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CAPÍTULO 1 A DEFINIÇÃO LEGAL DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE

1.4 Conceitos e distinções entre migração, contrabando de

Depois de explanação detida sobre o significado do tráfico de pessoas e a fixação da definição a ser utilizada no decorrer do presente texto, é importante tecer alguns breves comentários conceituais e diferenciações entre a migração, contrabando de migrantes e tráfico de pessoas.

A princípio poder-se-ia falar da existência do direito humano de entrada e saída em qualquer país, devido ao disposto no artigo 13 da Declaração Universal de Direitos Humanos. Apesar do referido artigo mencionar somente no direito de deixar qualquer país, evidentemente ele deve estar associado ao direito de entrar em outro Estado.

Contudo, o deslocamento de pessoas entre os diversos países do mundo esbarra no conceito de soberania nacional, através do qual cada Estado exerce jurisdição exclusiva em seu território e possui a competência de disciplinar, nesse espaço, as questões migratórias, dentre elas o estabelecimento dos requisitos para ingresso de estrangeiros no país. Portanto, cada governo pode, de acordo com seus próprios critérios, aceitar facilmente a entrada de estrangeiros ou enrijecer o controle migratório a fim de dificultar a admissão dos não nacionais.

Essa possibilidade de restringir, ou mesmo impedir, o ingresso de migrantes no território nacional expõe a incoerência do sistema atual na medida em que é concedido o direito de sair do Estado a qualquer pessoa.

Essa contradição apontada parece ser inerente ao problema da imigração. Se as pessoas devem ser consideradas livres para saírem de seus locais de origem, como conceber que essa liberdade não seja estendida para entrada em outros Estados? Parece óbvio e simples, mas é nesse estágio que se pode classificar, de modo geral, as políticas migratórias no mundo atual, na medida em que os países tendem, cada vez mais, a fechar seus territórios sob argumentos de proteção da economia e da cultura locais.

O enrijecimento das fronteiras estatais acaba gerando forte aproximação fática entre o tráfico de pessoas, o contrabando de migrantes e a migração, o que também pode ser observado em termos jurídicos.

Outrossim, se considerada as atuais políticas restritivas de imigração adotadas pelos países do hemisfério Norte, para as pessoas que desejam ingressar

nesses Estados, os meios legais são cada vez mais restritos, o que aumenta as chances delas se inserirem em rotas de migração irregular. A dificuldade de ingressar legalmente nos países desenvolvidos, associada às redes de contrabando de migrantes, torna estas pessoas ainda mais vulneráveis a se tornarem vítimas do tráfico.

Contudo, é fundamental a distinção entre essas situações – tráfico de pessoas, contrabando de migrantes e migração -, para que se estabeleçam a proteção dos direitos humanos violados em cada realidade e políticas públicas específicas. Ademais, para o presente trabalho é fundamental que seja entendido o conceito de cada um desses termos bem como sua distinção. Como já foi amplamente explicado a definição de tráfico internacional de pessoas, agora se inicia a analisar o significado de migração e contrabando de migrantes.

Para a Organização Internacional para as Migrações – OIM o termo migração significa o “movimento de uma pessoa ou grupo de pessoas de uma unidade geográfica a outra, através de fronteiras administrativas ou políticas, que desejam estabelecer-se definitiva ou temporariamente, num lugar distinto do seu lugar de origem” (OIM, 2010, p. 27, tradução livre)6.

Assim sendo, a migração subdivide-se em migração nacional ou interna e migração internacional ou externa. Naquela o migrante se desloca dentro de um mesmo país movimentando-se através das fronteiras político-administrativas. Já na migração internacional o migrante sai de seu país de origem e ingressa em outro país, em geral chamado de país de destino ou receptor.

A migração internacional, por sua vez, pode ser dividida em regular ou irregular de acordo com a obediência às normas migratórias; observe-se:

Migrantes regulares são os que têm autorização para entrar e permanecer num país, na forma estabelecida pelas normas migratórias do Estado receptor. São os documentados. Migrantes irregulares são os que não têm autorização para ingressar, permanecer ou exercer atividade remunerada no país de destino; entram de forma clandestina ou ultrapassam o período autorizado de permanência num Estado no qual não são nacionais. São os indocumentados, chamados de “ilegais”. (FARENA, 2012, p. 30).

6

Original: “[...] movimiento de una persona o grupo de personas de una unidad geográfica a otra, a través de fronteras administrativas o políticas, que desean establecerse definitiva o temporalmente, en un lugar distinto a su lugar de origen”.

Nesses termos, mesmo os (as) migrantes que obedecem aos requisitos legais ao ingressar no país de destino podem, posteriormente, ser enquadradas (os) como migrantes irregulares se ultrapassado o tempo de permanência para o qual foram autorizadas (os). Essa situação de migração irregular é bastante comum para as (os) trabalhadoras (es) do sexo, seja por ter expirado o tempo em que podiam manter-se no país receptor seja pela própria ilegalidade do exercício da prostituição.

Importante esclarecer que nem sempre a migração ocorre de forma voluntária7. Ela pode ocorrer de maneira forçada quando o nacional não tem opção viável de continuar em seu país de origem, o que decorre de diversos motivos, dentre os quais estão os fatores econômicos, os conflitos armados, os desastres ambientais e a perseguição política.

Apesar da existência de diversas classificações para as migrações elas não serão aqui abordadas por fugirem do objetivo do trabalho8. Ademais, vale ressaltar

que sempre que for utilizado no curso do texto o termo migração ou migrante estará referindo-se à migração entre países, ou seja, à migração internacional.

O contrabando de migrantes, por sua vez, significa o auxílio fornecido ao imigrante ilegal na travessia de fronteiras para o país de destino. Pela legislação internacional o contrabando de migrantes é denominado de tráfico de migrantes, sendo que sua definição é estabelecida pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea, ratificado pelo Brasil através do Decreto nº 5.016, de 12 de março de 2004, cujo Artigo 3º assim dispõe:

Artigo 3 Definições

Para efeitos do presente Protocolo:

a) A expressão "tráfico de migrantes" significa a promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um beneficio financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente;

b) A expressão "entrada ilegal" significa a passagem de fronteiras sem preencher os requisitos necessários para a entrada legal no Estado de acolhimento.

c) A expressão "documento de viagem ou de identidade fraudulento" significa qualquer documento de viagem ou de identificação:

7 Há ainda quem defenda que nenhuma migração ocorre voluntariamente, porque sempre haveria

motivos responsáveis por impelir a (o) migrante para fora de seu país de origem. Entretanto, essa não é a orientação seguida por esse trabalho. Aqui, entende-se que, apesar da existência de fatores que ensejam o deslocamento, as pessoas podem, em diversos casos, ponderar os benefícios e malefícios da mudança e optar por migrar.

(i) Que tenha sido falsificado ou alterado de forma substancial por uma pessoa ou uma entidade que não esteja legalmente autorizada a fazer ou emitir documentos de viagem ou de identidade em nome de um Estado; ou (ii) Que tenha sido emitido ou obtido de forma irregular, através de falsas declarações, corrupção ou coação ou qualquer outro meio ilícito; ou

(iii) Que seja utilizado por uma pessoa que não seja seu titular legítimo; d) O termo "navio" significa todo o tipo de embarcação, incluindo embarcações sem calado e hidroaviões, utilizados ou que possam ser utilizados como meio de transporte sobre a água, com excepção dos vasos de guerra, navios auxiliares da armada ou outras embarcações pertencentes a um Governo ou por ele exploradas, desde que sejam utilizadas exclusivamente por um serviço público não comercial.

Pela análise detida da definição de “tráfico de migrantes”, acima transcrita, observa-se que no caso das prostitutas migrantes que, inicialmente, atendem os requisitos necessários para entrada legal no país de destino e que para tanto recebem auxílio financeiro de outrem, não estaria caracterizado o contrabando. Isso porque apesar de ser possível que aquele (a) que auxiliou ou facilitou a migração obtenha algum benefício da inserção da migrante em outro Estado, não estaria presente o requisito da entrada ilegal da trabalhadora do sexo.

Contudo, considerando que em sua maioria as prostitutas migrantes ingressam no país estrangeiro com o visto de turista, quando, na verdade, pretendem trabalhar no mercado do sexo, e que muitas delas ultrapassam o tempo de permanência autorizado, o que ocorre na prática é que elas acabam convertendo-se em migrantes irregulares ou indocumentadas.

Destarte, após estudo dos conceitos de migração, tráfico de pessoas e contrabando de migrantes faz-se necessário diferenciar esses dois últimos institutos. Entre o contrabando de migrantes e o tráfico de pessoas é possível observar quatro diferenças fundamentais: o consentimento, a finalidade, o deslocamento e o sujeito ofendido pelo crime.

O primeiro fator distintivo é que no contrabando a (o) migrante figura-se como aquela (e) que consentiu no deslocamento ilegal, enquanto que no tráfico de pessoas os meios adicionais invalidam o consentimento, caso porventura ele tenha sido fornecido (HEINTZE, PETERKE, 2011, p. 68-69; JESUS, 2003, p. 18). Naquele caso a escolha ocorreu de forma livre e desimpedida, enquanto que neste os meios adicionais praticados macularam a opção.

O segundo é que o tráfico de pessoas tem como finalidade a exploração, que pode ocorrer de diversas formas. Assim, a pessoa traficada continua vinculada ao traficante até quitar as dívidas contraídas para seu deslocamento, podendo,

inclusive, ser vítima de maior endividamento no país de destino; já no contrabando de migrantes a finalidade é a travessia de fronteiras (GUERALDI; DIAS, 2012, p. 51), não havendo, necessariamente, intuito intermediador ou explorador depois disso.

Na conceituação do contrabando de migrantes acima exposta percebe-se que o deslocamento de pessoas deve necessariamente ocorrer entre diversos países, visto que ele é, por definição, crime transnacional, enquanto que o tráfico de pessoas pode ocorrer tanto entre países diferentes como dentro do mesmo território nacional, sendo que nesse caso tem-se o tráfico interno de pessoas.

E, por fim, mas não menos importante, sob a perspectiva do bem jurídico protegido, tem-se que o crime de tráfico de pessoas viola diversos Direitos Humanos – liberdade, dignidade da pessoa humana, autodeterminação, entre outros – sendo o sujeito passivo do crime sempre a pessoa, enquanto o contrabando de migrantes é infração cometida em face do Estado (PEIXOTO, 2007, p. 73), podendo ter ou não violação de Direitos Humanos.