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4 A TEORIA DO DESMEMBRAMENTO CONSTITUCIONAL

4.1 Conceito

No Séc. XXI têm-se observado movimentos legislativos que, embora mantenham a ordem jurídica instituída pela Constituição vigente, rompem com a sistemática política e jurídica concebida pelo legislador originário. São respeitados trâmites formalmente previstos para a aprovação de alterações legislativas na forma de emendas, fazendo com que haja uma reivindicação de legitimidade das modificações produzidas. As alterações são pontuais e têm como efeito a deliberada redefinição de diretrizes inicialmente concebidas por textos constitucionais. É respeitado o procedimento, mas em conteúdo, a finalidade é a de se desconstruir pilares sobre os quais a Constituição em questão é mantida.

As alterações significativas no texto constitucional que têm sido observadas são definidas pela doutrina tradicional como “emendas”, em atenção às formalidades às quais se submetem para que sejam realizadas. Todavia, esta conceituação se revela imprópria no que concerne ao “conteúdo” por elas enunciado. Não se adequam às ideias de emenda corretiva, em que se pretende a retificação de uma falha técnica, ou emenda elaborativa, em que se pretende a ampliação de um espectro de significações já positivadas. Há o rompimento autoconsciente com premissas e pressupostos específicos e considerados relevantes quando da manifestação originária do poder constituinte.

Não se trata de uma nova Constituição, uma vez que esta não tem a sua vigência interrompida. Tratam-se de alterações que, de tão expressivas, resultam em uma nova fundação ou em princípios que contradizem os anteriormente previstos, promovendo uma

guinada nas concepções e diretrizes constitucionais, tornando a Constituição irreconhecível18 (ALBERT, 2018, p. 2-3, tradução nossa).

A classificação dessas modificações como emendas, tão somente em decorrência do procedimento, tem se revelado imprópria. Tampouco caracterizam-se tais modificações como uma nova Constituição, uma vez que não há interrupção da ordem jurídica, mas alteração transformativa em sua substancialidade. Daí decorre a necessidade de estabelecer-se um conceito capaz de singularizar o meio-termo produzido, respeitando tanto a forma, quanto o conteúdo desse fenômeno legislativo. É o que se define por desmembramento constitucional (ALBERT, 2018):

Um desmembramento constitucional, por outro lado, é incompatível com a estrutura existente de uma constituição porque procura alcançar um objetivo conflitante. Procura deliberadamente desmontar uma ou mais das partes elementares de uma constituição. Um desmembramento constitucional altera um direito fundamental, uma estrutura de suporte de carga ou uma característica central da identidade de uma constituição. É uma mudança constitucional entendida pelos atores políticos e pelo povo como inconsistente com a constituição no momento em que a mudança é feita. Para usar uma abreviação grosseira, o objetivo e o efeito de um desmembramento constitucional são os mesmos: desfazer uma constituição. Sugiro também neste artigo que o desmembramento constitucional pode ocorrer por interpretação judicial, mas me concentro principalmente no desmembramento fora dos tribunais.19 (p. 4,

tradução nossa)

O desmembramento constitucional é o fenômeno identificado por ALBERT e presente em diversos países em que atores políticos, dotados ou não de respaldo popular, em um movimento consciente, aprovam mudança constitucional com a finalidade de romper com uma lógica que a antecede. É o conceito que permite singularizar tais rupturas produzidas dentro de uma mesma Constituição, como forma de diferenciá-las da ideia de emendas constitucionais na forma como são ordinariamente compreendidas. Não tem por objetivo a avaliação dos efeitos democráticos ou do grau de justiça que as mudanças instrumentalizadas

18 (...) some constitutional amendments are not amendments at all. They are self-conscious efforts to repudiate

the essential characteristics of the constitution and to destroy its foundations. They dismantle the basic structure of the constitution while at the same time building a new foundation rooted in principles contrary to the old.(...) This reconstructed constitution becomes virtually unrecognizable to the pre-change generation, for whom the constitution now seems entirely new, not merely amended. And yet—here is the problem—we identify transformative changes like these as constitutional amendments no different from others.

19 A constitutional dismemberment, in contrast, is incompatible with the existing framework of a constitution

because it seeks to achieve a conflicting purpose. It seeks deliberately to disassemble one or more of a constitution’s elemental parts. A constitutional dismemberment alters a fundamental right, a load-bearing structure, or a core feature of the identity of a constitution. It is a constitutional change understood by political actors and the people to be inconsistent with the constitution at the time the change is made. To use a rough shorthand, the purpose and effect of a constitutional dismemberment are the same: to unmake a constitution. I also suggest in this Article that constitutional dismemberment can occur by judicial interpretation, but I focus primarily on dismemberment outside of courts.

ensejam. Limita-se ao caráter descritivo e não-normativo, de forma a reunir sob uma mesma definição rupturas que vêm sendo produzidas sob a forma de emendas constitucionais, mas que em conteúdo deixam de “emendar” para verdadeiramente “romper” com a norma jurídica. “Emendar uma constituição é elaborá-la à luz da experiência ou libertá-la de uma falha descoberta”20 (ALBERT, 2018, p. 29, tradução nossa). O que se tem observado é a ressignificação de paradigmas constitucionais, levada à cabo por atores políticos sob a designação de emenda. Não se tratam de correções valendo-se da experiência ou da supressão de falhas pontuais. “Um desmembramento constitucional (...) envolve uma transformação fundamental de um ou mais compromissos centrais da constituição” 21 (ALBERT, 2018, p. 30, tradução nossa).

Essa distinção entre o que seria uma emenda e o que seria desmembramento se faz necessária em razão de problemas contemporâneo identificados no campo da mudança constitucional. Como a hipótese de uma possível degeneração democrática liberal, em que direitos considerados fundamentais pela Constituição seriam modificados, alterados ou suprimidos, invocando-se a constitucionalidade formal do procedimento de aprovação das mudanças e a impossibilidade de se declarar a inconstitucionalidade material de emendas constitucionais. Como a hipótese das chamadas “juristocracias”, em que o Poder Judiciário, muitas vezes por temor à citada degeneração, interviria de forma recorrente na esfera de competência do Poder Legislativo, produzindo um desequilíbrio entre o balanço dos Poderes, a despeito de, na maioria dos países, não se tratar de um Poder cujos representantes sejam escolhidos de forma direta pela povo22. Como as hipóteses em que o constitucionalismo tradicional exigiria a invocação de um poder constituinte originário para a realização de modificações em determinados dispositivos da Constituição, sujeitando o país ou à possível perpetuação de dispositivos incondizentes com a realidade fática, ou às instabilidades da descontinuidade legal, afastando-se da ideia de resiliência constitucional (ALBERT, 2018)23.

São formulados três questionamentos por Albert (2018) como orientadores de sua teoria. Como distinguir a multiplicidade de mudanças às quais as constituições estão sujeitas?

20 To amend a constitution is to elaborate it in light of experience or to free it from a discovered flaw.

21 A constitutional dismemberment (...) involves a fundamental transformation of one or more of the

constitution’s core commitments.

22 A este respeito, não se pretende aqui a defesa da eleição de membros do Poder Judiciário, mas tão somente

problematizar o caráter democrático de Tribunais que, temendo a degeneração democrática mencionada, admitem a hipertrofia daquele Poder, incorrendo em uma espécie de degeneração democrática produzida por outra via.

Se e como os tribunais devem avaliar a constitucionalidade de mudanças constitucionais? Qual é o desenho atual das regras textualmente previstas para mudanças constitucionais?

O rompimento descrito por Albert (2018) tem sido reproduzido igualmente pela via infraconstitucional. Há situações em que a Constituição tem a sua significação alterada pela via legislativa comum. Mas, seja via emenda, seja via lei ordinária, o que se tem é a ruptura com o paradigma constitucional sendo realizada por meio de procedimento legislativo inadequado. Isso ocorre na medida que o reconhecimento de uma possível inconstitucionalidade formal da lei ordinária dependeria de um prévio reconhecimento de que a matéria ali versada objetaria matéria constitucional. Não há como analisar a forma sem analisar o mérito.

No caso da Lei 13467/17, pretende-se demonstrar que seu mérito rompe com paradigmas constitucionais. Reconhecida esta ruptura, a conclusão ordinária seria a de que a realização do controle de constitucionalidade concentrado seria a via adequada para a neutralização da anomalia produzida.

Ocorre que a discrepância existente entre a Constituição de 1988 e a reforma trabalhista não está na mesma ordem de grandeza que uma alteração constitucional feita pela via inadequada. Declarar a inconstitucionalidade formal ou material da Lei 13467/17, pode significar a declaração da constitucionalidade formal da matéria por ela versada, acaso proposta na forma de emenda. A Lei 13467/17 modifica matéria constitucional, mas seus efeitos transcendem os efeitos modificativos ordinariamente aceitos pela forma de emenda constitucional.

O desmembramento identificado e descrito por Albert (2018) subsiste quando se analisa a reforma trabalhista, o que é reforçado quando da análise do cenário político-jurídico desencadeado no país após 2016.

A mudança produzida pela Lei 13467/17 é expressiva. Rompe com valores, limita direitos e altera a estrutura do Direito do Trabalho. Compreender o fenômeno do qual a aprovação da reforma trabalhista deriva e identificar a reforma de maneira adequada é um ato de honestidade descritiva. Isso permitiria que seus efeitos sejam analisados sob o viés adequado, propondo-se soluções que melhor se amoldam à sua realidade.