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3 AÇÕES AFIRMATIVAS PARA A POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA: DEFINIÇÃO DO CONCEITO E SUAS LIGAÇÕES COM A PREMISSA DA

3.1 O conceito de ações afirmativas

A expressão “ação afirmativa” é aplicada pela primeira vez por Jonh F. Kennedy57 no contexto de reivindicações pelos direitos civis nos EUA entre as décadas de 1950 e 196058. O objetivo do então presidente dos EUA, em 1961, era o de tencionar as leis segregacionistas em vigor em diferentes Estados do país e buscar incorporar as populações negras à vida social e política norte-americana. Para isso, seria estipulado o direito ao voto e o livre acesso aos mais diferentes espaços, impedindo as discriminações raciais sofridas pelos negros em seus empregos, além do estímulo às empresas para a contratação de negros. Sua “fase áurea” ocorre na década de 1970 com a expansão das ações afirmativas para várias minorias, como hispânicos, indígenas, asiáticos e as mulheres (CRUZ, 2011; MEDEIROS, 2007).

A experiência norte-americana teve grande serventia para a constituição das ações afirmativas no Brasil. Tanto é que, diversos pensadores, dentre eles o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa Gomes, buscaram aprofundar suas reflexões sobre as ações afirmativas no Brasil tendo como modelo a referida experiência. Além do fato de que o país estadunidense é considerado o local de surgimento da expressão, sua influência aqui se deu pelas semelhanças históricas no tocante à prática do colonialismo, da escravidão e o do patriarcalismo, como também pela similaridade entre os sistemas jurídicos dos dois países. Portanto, é verdadeiro afirmar que o conceito de ações afirmativas aplicado como política pública no Brasil tem ligações com o modelo norte-americano, como apregoa a mídia, em

57 Presidente dos EUA entre 1961 e 1963.

58 Para um maior aprofundamento do processo político do desenvolvimento do conceito de “ações afirmativas” nos EUA, ver (CRUZ, 2011) e (MEDEIROS, 2007).

51 geral, e diversos articulistas contrários às cotas raciais no Brasil59. Contudo, a experiência norte-americana não é exclusiva, existindo outras experiências de favorecimento de grupos historicamente excluídos espalhados pelo mundo, antes mesmo do surgimento da expressão na década de 1960 nos EUA, como sugere Carlos Medeiros:

É o caso da Índia, cuja Constituição, já em 1948, por meio de seu artigo 16, reformulado em 1951, estabelece cotas para membros de “castas catalogadas” e, mais tarde, também de “tribos catalogadas”, além de medidas especiais para portadores de deficiência. Na década seguinte, a Malásia criaria um sistema destinado a estimular, via cotas, a participação da etnia bumiputra – os malaios propriamente ditos – numa economia dominada por chineses e indianos. No Líbano, o sistema de acesso ao serviço público e à universidade utiliza cotas que reproduzem a participação das diferentes seitas religiosas na população. Na antiga União Soviética, quatro por cento das vagas da Universidade de Moscou eram reservadas a alunos provenientes da Sibéria, uma das regiões mais atrasadas do país. Já na Noruega, da mesma forma que na Bélgica, o foco dessas políticas são os imigrantes. Estes últimos, desde que de origem africana ou asiática, também são alvo de políticas especiais no Canadá, juntamente com “povos aborígines” (indígenas), mulheres e portadores de deficiência. Mais perto de nós, na América do Sul, a Colômbia tem cadeiras no parlamento reservadas para afrocolombianos, enquanto no Peru são os indígenas o objeto de políticas particulares (MEDEIROS, 2007, p. 123).

Assim como nesses países, políticas que levam em consideração a discriminação positiva são uma prática recorrente no Brasil. Ao longo da experiência histórica brasileira, a prática já favoreceu diversos grupos discriminados, dentre eles, trabalhadores, portadores de deficiência, mulheres60 e pobres, como deixa claro Carlos Medeiros:

[...] a chamada Lei dos Dois Terços, implementada na década de 1930 para garantir a participação majoritária de trabalhadores brasileiros nas empresas em funcionamento no Brasil, numa época em que muitas firmas de propriedade de imigrantes costumavam discriminar os trabalhadores nativos, sobretudo em São Paulo e nos Estados do Sul. Também existem leis garantindo o emprego a portadores de deficiência (cota de cinco por cento nas empresas com mais de mil

59 Vários intelectuais que se posicionaram contrariamente à implementação de ações afirmativas nas universidades brasileiras, sobretudo na mídia, utilizaram o argumento de que a implementação de ações afirmativas no Brasil representa a simples transposição de uma política norte-americana para o país. E, seguindo a argumentação, essa transposição ignoraria as diferenças contextuais históricas existentes entre Estados Unidos e Brasil.

60 Como exemplo destas políticas públicas temos, “a Lei nº 9.100/95 obriga que ao menos 20% das candidaturas às eleições municipais sejam reservadas às mulheres; a Lei no 9.504/97 estabelece que cada partido político ou coligação deve reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo; a Lei no 9.799/99 possibilita o estabelecimento de “políticas de igualdade” para garantir o acesso da mulher ao mercado de trabalho, cumprindo o artigo 7o, inciso XX da Constituição, que prevê incentivos específicos para a proteção do mercado de trabalho da mulher; o artigo 37, inciso VIII, da Constituição prevê reserva percentual de cargos e empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência; e a Lei no 8.213/91 determina cota para contratação de pessoas portadoras de deficiência em empresas de mais de cem empregados” (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 53).

52 empregados e de até 20% nos concursos públicos) e a participação de mulheres nas listas de candidatos dos partidos (mínimo de 30% e máximo de 70% para ambos os sexos), para não falar na discriminação positiva em relação a uma infinidade de outros grupos: crianças, jovens, idosos, micro e pequenos empresários, etc., etc. Enquadram-se nessa definição igualmente as agências de desenvolvimento regional, como a Sudam e a Sudene, criadas com a finalidade de carrear investimentos para o Norte e o Nordeste, regiões mais atrasadas. O próprio imposto de renda progressivo, assim como diversas medidas destinadas a compensar a desigualdade social, constitui essencialmente uma forma de discriminação positiva, tanto quanto o dispositivo que permite às mulheres aposentar-se aos 30 anos de serviço – cinco anos antes dos homens. De fato, uma leitura restrita do princípio constitucional da igualdade significaria o fim de programas como o Bolsa Escola ou o Cheque Cidadão, que discriminam negativamente quem ganhe acima de determinada quantia (MEDEIROS, 2007, p. 124).

Nesse sentido, as ações afirmativas são políticas públicas que têm por objetivo a diminuição e erradicação das desigualdades que envolvem grupos discriminados historicamente. Os grupos discriminados, também chamados de “minorizados”, são diferentes em cada sociedade, mas de maneira geral, de acordo com Muniz Sodré:

Minoria deve ser aqui entendida qualitativamente como palavra-chave para designar uma carência de voz afirmativa de segmentos das classes economicamente subalternas (...) os negros, os homossexuais, as mulheres, os povos indígenas [...]. Minoria, portanto, não apenas como sujeito coletivo, mas como o lugar operador de um fluxo de transformação que visa a novas identificações (SODRÉ, 2015, p. 316- 317).

Assim, as ações afirmativas direcionadas às minorias teriam duas finalidades prévias. A primeira, apresentada por Sodré, é a de garantir a participação da voz ativa dos grupos discriminados que compõem a diversidade da formação social, valorizando sua cultura e seu olhar sob a realidade. A segunda finalidade seria a de engendrar uma melhora de condições materiais para os grupos subalternizados historicamente. Dessa forma, as ações afirmativas buscam garantir a igualdade de oportunidades concreta para minorias historicamente discriminadas, seja no mercado de trabalho, na educação, na representação político-partidária, dentre outras áreas da sociedade.

Portanto, este tipo de política procura fazer valer a igualdade de direitos e oportunidades plena e concreta, como previsto na Constituição Federal de 198861 e lança mão de uma diferenciação positiva em prol de um grupo historicamente discriminado, “ampliando sua participação em diferentes setores da vida econômica, política, institucional, cultural e

61Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (Constituição Federal Brasileira, 1988).

53 social” (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 56). Sob esse ponto de vista, a aplicação de ações afirmativas não devem ser objeto de reflexão e de luta exclusiva das minorias, marginalizadas dos espaços de prestígio da vida social nacional, mas sim de todas as pessoas que almejam construir uma democracia plena (MOYA, 2014).

Numa definição sintética, as ações afirmativas “se caracterizam por serem temporárias e por serem focalizadas no grupo discriminado; ou seja, por dispensarem, num determinado prazo, um tratamento diferenciado e favorável com vistas a reverter um quadro histórico de discriminação e exclusão” (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 56). Nesse sentido, ao considerar a formulação de Aristóteles, segundo a qual a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, as ações afirmativas pressupõem a aplicação de discriminação positiva, ou seja, tratar os excluídos de maneira privilegiada a fim de sanar as desigualdades existentes, objetivando a igualdade plena e concreta.

A justificativa para a implementação de ações afirmativas se dá no diagnóstico da existência de desigualdade entre grupos que compõem a realidade social no presente, aliada a uma interpretação histórica que revele os motivos pelos quais determinado grupo se encontra subalternizado. Assim, além de representar a busca por uma igualdade entre grupos que compõem a sociedade no presente, as ações afirmativas podem ser justificadas pela reparação histórica, destacando os elementos que contribuem historicamente na perpetuação de determinada desigualdade no presente, para corrigi-los por meio destas políticas públicas. Somado a perspectiva reparatória, como enfatiza Moehleck, as ações afirmativas carregam em si dimensão preventiva, relacionada ao futuro:

[...] podemos falar em ação afirmativa como uma ação reparatória/compensatória e/ou preventiva, que busca corrigir uma situação de discriminação e desigualdade infringida a certos grupos no passado, presente ou futuro, através da valorização social, econômica, política e/ou cultural desses grupos, durante um período limitado. A ênfase em um ou mais desses aspectos dependerá do grupo visado e do contexto histórico e social (MOEHLECK, 2002, p. 203)

Podemos dizer que as ações afirmativas incidem nas três esferas da temporalidade – passado, presente e futuro -, variando de intensidade, de acordo com o contexto histórico e social no qual ela pretende atuar, e modulando as justificativas de quem defende sua implementação. No caso brasileiro, objeto deste estudo, há uma expansão da justificativa de caráter reparatório das ações afirmativas para a população negra nas décadas de 1980 e 1990, a qual adquire cada vez mais espaço dentro da dinâmica de ação dos movimentos sociais negros, cujo ápice pode ser reconhecido no início do século XXI, como veremos no próximo

54 capítulo. Contudo, esse fator não altera a capacidade das ações afirmativas de intervir no presente e no futuro, seja como produtora de igualdade concreta de direito ou na prevenção de atos discriminatórios.

Para uma melhor compreensão do conceito de ações afirmativas aplicadas à população negra brasileira, demonstraremos como o conceito é teorizado pelos intelectuais que se especializaram no tema.

3.2 Pilares de sustentação da desigualdade racial no Brasil: as ações afirmativas para a