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3. A DOUTRINA DE THEMISTOCLES CAVALCANTI

3.1. AS CONCEPÇÕES BÁSICAS DO AUTOR

3.1.2. Conceito de direito administrativo

Para Cavalcanti, a Teoria do Estado, sobretudo a sua doutrina particular (Georg Jellinek), antecede o estudo do direito administrativo, mas não o esgota, tratando-se, portanto, de uma introdução geral. (1938a, p. 05; 07)27

Inicialmente, convém tratar da relação entre o direito administrativo e os demais ramos do direito. Apesar das íntimas relações entre eles não se poderia confundir o direito administrativo com o

26 Para auxiliar nos tópicos seguintes convém mencionar que essa obra, muito

embora publicada no ano de 1938, foi redigida nos anos de 1936 e 1937, antes da outorga da Carta de 1937 (1938a). Quanto ao segundo volume das

Instituições de Direito Administrativo Brasileiro (1938b), quando a obra estava

no prelo instaurou-se o regime discricionário de Vargas. Em sendo assim, esse livro conta com uma introdução na qual Cavalcanti esforça-se em analisar o direito administrativo à luz da nova Carta.

27 O título 1 (“Princípios fundamentais do Estado”) da primeira parte da obra

Instituições de Direito Administrativo Brasileiro (1938i), volume 1, aborda

temas da ciência política e da teoria geral do Estado. Capítulo 1 – O Estado e seus elementos; Capítulo 2 – Formas de Estado; Capítulo 3 - A Federação e o Estado Federal Brasileiro. Segundo o jurista, “A theoria geral do Estado é

matéria que interessa mais directamente á sociologia e ao direito constitucional. Só accidentalmente e como introducção ao direito administrativo, pode ser aqui examinada.” (1938a, p. 04)

constitucional, o direito público, a ciência da administração, etc. (CAVALCANTI, 1938b, p. 19)

Não era possível analisar isoladamente nenhum ramo do direito, eis que “a unidade do direito é um pressuposto da sua propria concepção.” (CAVALCANTI, 1938b, p. 19).28 O direito administrativo teria uma “intima relação” (1938b, p. 19) com o constitucional, o internacional, o civil e o penal; dentre eles a maior afinidade ocorria com o primeiro, pois eram “tão intimas que a difficuldade maior consistiria em estabelecer uma distincção entre os dois ramos do direito público.” (CAVALCANTI, 1938b, p. 20)

Quanto ao direito internacional, a relação se dava, sobretudo, por conta dos tratados e convenções internacionais relativas ao poder de polícia, existindo, inclusive, um “direito administrativo internacional” que consistia na “applicação do direito administrativo para resolver questões de direito interno, mas que interessam directamente á ordem internacional. E’, assim, a applicação das leis administrativas de direito interno nas relações internacionaes”. (CAVALCANTI, 1938b, pp. 22-23)29

O regime jurídico brasileiro possuía uma tendência civilista, por isso a relação entre direito administrativo e direito civil era evidente, nomeadamente nas relações administrativas que não se reservavam à esfera do direito público (interesses secundários). Porém, ao contrário de outros doutrinadores (Fritz Fleiner), para Cavalcanti os princípios gerais de direito privado possuíam aplicação secundária nas relações “estrictamente de direito público, visto como este se acha sujeito a

28 “Seguindo um processo de differenciação, a materia juridica vae se

destacando das diversas disciplinas jurídicas, creando, assim, ramos novos do direito com caracter autônomo.” (CAVALCANTI, 1938b, p. 27)

29 Para o autor, com fundamento no italiano Fedozzi (Diritto amministrativo

Internazionale), havia uma diferença entre direito internacional administrativo e

direito administrativo internacional, porém essa diferenciação é pouco clara.

“[...] O direito internacional administrativo é aquelle que contém normas que interessam á administração e que se acham na esfera do direito administrativo, emquanto que o direito administrativo internacional é aquelle ramo do direito administrativo cuja applicação, embora esteja comprehendido no direito interno, no entretanto, recahe no campo do direito internacional, porque ou se refere a extrangeiros, ou envolve interesses intimamente ligados a pessoas naturaes ou jurídicas extrangeiras. E’ o terreno dos estudos sobre a tributação de emprezas internacionaes, da nacionalização de emprezas extrangeiras, etc.”

principios peculiares inherentes á propria definição do Estado.” (1938b, p. 25).

Ao contrário de outros autores (Goldschmidt e Sylvio Longi), Cavalcanti se alinha a Arturo Rocco e nega a existência de um direito penal administrativo, nomeadamente porque “Não se confundem as sanções administrativas com as penas criminaes. As suas finalidades são diversas e o procedimento para sua imposição distingue-se nitidamente”. (CAVALCANTI, 1938b, p. 28).30

Quanto ao direito constitucional, a dificuldade residia não apenas em traçar linhas divisórias ou pontos de contato, mas sim em estabelecer uma diferença em si. Segundo Cavalcanti, o direito administrativo estaria “subordinado” ao constitucional já que a esse caberia definir a estrutura do Estado (sua organização, composição dos poderes e as garantias individuais e sociais). O direito administrativo, por sua vez, estudava o mecanismo, o funcionamento, a organização e a atividade do Poder Executivo e a execução dos serviços públicos. (1938b, p. 20)31

A referida subordinação se dava na medida em que a organização administrativa estava sujeita às transformações da estrutura constitucional do Estado: “o direito administrativo terá sempre o caracter e a physionomia do direito constitucional.” (1938b, p. 20). Na lição de Von Stein, o direito administrativo “era a constituição em movimento”; segundo Santi Romano, o difícil seria saber “onde acaba o direito constitucional e começa o direito administrativo.” (apud CAVALCANTI, 1938b, p. 20)32

30 “A questão pode ser apreciada sob o ponto de vista material, isto é, quanto

ao conteúdo, à natureza das sancções administrativas, e sob o aspecto formal, quer dizer, no que se refere á competencia e ao processo para a applicação das sancções e penas decorrentes do regimen administrativo.” (CAVALCANTI,

1938b, p. 25)

31 Definição semelhante foi dada por Hely Lopes Meirelles: “Daí termos

afirmado que o Direito Constitucional faz a anatomia do Estado, cuidando de suas formas, de sua estrutura, de sua substância, no aspecto estático, enquanto o Direito Administrativo estuda-o na sua movimentação, na sua dinâmica.”

(MEIRELLES, 1966, p. 10)

32 No entanto, ao citar a lição de Von Stein acaba por ressaltar o caráter decisivo

da estrutura administrativa para a validade e a eficácia de uma constituição. “Finalmente, VON STEIN, estabelecendo a unidade da idéa política, considera

o direito administrativo a constituição em movimento, apresentando os seguintes corollarios ao principio acima firmado: a) o valor de uma Constituição determina-se em relação aos seus meritos em face á administração; não se pode, assim, ajuizar em definitivo sobre o merito de uma

Não obstante essa “subordinação” do direito administrativo ao constitucional, não raro a prática administrativa, tanto no Brasil como no estrangeiro, ocorria à margem das constituições (v.g. decretos-leis, delegações legislativas) e, aos olhos de Cavalcanti, como será visto, isso não parecia tão problemático. Ao que se conclui que essa subordinação era relativa.

Ao tratar da diferença entre Direito Administrativo e Ciência da Administração, Cavalcanti expressa o seu entendimento sobre o conceito de direito e de direito administrativo. A ciência da administração possuía um caráter mais próximo à política, relacionando- se com a conveniência e a oportunidade das diversas formas de agir do Estado. Por isso se ocuparia mais particularmente com a política e a técnica da administração, não se enquadrando dentro da “rigidez das normas jurídicas”. Portanto, a ciência da administração teria a “maleabilidade das ciências empíricas que se amoldam às conveniências de momento e às exigências do interesse público e da administração”. (CAVALCANTI, 1964b, pp. 16-17)

O Direito Administrativo não se confundia com a ciência da administração, mas a pressupunha para poder melhor definir seu objeto. Enquanto a ciência da administração indicava os processos técnicos que presidiam a atividade administrativa (problemas de direção, de material, de contabilidade, etc.), as normas de direito administrativo, partindo desses elementos, deviam fixar os preceitos reguladores dos serviços públicos, da função pública e das relações entre administração, Estado e particulares. Portanto, competia ao direito administrativo promover a “ordem e a harmonia da vida do Estado com a administração”. Existe, desse modo, uma separação de ordem analítica, porém, nas questões práticas, ciência da administração e direito administrativo se complementavam. (CAVALCANTI, 1964b, pp. 16-17)

A ciência da administração precedia o direito administrativo do ponto de vista histórico e colhia sua inspiração doutrinária nos mesmos princípios da ciência política. Segundo o autor “O essencial é considerar o seu conteúdo como eminentemente técnico e político. A conveniência, o interesse e a oportunidade é que regem os seus princípios. Ao direito administrativo cabe conciliar a finalidade

Constituição, senão considerando as sua affinidades com a administração. b) quando um povo começa a duvidar sériamente de uma certa administração, essa duvida, dentro em pouco, se transformará certamente na duvida sobre o valor da Constituição.” (apud CAVALCANTI, 1938b, pp. 20-21)

daqueles princípios com os princípios de direito”. (CAVALCANTI, 1964b, pp. 16-17)

O direito administrativo, por sua vez, era modernamente definido em função dos conceitos de serviço público e de intervenção estatal. Isso se justifica pela “amplitude que vem tomando essa disciplina, acompanhando a intervenção cada vez maior do Estado em todos os setores da atividade humana”.33 Seu campo abarcaria apenas os princípios e as normas jurídicas, “excluídas as outras normas de natureza política ou mesmo de ética, que interessam a vida administrativa do Estado”. Para Cavalcanti, o conceito do italiano Ferrari seria o mais exato: “[...] uma ciencia de organismo, de procedimento jurídico e de tutela jurídica.” (1962c, pp. 17-18)

Percebe-se dessa distinção, também encontrada em outros autores da época, um esforço em separar ciência da administração e direito administrativo visando a dar maior objetividade científica a este último (racionalização formal). Os temas políticos eram deixados à ciência da administração, enquanto o direito administrativo repousava em um mundo jurídico pautado pela técnica. Digno de destaque é que os princípios que regiam a ciência da administração (conveniência/oportunidade/interesse), não por acaso, coincidiriam com as diretrizes do chamado ato administrativo discricionário.

Muito embora isso não fosse assumido explicitamente por Cavalcanti, é possível, a partir de suas obras, ver a discricionariedade mais próxima da Ciência da Administração do que do Direito Administrativo, ou seja, ela pertenceria mais à flexibilidade das escolhas políticas (uma razão de Estado atualizada) do que à rigidez das normas jurídicas. Por esse motivo, seria defeso ao Poder Judiciário estaria imiscuir-se no mérito dos atos discricionários, salvo em caso de abuso do poder discricionário e consequente violação de um direito individual.34

33 Note-se uma finalidade do direito administrativo para além da concepção

individualista-liberal, contrariando o que Eros Grau disse sobre a doutrina administrativista brasileira (GRAU, 2011, p. 255).

34 “Do poder executivo depende, especialmente, o funcionamento de todos os

serviços públicos, da saúde, da ordem e da segurança coletiva, da vida, da subsistência, do bem estar social de todos os cidadãos. Como realizar essa finalidade, se todos os seus atos, se toda a sua atividade sofrer a contínua fiscalização, o controle permanente do poder judiciário, com o seu critério rígido de apreciação dos fenômenos jurídicos, sem a capacidade de encarar as questões administrativas, por seu aspecto superiormente político, tendo em

Como capítulo inicial de seus manuais, Cavalcanti procurou trazer uma definição de direito administrativo. Para tanto - como era de seu estilo e não destoando do método praticado por outros autores -, ele elenca uma série de conceitos estrangeiros, trazendo à colação Laferrière, Von Stein, Hauriou, Pressuti, Cino Vitta, D’Alessio, Raneletti, Otto Mayer, Uruguai, Fritz Fleiner, Goodnow e Roger Bonnard. Os autores citados em Instituições de Direito Administrativo Brasileiro (1938b) são os mesmos usados na obra Tratado de Direito Administrativo (1964b).

É curioso destacar que, na obra de 1938, dentre todas as definições de direito administrativo, Cavalcanti prefere aquela ofertada pelo jurista francês Roger Bonnard, que “se afigura a definição mais satisfatória, porque abrange toda a complexidade das funcções do Estado” (1938b, p. 08).

“Le droit administratif est cette partie du droit public interne qui a pour objet de prevoir et de régler les interventions administratives de l’État, soit les interventions realisées par le moyen de la fonction administrative et assuréss par les services publics administratifs dont l’ensemble

vista apenas os interesses superiores do Estado? [...] Atos discricionários constitui uma expressão genérica. Compreende modalidades diversas, como, por exemplo, atos políticos, atos de Governo, atos de polícia, etc. Ato discricionário é todo aquêle insuscetível de apreciação por outro poder que não aquêle que o praticou. Compreende, principalmente, de acordo com a doutrina dominante, uma esfera em que predomina o critério da justiça, conveniência, ou oportunidade. Diz mais com o interêsse de que com o direito, e, por esta razão, mais de ordem política de que jurídica, o arbítrio é o elemento que o caracteriza. Existe uma graduação nas diversas modalidades dos atos discricionários. [...] quando a ação dos poderes políticos, no exercício de suas atribuições constitucionais, ferir os direitos individuais, o ato deixa de ser essencialmente, meramente, exclusivamente político para se tornar suscetível de apreciação judicial. [...] Como demonstra muito bem U. Borsi esses atos discricionários da administração não se podem considerar arbitrários, porque ainda se acham vinculados a disposições legais. Apenas, pela sua natureza, fica a administração pública com relativa liberdade na sua aplicação. Por aí se vê como é restrita a ação da autoridade administrativa no exercício dos poderes discricionários que nós chamamos, na esfera puramente administrativa, de poder de polícia. [...] a ação de polícia não pode exceder os limites traçados pela lei positiva. [...] Fica vedada, entretanto, ao exame judicial, a conveniência e oportunidade das medidas”. (CAVALCANTI,

constitue ce qu’on appelle couramment l’administration.” (1938b, pp. 07-08)35

Na publicação de 1964, Cavalcanti muda de opinião, o que não é de se estranhar tendo em vista o passar dos anos e, talvez, por conta das mudanças políticas, ideológicas e administrativas. Após transcrever ipsis litteris a mesma citação atribuída ao jurista francês, Cavalcanti observa que “Não obstante, o valor dessa definição, não nos parece, porém, que ela atenda a todos os ângulos do problema” (1964b, p. 12). Diversamente de outrora, não satisfeito com a doutrina estrangeira, nessa obra acaba por ofertar uma definição própria:

O Direito Administrativo é o ramo do direito público que regula a estrutura e o funcionamento da administração pública, bem como dos organismos criados para executar os serviços públicos; regula, também, as relações entre a administração e terceiros, quando vinculadas às finalidades próprias dos serviços públicos. (1964b, p. 14)

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