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4 O CONCEITO DE GÊNERO E DE MASCULINIDADES

4.1 O CONCEITO DE GÊNERO

Talvez a primeira manifestação do conceito de gênero esteja inscrita na célebre frase: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” de Simone de Beauvoir publicada no livro O

Segundo Sexo, elaborado entre 1946 e 1948. Essa frase destaca que não é natural ser mulher,

mas é necessário aprender a ser, visto que a elaboração acerca do feminino não é biologicamente ofertado, mas é construído pela sociedade (SAFFIOTI, 1999).

O termo “gênero” surge no campo científico em 1950 através dos estudos a respeito da transexualidade, desenvolvidos por pesquisadores norte-americanos (ARAÚJO; SCHRAIBER; COHEN, 2011). Trata-se de um conceito cunhado pelas ciências sociais, que se refere à construção social do sexo, distinguindo a dimensão biológica da social. Isto é, apesar de existirem machos e fêmeas na espécie humana, a qualidade de ser homem e de ser mulher é determinada pela cultura. Ele objetiva direcionar para a não-continuidade entre o sexo físico e o sexo social (HEILBORN, 1997).

Ao se comparar diversas sociedades, evidenciam-se diferentes construções sociais acerca dos papéis e características dos homens e das mulheres, o que enfraquece a hipótese da naturalização dos comportamentos sociais e fortalece a proposição de que é a cultura que constrói o gênero. Assim, os comportamentos esperados de homens e mulheres são fruto de convenções sociais sobre o gênero num determinado contexto específico e na relação entre as pessoas (HEILBORN, 1997).

A mais clássica conceituação do gênero difundida no Brasil foi a apresentada pela historiadora Joan Scott (1995). Ela conceituou gênero como as construções sociais sobre os papéis dos homens e das mulheres na sociedade. Sendo uma categoria social imposta ao corpo sexuado, pode incluir a categoria sexo, ainda que não seja diretamente determinado por ela. Para a autora, o gênero é a primeira maneira de dar significado às relações de poder na sociedade. Portanto, o conceito se origina na noção de cultura, explicando que os fatos da vida social, bem como os vetores que a organizam como são produzidos e sancionados socialmente por um sistema de ideias e valores que compõem uma realidade coletiva, autônoma e

34 parcialmente inconsciente das pessoas do grupo (HEILBORN, 1997).

Dessa maneira, o conceito de gênero enquanto categoria analítica possui uma propriedade heurística para refletir as relações de poder, construídas socialmente e existentes entre homens e mulheres, e dentro do próprio agrupamento masculino. A categoria gênero torna-se, portanto, um constructo teórico capaz de incorporar analiticamente as diferentes posições sociais de homens e mulheres, sem que haja uma redução às dessemelhanças estritas ao sexo biológico.

Joan Scott, em entrevista concedida à Grossi, Heiborn e Rial (1998, p. 115) explica que o gênero se refere “ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se refere apenas às ideias, mas também às instituições, às estruturas, às práticas quotidianas, como também aos rituais e tudo que constitui as relações sociais”. E conclui que “o gênero é a organização social da diferença sexual” e, portanto, “não reflete a realidade biológica primeira, mas ele constrói o sentido dessa realidade”.

Muitas vezes, os termos sexo e gênero são usados erroneamente como sinônimos. Todavia, sob a perspectiva crítica de gênero, estes termos ganham outra conotação. Segundo Heilborn (1997), a palavra sexo se restringe, no jargão da análise sociológica, à caracterização anátomo-fisiológica e à atividade sexual. Já o gênero diz respeito às construções culturais dos sujeitos sobre as diferenças entre homens e mulheres, fato que transcende o âmbito estritamente biológico. Essa diferenciação ficou conhecida como “sistema sexo-gênero” (NARVAZ; KOLLER, 2006). Nesse sentido, as concepções de gênero podem se comportar de variadas maneiras de uma cultura para outra e em diferentes momentos históricos e não necessariamente possuir um comportamento linear e universal (KORIM, 2001).

O movimento feminista teve um papel importante na construção do conceito de gênero. Além disso, o movimento também desestabilizou o sistema de gênero corrente e a maneira como as pessoas construíam suas percepções a respeito do próprio conceito (CONNEL; LECTURE, 2002). Embora o feminismo contemporâneo baseie-se numa diversidade de discursos e de tendências, ele assenta-se em bases comuns. As feministas analisam que a opressão de gênero, classe e etnia esteve presente em diversas sociedades ao longo da história e denunciam que a experiência dos homens tem sido privilegiada ao longo da história, enquanto que a das mulheres tem sido negligenciada e desvalorizada (NARVAZ; KOLLER, 2006).

35 (ou gerações) históricas. Vale ressaltar que essas diferentes fases não podem ser compreendidas apenas a partir de uma estanque perspectiva cronológica, porque as características específicas de cada período estão entrelaçadas entre si, chegando até mesmo a coexistir. A primeira fase histórica diz respeito ao surgimento do movimento, denominado de movimento liberal de luta das mulheres, que foi caracterizada principalmente pela luta pelos direitos civis, políticos e educativos, conhecida também como movimento sufragista na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos e na Espanha (NARVAZ; KOLLER, 2006).

A segunda fase ocorreu nas décadas de 1960 e 1970, principalmente nos Estados Unidos e na França. Neste país, as feministas destacavam a necessidade de valorização das diferenças entre homens e mulheres, colocando em tela a experiência feminina, que até então era negligenciada. Esse movimento ficou conhecido como “feminismo da diferença”. Já as feministas americanas concentraram-se em denunciar a opressão masculina sobre as mulheres, desenvolvendo a luta pela igualdade entre os sexos, movimento que ficou conhecido como “feminismo da igualdade” (NARVAZ; KOLLER, 2006).

Na década de 1980, surge a terceira fase do movimento feminista. Sob a influência do pensamento pós-estruturalista, passa-se à ênfase na questão da diferença, nas subjetividades e na singularidade das experiências, concentrando-se na “análise das diferenças, da alteridade, da diversidade e da produção discursiva da subjetividade”. (NARVAZ; KOLLER, 2006, p. 642).

Além das categorizações cronológicas, Scott (1995) divide as várias abordagens, de acordo com suas concepções metodológicas, em três posicionamentos distintos. O primeiro deles parte do esforço em tornar evidente e explicar o patriarcado, teoria que explicava o fenômeno de subordinação das mulheres basicamente por conta da “necessidade” de dominação do macho. As críticas feitas a esse posicionamento eram no sentido de que ele não elucidava de fato os mecanismos da relação entre estas desigualdades de gênero com outros tipos de desigualdades (classe social, raça, etc.).

O segundo posicionamento teve influência de cunho marxista, possuindo uma abordagem histórica com compromisso com a crítica feminista, propondo que o patriarcado e o capitalismo são sistemas em constante interação. No entanto, com a evidência de que a subordinação das mulheres é anterior ao capitalismo, e que foi também reproduzida em sociedades socialistas, houve diversas críticas ao feminismo marxista no sentido de que nesta perspectiva a causalidade econômica acabou ganhando muito mais notoriedade (SCOTT,

36 1995).

Finalmente, um terceiro posicionamento é colocado através dos estudos da estruturação psíquica da identidade de gênero, que é cunhada pelas teóricas pós-estruturalistas francesas e anglo-americanas. Uma crítica que se aponta a esta corrente é direcionada à limitação do conceito de gênero ao âmbito familiar e doméstico, que o desarticula de outros sistemas sociais, econômicos, políticos ou de poder (SCOTT, 1995).

No campo brasileiro da saúde, até a década de 1980, as mulheres foram estudadas através de uma perspectiva materno-infantil, com ênfase nas explicações biológicas para os fenômenos que as envolvia (AQUINO et al., 2003). O começo da introdução das questões de gênero na saúde pode ser demarcado com a proposição do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), nos anos 80, como parte da Reforma Sanitária Brasileira e do campo da Saúde Coletiva. O PAISM foi construído pelos profissionais de saúde deste campo, juntamente com o movimento social feminista. Os formuladores do PAISM criticavam a abordagem estritamente biomédica da mulher perpetrada através de práticas de cuidado voltadas prioritariamente para o âmbito da reprodução (SCHRAIBER; FIGUEIREDO, 2011).

A partir da referida década, começaram a surgir os primeiros núcleos de estudo sobre a mulher nas universidades brasileiras (AQUINO, 2006). Com a democratização do país, o movimento de mulheres teve um papel importantíssimo no setor saúde, especialmente no que se refere às discussões sobre as iniquidades de gênero, a necessidade da integralidade da assistência à saúde da mulher e da humanização, bem como a luta contra a discriminação e opressão (AQUINO et al., 2003).

No campo da Saúde Coletiva, diversos autores têm discutido a naturalização histórica, baseada em teorias biológicas, das diferenças em saúde entre homens (considerados modelos universais) e mulheres (consideradas como outro, especial e desviante. Tais autores têm caminhado no sentido de mostrar que essas diferenças não são naturais, mas é um resultado de concepções de gênero (AQUINO, 2006), levando em consideração as relações sociais alicerçadas nas diferenças entre os sexos, o que contribuiu para melhor compreensão do processo saúde-doença-cuidado (AQUINO et al., 2003).

Algumas questões no cenário brasileiro foram imprescindíveis para a emergência da necessidade de abordagens teóricas interdisciplinares e socioculturais das condições e práticas de saúde, orientadas pelo conceito de gênero. Entre elas, destaca-se a emergência da AIDS, que desafiou o enfoque estritamente biomédico-epidemiológico, mostrando seus limites para

37 analisar em profundidade as relações entre saúde e sociedade, a propósito de uma epidemia tão complexa. Essa situação proporcionou abertura e legitimidade no campo das ciências da saúde para as interpretações socioantropológicas (AQUINO et al., 2003).

Houve um aumento da produção científica sobre gênero, sexualidade e saúde reprodutiva, principalmente nos anos 90, com a criação dos grupos de gênero e saúde na Saúde Coletiva (AQUINO, 2006). Assim, nasceu a necessidade de estratégias para o aprimoramento teórico-metodológico dos estudos de gênero, surgindo em 1996 o Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa de Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, o qual envolveu diversos centros de pesquisa do país com uma variedade de abordagens temáticas e disciplinares na condução de pesquisas de interesse para a saúde coletiva (AQUINO et al., 2003).

Ao realizar um estudo sobre o perfil e tendências da produção científica do gênero e saúde no Brasil, Aquino (2006) mostrou que a maior parte desta produção localiza-se na região Sudeste (principalmente no eixo Rio de Janeiro - São Paulo), a liderança dos grupos de pesquisa é majoritariamente composta por mulheres e o campo da saúde coletiva abarca a maior quantidade de grupos de pesquisa sobre gênero e saúde, assim como contam com o apoio de agências internacionais e pelo Ministério de Ciência e Tecnologia. Os temas pesquisados podem ser classificados em cinco grupos principais: trabalho e saúde; reprodução e contracepção; violência de gênero; sexualidade e saúde, com ênfase nas DST/AIDS.

Em pesquisa bibliográfica recente, Araújo, Schraiber e Cohen (2011) acrescentam aos temas apontados por Aquino (2006), a temática sobre os agravos à saúde e masculinidades. Além disso, elas realizaram um exame do uso do conceito de gênero nos estudos publicados. Os estudos caracterizados como coerente eram àqueles em que o conceito tinha sido apresentado na introdução e efetivado ao longo do texto (métodos, análise dos dados e discussão). O uso do conceito de gênero considerado pelas autoras como “completo” referiu-se ao uso de todo o seu potencial teórico-analítico da teoria feminista, o qual incluiu as dimensões socioculturais e a análise das desigualdades de poder –constitutivas das relações de gênero. As autoras apontam que o conceito foi utilizado muitas vezes de modo estereotipado, sendo tomado como sinônimo de “mulher”, ou apenas se opondo à categoria “sexo”, no sentido de distinção entre o fator cultural e o biológico, tornando-o como uma variável empírica, e não como categoria analítica como propõe a perspectiva feminista; ou mesmo, apenas para enfatizar a dimensão relacional do conceito, sem considerar as desigualdades de

38 poder – fundamento central do conceito (ARAÚJO; SCHRAIBER; COHEN, 2011).

De fato, houve um crescimento significativo dos estudos de gênero em todas as áreas da Saúde Coletiva. Porém, o crescente uso do conceito de gênero envolve problemas de natureza epistemológica, diante de desafios presentes em sua operacionalização analítica (ARAÚJO; SCHRAIBER; COHEN, 2011). Percebe-se, portanto, a necessidade de uma constante reflexão sobre a história desse conceito, pois ele foi apropriado por cientistas sociais que nem sempre são feministas (GROSSI; HEIBORN; RIAL, 1998).

Apesar dos problemas apresentados, um passo fundante foi dado no sentido da transversalidade de gênero como maneira de interpretar e explicar as questões da saúde, visto que o conceito está presente em todas as áreas da Saúde Coletiva. Todavia, torna-se necessário, sob o ponto de vista epistemológico, a consistência do uso do conceito como “categoria analítica histórica”, pois “só assim os estudos em saúde contribuiriam com o desenvolvimento do significado de gênero em questões próprias ao campo” (ARAÚJO; SCHRAIBER; COHEN, 2011, p. 815).