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Conceito de direito penal simbólico

1 DIREITO PENAL SIMBÓLICO

1.2 DIREITO PENAL ENQUANTO SÍMBOLO

1.2.2 Conceito de direito penal simbólico

Conforme já abordado, em sentido amplo, o caráter instrumental da norma diz respeito à efetividade. Esta, por sua vez, relaciona-se com a racionalidade teleológica, referindo-se à realização dos fins sociais objetivados, ou seja, a implementação do programa finalístico ou, ainda, a concretização do vínculo meio-fim. Cumpre-se a racionalidade teleológica, então, quando a norma se apresenta efetiva, realizando os fins sociais a que se destina. Dessa definição infere-se que a norma pode ser efetiva, satisfazendo a intenção que enuncia; inefetiva, se dela não deriva a implementação do programa finalístico; ou, ainda, anti-efetiva, se seu efeito é o oposto do planejado, se de sua aplicação decorre o contrário do que se pretendia.

No específico caso da norma penal incriminadora, enquanto instrumento, deve desempenhar a função de proteção subsidiária dos bens jurídicos mais caros à convivência humana e ao pleno desenvolvimento do indivíduo, sendo esta a sua programação finalística. Será efetiva, então, se apresenta aptidão de tutelar referidos bens; não efetiva, se não cumpre a função de proteção; anti-efetiva, quando, em vez de resguardar bens jurídicos, contribui à sua vulneração.

Se a eficácia instrumental do direito penal reside em sua aptidão para prevenir a realização de certos comportamentos, tutelando o bem jurídico, a simbólica (em sentido positivo) é representada por sua capacidade de produzir um certo número de representações individuais ou coletivas, valorativas ou desvalorativas. A função expressiva (simbólica, em sentido positivo) é, assim, incindível à instrumental, servindo-lhe de complemento. A eficácia protetora de bens jurídicos é reforçada por meio das escalas axiológicas, em razão das quais se desvalora a conduta proibida, elevando-a à categoria de delito, transmitidas e reforçadas mediante a representação social acerca da sanção penal. No entanto, a potencialização da função simbólica pode, além de criar aparências (enquanto símbolos), dissimular a inefetividade ou anti-efetividade do programa finalístico (Terradillos Basoco 1995), a tutela de determinados bens.

Assim como no gênero legislação simbólica, aquela que, carecendo de condições objetivas à realização de seu programa finalístico, tem o papel de concretizar realidade distinta da enunciada pela própria norma ou de, simplesmente, transmitir à coletividade determinados padrões valorativos, simulando desempenhar função instrumental, no direito penal simbólico, enquanto espécie, há uma sobreposição das funções latentes, ocultas, sobre as que foram enunciadas pela norma, as manifestas. O déficit de instrumentalidade revela-se pela não realização do vínculo meio-fim, consubstanciada na proteção dos bens jurídicos, finalidade do direito penal.

Em se tratando de legislação simbólica, postula-se uma pretensão normativa de regramento de uma situação, para cuja observância não estão presentes as condições (Hassemer 1995). Enquanto os objetivos manifestos do direito penal, nas sociedades contemporâneas, consistem na proteção de bens jurídicos, consubstanciados, por sua vez, no resguardo de valores relevantes para a vida humana individual ou coletiva (Cirino dos Santos 2017), a expressão “direito penal simbólico” somente faz sentido em uma abordagem da norma penal voltada às consequências, dirigida à transformação social da qual depende a efetiva tutela de referidos bens. Tratando-se o direito penal meramente condicionado à ideia de input, enquanto alimento do sistema (Luhmann 2009), que precisa demonstrar, para sua justificação, apenas que se coaduna conceitualmente com seus pressupostos normativos (constituição, leis), ou mesmo idealizado como mera concretização do programa legislativo condicional para os casos concretos, perde-se completamente a necessidade da caracterização simbólica do direito penal, pois o que lhe marca é, justamente, a oposição entre efeitos latentes (ocultos) e manifestos (Hassemer 1995).

É que as prescrições orientadas para o output (Luhmann 2009) necessitam demonstrar não apenas que são adequadas no plano da legislação e da execução da lei, como também precisam fazer-se bem-sucedidas, tanto em relação ao indivíduo (ressocialização, reinserção), quanto em referência à sociedade (prevenção geral, mitigação da criminalidade). “A prevenção só é uma ideia aceitável quando eficaz” (Hassemer 1995, 31). A função do direito penal deve ser a proteção de bens jurídicos e, face a esse objetivo, as opções político-criminais devem valorar-se, exclusivamente, a partir dos critérios de racionalidade, economia e eficácia (Terradillos Basoco 1995).

Por se tratar de legislação simbólica, quando se conceitua o direito penal simbólico não se deve fazer referência às aspirações volitivas subjetivas, relacionadas à intenção do legislador. Apreender a vontade do legislador é por demais problemático. No processo legislativo, muitas vezes, o legislador não expõe sua vontade, outras ocasiões a dissimula ou não a tem claramente, de forma que quase sempre é impossível identificá-la de maneira segura. Em algumas matérias, sobretudo naquelas em que se desempenham compromissos entre partidos ou grupos com apelos morais divergentes, o legislador é apenas uma figura institucional, destituída de intencionalidade (Hassemer 1995).

Portanto, o conceito de direito penal simbólico deve fundar-se nas qualidades objetivas da norma, de modo a identificar elementos como plausibilidade, possibilidade e função, excluindo-se da apreciação aqueles relacionados à vontade, esperança e interesse – ou seja, investigar se o comando normativo reúne as condições de tornar efetivo o programa finalístico que enuncia. Quando esses termos são utilizados, devem ser entendidos como “vontade”, “interesse”, “intenção” da própria norma (seus efeitos práticos), descarregados de aspirações subjetivas.

É necessário ainda considerar, antes de emitir conceito adequado, que o direito penal simbólico se reveste de conteúdo comparativo (Hassemer 1995). Quase sempre estarão presentes na norma penal suas funções instrumentais e expressivas (simbólicas, em sentido positivo). O que demarcará sua classificação como simbólico (em sentido negativo) será, justamente, a comparação entre seus efeitos manifestos e latentes, de forma a identificar uma relação de preponderância destes.

Deve-se analisar, portanto, em que medida a criminalização responde a finalidade de tutelar bens jurídicos, como continuadamente proclama o poder, ou se, pelo contrário, tem objetivos distintos, tais como a função de estigmatizar determinados tipos de indivíduos ou grupos, de consolidar mecanismos de controle, de reforçar a legitimação do poder, ou de ocultar

Quando assim ocorre, a apregoada tutela penal serve de pretexto para não recorrer a outros meios de proteção mais eficazes, do qual decorre uma desproteção programada (Terradillos Basoco 1995) a partir da enunciação da própria norma.

A perda do equilíbrio entre funções instrumentais e simbólicas da norma penal significa também que estas tornam-se cada vez mais desvinculadas da natureza real dos conflitos e dos problemas em relação aos quais são produzidos os símbolos. A crise da prevenção, da proteção do bem jurídico, da função instrumental da pena dirigida a resolver determinados problemas e conflitos, ao atingir um certo grau de interesse e de alarme social, se converte em pretexto para o tipo de ação política destinada a obter não tanto funções instrumentais específicas, mas um outro papel de caráter geral, consubstanciado na obtenção do consenso buscado pelos políticos na opinião pública (Baratta 1994), em um verdadeiro encobrimento das clássicas funções do direito penal (Baratta 2002).

Também é preciso compreender que o conceito de direito penal simbólico não postula apenas uma descrição indutiva despretensiosa, pelo contrário, carrega forte conteúdo crítico. Submeter a pessoa humana ao processo criminal, emitir um juízo condenatório e executar pena privativa de liberdade, representam fatos graves demais, demasiadamente profundos na experiência pessoal e social, para que se possa aceitá-los, tranquilamente, como meros símbolos (Hassemer 1995). Aliás, adotar passivamente a definição de crime equivale a acreditar na ficção de um direito pretensamente neutro (Shecaira 2014). A marca do direito penal simbólico não é, pois, somente o antagonismo discrepante entre suas funções manifestas e latentes, numa relação de sobreposição destas. Deve-se acrescer o sentido crítico a classificar o fenômeno, ao tempo que o desqualifica enquanto norma.

Parte da literatura jurídica (Voss 1989, Paul 1995, Cuello Contreras 1996) identifica esse sentido crítico a partir dos elementos de ilusão e dissimulação no desempenho das funções instrumentais e simbólicas. Outra linha de pesquisa (Terradillos Basoco 1995, Silva Sánchez 2010, Melossi 1995, Bustos Ramírez 1995) marca o senso crítico do conceito de direito penal simbólico justamente em se negar legitimidade aos efeitos latentes da norma incriminadora, o que não significa deslegitimar sua função expressiva (Díez Ripollés 2002). Embora as duas formas de pensar esse fenômeno a partir de um viés crítico sejam pontualmente divergentes, não é possível apontar antagonismo entre elas.

No entanto, para fins de delimitação, uma vez que a referência à ilusão e dissimulação na realização das funções manifestas e latentes, enquanto fatores característicos do direito penal simbólico e de deslegitimação da norma, apresenta-se mais consentânea com a noção de

legislação simbólica sistematizada por Harald Kindermann (1988), opta-se por esse balizamento.

Assim, tal ingrediente crítico rivaliza aparência com realidade, tendo por parâmetro o elemento específico da ilusão, a hipócrita dissimulação da efetividade, da instrumentalidade, comum a todo tipo de concretização de leis simbólicas (Hassemer 1995). No desempenho de ilusão e dissimulação, a relação entre as funções instrumentais e as funções simbólicas do direito penal tornou-se, por essas razões, um ponto central do debate acerca dos sistemas punitivos e das políticas criminais, tornando-se cada vez mais problemática e contraditória. As funções simbólicas projetam (e realizam) prevalecer sobre as funções instrumentais. O déficit da efetiva tutela dos bens jurídicos é dissimulado pela criação de uma ilusão de segurança e de um sentimento de confiança na norma penal e nas instituições que a sustentam, cuja base concreta se apresenta cada vez mais fragilizada. As normas continuam sendo violadas, a cifra negra das infrações penais permanece elevada, quando não é incrementada, enquanto que as instâncias de controle prosseguem com as imaginárias tarefas instrumentais de realização impossível (Baratta 1994).

Portanto, nesse sentido crítico, norma penal simbólica é aquela segundo a qual as funções latentes se sobrepõem às funções manifestas, criando a perspectiva que seu emprego e efeito concretizarão uma situação diversa da enunciada (Hassemer 1995), representando “um direito destituído de eficácia instrumental e instituído para legitimação retórica do poder punitivo do Estado, mediante criação/difusão de imagens ilusórias de eficiência repressiva na psicologia do povo” (Cirino dos Santos 2017, 451).

Deve-se entender por funções manifestas exclusivamente aquelas concretizações que sua própria formulação anuncia, ou seja, a disciplina dos casos concretos futuros por ela definidos, ou, em outras palavras, a proteção dos bens jurídicos por si tutelados. No que é pertinente às funções latentes, podem se apresentar com múltiplas faces, revelando-se tanto pela satisfação de uma necessidade de ação, como por um apaziguamento social, até à demonstração de um estado forte. A prevalência das funções latentes estabelece o que se chama de ilusão ou dissimulação, circunstância em que os objetivos de regulamentação proclamados pela norma são, comparativamente, diversos dos efetivamente esperados, não sendo possível confiar naquilo que a norma publicamente proclama (Hassemer 1995).

Em casos tais, a pretensa função instrumental do direito penal simbólico destina-se, então, a estender os limites da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito da intervenção, ocultando as funções simbólicas e políticas da ação punitiva, mistificando a

moral que impõe, servindo à reprodução ideológica e material das relações de desigualdade na sociedade (Baratta 1994).

Assim, sempre que o bem jurídico, apresentado como fundamento da criminalização da atividade que lhe põe em risco, a justificar a operação do direito penal, não for satisfatoriamente tutelado, mostrando-se inadequada, inidônea, a intervenção punitiva, ter-se-á forte indicativo que a ultima ratio jurídico-normativa pode estar desempenhando função simbólica, latente, simulando instrumentalidade, ocultando seu déficit, em uma relação de dissimulação e ilusão que em tudo se contrapõe à mais básica noção da política criminal. Insistir em medida inadequada aos fins enunciados somente tem sentido quando a função normativa é cumprir fins não enunciados.

O mesmo pode ocorrer quando a atuação do direito penal se mostre idônea, mas, ante seu caráter subsidiário, apresente-se desnecessária. Se de todos os métodos possíveis, opta-se pela criminalização de determinada atividade, a despeito da existência de alternativas menos danosas à liberdade individual e ao pleno desenvolvimento da personalidade, mais uma vez torna-se plausível que se suspeite do desempenho de funções simbólicas, encobrindo a realidade e realizando controle social cujo imperativo não foi expresso no discurso oficial. Optar por método menos eficiente, mais nocivo que é ao indivíduo, somente tem sentido se a função é outra, estranha ao programa finalístico enunciado, a demandar o meio mais gravoso para realização de seu efeito oculto.

Ainda que adequado e necessário lançar mão da norma criminal para fins de proteção do bem jurídico de índole fundamental, estabelecer abstratamente cominação penal em relação de desproporção com o ato lesivo previamente definido e, sobretudo, insistir nessa estratégia ainda que a evidência demonstre a exasperação, pode indicar que a finalidade da punição está oculta, latente, não prevista expressamente no comando legal. O mesmo se pode afirmar quando a desproporção é apontada pela análise dos demais tipos penais e bens jurídicos por si tutelados, inseridos que estão em um mesmo sistema ou, também, por meio da ponderação acerca da isonomia, cotejando o tratamento penal dado em situações absolutamente similares. Punir para além do razoável ou violando a isonomia é realizar função não autorizada na sistemática do direito penal.

Embora idônea, subsidiária e estritamente proporcional a intervenção realizada pela lei incriminadora na tutela do bem jurídico, se dela decorre para a sociedade dano maior do que o representado pela própria violação do comando normativo, sendo socialmente mais ofensiva, sua persistência também pode indicar a satisfação da necessidade de cumprir programa finalístico não previsto no discurso oficial e, até mesmo, incoerente com os preceitos do direito

penal. Causar à coletividade mal maior do que aquele que se quis ou quer evitar não é o que se pode legitimamente esperar do desempenho da norma criminal.

Tais formas de indícios podem ser confirmadas ou refutadas pela existência ou não de efeitos simbólicos, ocultos pelas funções manifestas. Confirmando-se, o significado político do controle social executado por meio do direito penal e do respectivo sistema de justiça criminal é contemplado nas funções latentes do direito penal simbólico, encoberto pelas funções manifestas do discurso oficial, consubstanciadas na criminalização primária (definição normativa de crimes e penas) e na criminalização secundária realizada pelas agências de controle, sobretudo por meio da polícia, justiça e o instituto da prisão, garantindo-se a “existência e a reprodução da realidade social desigual das sociedades contemporâneas” (Cirino dos Santos 2017, 10).

O direito penal simbólico, assim, carecendo de condições objetivas à tutela do bem jurídico, tem o papel de concretizar realidade distinta da enunciada pela própria norma ou de, simplesmente, transmitir à coletividade determinados padrões valorativos, simulando desempenhar função instrumental, criando a ilusão de proteção a que deveria se destinar.