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1.1 SÚMULA VINCULANTE

1.2.3 Conceito e natureza jurídica

O conceito e a natureza jurídica da repercussão geral das questões constitucionais discutidas em recurso extraordinário estão entrelaçadas, a ponto de confundir-se. Em tom conceitual, cuida-se de pressuposto ou requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, traduzido na importância das questões constitucionais sob os vieses econômico, político, social ou jurídico, assim como quando o recurso divergir de decisão que se mostra contrária a súmula ou jurisprudência dominante do STF. Exerce o papel de filtro, na medida em que limita o processamento dos recursos extraordinários – controle difuso de constitucionalidade, portanto – em cujo bojo o STF não vislumbre os quesitos da relevância das discussões constitucionais ou não identifique a divergência jurisprudencial. Nesse passo, a relevância, a transcendência e a divergência jurisprudencial sobre matéria constitucional representam passos necessários para a uniformização e perfectibilização do direito a partir de um controle concreto de constitucionalidade. É a intitulada objetivação da atuação do STF, de acordo com o entendimento esposado pelo Ministro Gilmar Mendes na questão de ordem no recurso extraordinário de nº 556.664, do Rio Grande do Sul:

Esse novo modelo legal traduz, sem dúvida, um avanço na concepção vestuta que caracteriza o recurso extraordinário entre nós. Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (Verfassugsbeschwerde). Nesse sentido, destaca-se a observação de Häberle segundo a qual “a função da Constituição na proteção dos direitos individuais (subjectivos) é apenas uma faceta do recurso de amparo”, dotado de uma “dupla função”, subjetiva e objetiva, “consistindo esta última em assegurar o Direito Constitucional objetivo” (Häberle, Peter. O recurso de amparo no sistema germânico, Sub Judice 20/21, 2001, p. 33 (49)90.

Relevância e transcendência são conceitos jurídicos indeterminados, os quais serão aquilatados na apreciação do caso em concreto. Recebem essa taxação porque são compostos por um núcleo conceitual, isto é, certeza do que é ou não é, e um halo conceitual,

90 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Questão de ordem no recurso extraordinário nº 556.664-1. Recorrente:

União. Recorrida: Novoquim Indústrias Químicas Ltda. Relator: Gilmar Mendes. Brasília, DF, 9 de maio de 2008. Lex: jurisprudência do STF, Distrito Federal, DJe 83, v. 2318, p. 1.131, mai. 2008.

representando a dúvida do que pode ser91. De fato, o halo conceitual da repercussão geral não pode ser dissipado apenas sob o enfoque da situação individual submetida à apreciação do STF. Precisa transcender, representar aplicabilidade para várias outras situações reputadas relevantes.

Para Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, esse panorama não propicia discricionariedade92. A tarefa de valoração da relevância e transcendência é objetivo, haja visto que o STF é obrigado a reconhecer a repercussão geral uma vez caracterizada a relevância e transcendência. A indeterminação do conceito jurídico implica na valoração objetiva para seu preenchimento e não na expressão de um poder discricionário daquele encarregado de julgar. Essa conotação permite um controle social pelas partes e demais interessados por intermédio de um cotejo de casos outrora decididos pela própria Corte.

Inclusive, a estrutura analítica da CF/88 permite correlacionar a relevância das questões econômicas, políticas, sociais e jurídicas, aduzidas em sede de recurso extraordinário, com as matérias arroladas em títulos que trazem, de forma exclusiva ou não, explícita ou não, epígrafes coincidentes. Exemplos disso são extraíveis do texto constitucional: a ordem econômica e financeira é objeto do título VII (artigos 170 a 191); logo na sequência, a ordem social corresponde ao título VIII (artigos 193 a 232); a organização do Estado e dos poderes é assunto dos títulos III e IV (artigos 18 a 135); os direitos e garantias individuais e o sistema constitucional tributário, representantes dos direitos fundamentais, encontram-se nos títulos II e VI, capítulo I (artigos 5º a 17 e artigos 145 a 162, respectivamente). Estas são figuras primordiais para concretização do programa constitucional brasileiro, sendo relevantes para a República Federativa do Brasil e, por conseguinte, para efeitos de identificação da repercussão geral das questões constitucionais discutidas no recurso extraordinário. A

91 Conceito formulado pelo alemão Karl Engisch, o qual embasou-se em Philipp Heck: “[...] podemos distinguir

nos conceitos jurídicos indeterminados um núcleo conceitual e um halo conceitual. Sempre que temos uma noção clara do conteúdo e da extensão dum conceito, estamos no domínio do núcleo conceitual. Onde as dúvidas começam, começa o halo do conceito. Que numa noite sem luar, pelas vinte e quatro horas, nos espaços não iluminados, domina a escuridão na nossa latitude, é uma coisa clara; dúvidas fazem já surgir a hora do crepúsculo. É fora de toda a dúvida que os imóveis, os móveis, os produtos alimentares são coisas; mas outro tanto não se poderá dizer, por exemplo, relativamente à energia eléctrica ou a um penacho de fumo (formando as letras de um reclame) no céu. É certo e seguro que, verificado um parto bem sucedido e o nascimento de uma criança de progenitores humanos, estamos em presença de um ‘homem’ em sentido jurídico; mas já não tem resposta tão segura a questão de saber se e em que momento nos encontramos perante um ‘homem’ (e não já um simples ‘feto’) logo durante os trabalhos de parto (depois de iniciadas as contracções).” ENGISCH, Karl.

Introdução ao pensamento jurídico. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 209.

92 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. 2. ed.

relevância não precisa ser identificada em todas essas searas, bastando a caracterização numa dessas perspectivas.

De toda sorte, a identificação deve acarretar a transcendência, uma expressão igualmente vaga, como ao ver de Mitidiero e Marinoni. Em termos qualitativos, a transcendência da questão é fundamental para a sistematização e desenvolvimento do direito. Também sobreleva no aspecto quantitativo: é importante estimar o número de pessoas suscetíveis de serem atingidas, no presente ou futuro, pela decisão, para assim vislumbrar a natureza do direito em exame, como a tutela de direitos difusos e coletivos.

A título exemplificativo, reconheceu-se a repercussão geral no deslinde de questão relativa ao reconhecimento da prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da biológica93. De outra senda, não se reconheceu a repercussão geral na controvérsia referente à responsabilidade civil por danos morais em razão de suposta ofensa à imagem, sob a justificativa de envolver reexame de matéria fática94.

Em derradeiro, a repercussão geral pode versar não apenas sobre relevância e transcendência como também de divergência jurisprudencial: sempre será identificada quando o recurso atacar decisão contrária à súmula ou à jurisprudência dominante do STF. Reforça-se, consoante a doutrina de Konrad Hesse95, a força normativa da Constituição: a interpretação

93 “RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE

ASSENTO DE NASCIMENTO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. IMPRESCRITIBILIDADE. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO. PATERNIDADE BIOLÓGICA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. CONTROVÉRSIA GRAVITANTE EM TORNO DA PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA EM DETRIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. ART. 226, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PLENÁRIO VIRTUAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo no recurso extraordinário nº 692.186. Relator: Luiz Fux, DF, 21 de fevereiro de 2013. Lex: jurisprudência do STF, Distrito Federal, DJe.

94 “Recurso Extraordinário com agravo. 2. Dano moral. 3. Liberdade de expressão. 4. Crítica contundente. 5.

Discussão não ultrapassa o interesse subjetivo das partes. 6. Não compete ao Supremo Tribunal Federal revolver a matéria fática para verificar a ocorrência de dano à imagem ou à honra, a não ser em situações excepcionais, nas quais se verifique esvaziamento do direito a imagem e, portanto, ofensa constitucional direta. 7. Ausência de repercussão geral da questão suscitada. 8. Recurso extraordinário não conhecido.” BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo no recurso extraordinário nº 739.382. Relator: Gilmar Mendes, DF, 03 de março de 2013. Lex: jurisprudência do STF, Distrito Federal, DJe.

95 “Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da

Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa. Ele há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. Em outras palavras,

constitucional deve acompanhar as mudanças nas relações fáticas, respeitando-se, decerto, os limites fixados no sentido da proposição jurídica. Aliás, a inobservância de decisões anteriores do STF indica importância jurídica e transcendência da situação.

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