio...) de modo a que sejam cultivadas, nos alunos, diferentes formas de representar simbolicamente o conhecimento, os quais podem, por sua vez, ser objec- to de partilha por alunos e professores. De facto, não há dúvida de que o manual escolar tem sido e, certamente, continuará a ser o mediador e a fonte de informação básica da nossa cultura escolar. No entanto, tal não significa que não venha a sofrer transforma- ções. Com o desenvolvimento e aparecimento de novos meios, suportes e linguagens, este tenderá a evoluir em direcção aos livros electrónicos interactivos.

No caso dos alunos, como é sabido o manual escolar é associado a um maior es- forço mental, comparativamente com a televisão/vídeo, sendo eleito para actividades relacionadas directamente com o ensino e a aprendizagem. Poucos são os alunos que mostram atitudes completamente negativas face à interacção com o manual, ainda que a razão seja quase óbvia, dado que, muitas vezes é o único meio que têm para interagir e onde se encontra a maioria dos conteúdos necessários para alcançarem o sucesso numa determinada área académica.

Nesta linha, também Justino Magalhães defende que, «Se há casos de uma profun- da afectividade pelos manuais escolares, conservados e visitados vezes sem fim pela vida adulta, também há casos de rejeição e destruição simbolicamente violenta».18

Em Portugal, a situação do manual escolar é retratada num trabalho orientado por Maria Odete Valente, do Gabinete de Estudos e Planeamento (G.E.P.) do Ministério da Educação. Foram analisados quatro manuais de diferentes áreas, do ensino primário e preparatório em conformidade com os eixos «sociocultural, científico e pedagógico». As ilações tiradas são as seguintes: «As actividades respeitantes aos conteúdos linguís- ticos insistem numa análise descritiva e excessiva em conteúdos demasiadamente com- partimentados não perspectivando uma pedagogia global da língua. (…). Em maior ou menor grau há a preocupação em introduzir guias, fichas de trabalho, apêndices grama-

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MAGALHÃES, Justino - Um apontamento para a história do manual escolar: entre a produção e a represen-

tação. In Castro, Rui Vieira de [et al.]. Manuais escolares: estatuto, funções, história. I Encontro Internacional sobre

ticais, a fim de nortear e sistematizar hábitos de trabalho no aluno. (…) Os facilitadores ora auxiliam o mestre ora o aluno. Contudo, cada manual não esgota o leque de escolha (…). Quanto às formas de mensagens visuais, elas são variadas e na sua grande per- centagem estão correlacionadas com os textos, apesar da elementaridade de algumas».19

Pacheco publicou um estudo qualitativo sobre o pensamento e a acção do profes- sor em formação, onde abordou as crenças acerca do manual, afirmando que nem todos vêem nele uma «fonte de conhecimentos» e que, «Entretanto, (…) quer professores principiantes quer professores com experiência confirmam que o manual, porque também substitui o programa, é necessário e serve de base à preparação de aulas do pro- fessor e ao estudo do aluno. Tal posição é reforçada nos elementos do processo de pla- nificação, ao considerar-se o manual como principal fonte de selecção dos conteúdos e das actividades didácticas».20

Um outro estudo, efectuado por Maria da Conceição Bento, consistiu na análise das representações e das concepções dos alunos e dos professores do Ensino Básico so- bre o manual escolar, as quais podem determinar e configurar a sua adopção. Este estudo de caso leva a autora a concluir que tanto «alunos como professores desejam um manual compósito, (…) com bastantes exercícios e textos e uma boa qualidade gráfica. (...) Os alunos consideram o manual, antes de mais, como o principal auxiliar de apren- dizagem e indispensável recurso que complementa e/ou reforça o ensino do professor».21

Neste sentido, pode concluir-se que os processos que actualmente envolvem a adopção do manual escolar se mostram complexos e problemáticos. Daí a necessidade de formação específica na área dos manuais escolares por parte dos professores, uma vez que enquanto prescritores do manual, raramente possuem competências teóricas para seleccionar, trabalhar e para dinamizar junto dos alunos os manuais que utilizam no seu quotidiano. Assim, Choppin defende algumas propostas de acção, tendo em vista a optimização da relação entre os manuais escolares, professores e alunos. Essas medidas assentam na necessidade de simplificar os manuais, construir utensílios de formação e autoformação e desenvolver formação específica nesta área. Para os docentes alemães e suecos, o manual, relativamente ao conteúdo e estruturação de matérias, constitui uma variável muito forte na preparação e concretização do processo

19 VALENTE, Maria Odete. - Manuais escolares: análise da situação. Lisboa: GEPME, 1989. pp. 327-333. 20

PACHECO, A. - O pensamento e a acção do professor. Porto: Porto Editora, 1995. pp. 120,121. 21

BENTO, Maria da Conceição Reis Lima - Concepções de alunos e professores sobre o manual escolar de língua

materna. In Castro, Rui Vieira de [et al.]. Manuais escolares: estatuto, funções, história. I Encontro Internacional

de ensino-aprendiza-gem. Por outro lado, também acusam a ausência de utensílios válidos para a avaliação e escolha do manual.

Assim, a avaliação dos manuais escolares é um processo onde têm lugar diversos agentes, que directa ou indirectamente interagem com eles: professores, alunos, repre- sentantes da administração educativa, pais e encarregados de educação e editoras.

No âmbito da problemática geral dos manuais escolares, a questão da avaliação intervém principalmente a dois níveis, completamente distintos: «O primeiro nível é o da avaliação da qualidade do manual e da sua utilização, e consiste em lançar um olhar crítico sobre o próprio manual, sobre os meios mobilizados para a sua elaboração, sobre as condições da sua realização, sobre os efeitos que produz, isto é, sobre o projecto glo- bal de elaboração e realização do manual. Um segundo nível é o da avaliação das aqui- sições dos alunos, o que coloca a questão do espaço que o manual reserva para a avalia- ção das aquisições dos alunos, tanto para verificar se os saberes estão efectivamente adquiridos, como para permitir, se tal for necessário, dar lugar a um processo de reme- diação».22

A concepção, composição e impressão, fases do desenvolvimento do manual, têm sido amplamente estudadas por Gerard e Roegiers e por Richaudeau constituindo, este último, um dos pioneiros nestes domínios. A sua obra «Conception et production des manuels scolaires» teve um bom acolhimento tanto pela qualidade e grau de profun- didade que apresenta como pela escassez de bibliografia existente sobre o assunto.

Em Portugal, o Decreto-Lei. n.º 369/90 de 26 de Novembro, prevê no seu artigo 6.º que a apreciação da qualidade dos manuais escolares seja competência de comissões científico-pedagógicas, constituídas para o efeito pelo Ministério da Educação.

A certificação de qualidade dos manuais escolares tem vindo a ser efectuada pelos departamentos pedagógicos do Ministério da Educação, nomeadamente o Departamento de Educação Básica e o Departamento do Ensino Secundário, o que tem ocorrido de for- ma esporádica, tendo-se apenas verificado, no ano de 1991/92, para os manuais do 1.º Ciclo do ensino básico /1.º e 2.º anos de escolaridade, e no ano lectivo de 1994/95 para os manuais relativos aos 1.º e 2.º Ciclos do ensino básico e ensino secundário. Numa segunda etapa constituíram-se Comissões Científico-pedagógicas, das quais fazem parte professores do 1.º Ciclo para apreciação dos manuais. A metodologia de análise assen-

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GÉRARD, François-Marie; ROEGIERS, XAVIER - Conceber e avaliar manuais escolares. Porto: Porto Editora, 1998. p. 94.

tou em «grelhas construídas para o efeito cujos parâmetros de referência foram: no âm- bito do programa contemplaram-se os objectivos e conteúdos; no quadro da informação científica, valorizou-se a informação actualizada sem erros e imprecisões; no processo de ensino-aprendizagem, deu-se especial ênfase à apreciação de propostas de trabalho que, pela sua linguagem e vocabulário, estabelecessem uma comunicação adequada ao nível etário dos alunos a que se destinam». Esta comissão considerou que 73% dos ma- nuais analisados, a nível do ensino básico, tiveram parecer favorável, enquanto que no âmbito do ensino secundário o parecer favorável aplicou-se a 92% dos manuais.

Com efeito, são enviadas anualmente, por circular, a todas as escolas, grelhas de análise dos manuais escolares que permitem às equipas de docentes ter uma base co- mum de análise para avaliar e seleccionar os manuais escolares das diversas áreas e dis- ciplinas, constituindo estas, na óptica das tais comissões, uma garantia de objectividade e de qualidade.

Pelo exposto anteriormente, constatamos a complexidade existente em torno da a- valiação do manual, apresentando-se como um processo intrincado que deve ser levado a cabo por especialistas com formação específica nestas matérias. Por outro lado, tendo em conta a grande variedade de aspectos que podem ser alvo de análise e apreciação num determinado manual, somos levados a considerar que os manuais podem suscitar discrepância e, por isso, não serem consensuais.

McLuhan, na sua obra “La Galaxie de Gutemberg”, a respeito da cultura impressa refere: «Os cavalos régios foram substituídos pelas carruagens, os livros não são outra coisa que os cavalos régios, na nova cultura».