• Nenhum resultado encontrado

Os conceitos de força e a mecânica pré-clássica Teorias de força impressa.

A visão aristotélica do universo influenciou de maneira significativa a ciência até a revolução científica ocorrida nos séculos XVI e XVII. Porém, nem todos aceitavam integralmente essas ideias.

No século II a.C., o astrônomo Hiparco, de Nicéia (190 a.C. – 126 a.C.) não usava os argumentos aristotélicos da antiperistasis para explicar o problema do pós-arremesso de um projétil. Para ele o movimento se dava por meio de uma força transmitida ao projétil pelo arremessador. Essa força transmitida pelo arremessador era absorvida pelo projétil e à medida que ele se movimentava ela ia se extinguindo. Este astrônomo, também usou um argumento bastante parecido com este para explicar o fato de os corpos acelerarem quando postos em queda livre. Considerando um objeto segurado por algo, este não caía por estar sendo segurado, ou seja, sua tendência de ir para baixo era compensada pela força que o segurava. Com o objeto solto, esta força, que antes o segurava, continuava no objeto e ia diminuindo à medida que o corpo ia caindo, chegando a se anular em algum ponto da trajetória. O que explicava o fato de este corpo acelerar era a combinação dessa força com o peso do corpo que permanecia constante.

Com Hiparco temos a primeira noção de uma força impressa no corpo, elemento novo no que diz respeito à força e ao movimento. Diferentemente de Aristóteles, que acreditava que a força que impulsionava o projétil

provinha do meio (força externa), a noção de força impressa dizia que a força responsável pelo movimento do projétil era uma força interna, ou seja, estava armazenada no corpo.

O grande número de contribuições, do início do primeiro milênio até a alta Idade Média, para explicar o movimento de projéteis, revela um período bastante rico cientificamente, contrariando que a Idade Média tenha sido uma época obscura para ciência.

Filoponos (475 – 565), que viveu em Alexandria, entre os séculos V e VI de nossa era, difundiu uma teoria semelhante à teoria de Hiparco. Ele rejeitou a teoria aristotélica que associava o meio ao papel motor nos movimentos dos projéteis, ou seja, era contra a teoria da antiperistasis. Para ele, o meio desempenharia somente o papel de resistir ao movimento. Para contestar a antiperistasis aristotélica, Filoponos, se expressou da seguinte forma:

Sobre esta suposição seria difícil dizer o que faz o ar, uma vez empurrado adiante, mover-se de volta, isto é, ao longo dos lados da flecha, e depois alcançar a traseira da flecha, voltando uma vez mais e empurrando a flecha adiante. Pois, nesta teoria, o ar em questão deve realizar três movimentos distintos: ele deve ser empurrado para frente pela flecha, então mover-se para atrás e, finalmente, voltar e continuar para frente uma vez mais. Todavia o ar é facilmente movido e, uma vez colocado em movimento, atravessa uma distância considerável. Como então pode o ar, empurrado pela flecha, deixar de mover-se na direção do impulso impresso, mas em lugar disso virar, como por algum comando, e retraçar seu curso? Além disso, como pode este ar, ao virar, evitar de ser disperso no espaço, mas colidir precisamente sobre o entalho final da flecha e novamente empurrar a flecha adiante e presa a ele? Tal visão é inteiramente inacreditável e chega a ser fantástica (ÉVORA9, 1988

apud PEDUZZI, 2008, p. 51).

Ao contestar o argumento aristotélico, de que o meio seria o responsável pela continuidade do movimento violento de um projétil, por meio de uma força motora, Filoponos, de maneira semelhante a Hiparco, explica este movimento dizendo que uma força motriz seria cedida pelo lançador ao projétil, ficando incorporada nele. No exemplo do lançamento de uma flecha,

9EVORA, F. R. R. A revolução copernicana-galileana. Campinas: UNICAMP, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 1988. v.1.

a força motriz cedida pelo arco ficaria incorporada na flecha, fazendo esta continuar seu movimento.

A visão aristotélica da necessidade da presença de uma força para a manutenção do movimento, é compartilhada por Filoponos. A velocidade do projétil ou da flecha seria proporcional ao saldo entre a força motriz aplicada e a força de resistência oferecida pelo meio. Podemos utilizar uma linguagem matemática, para expressar a lei de movimento de Filoponos da seguinte maneira:

𝑣 ∝ (𝐹 − 𝑅)

onde 𝐹 representa a a força incorporada pelo corpo (que o desloca), 𝑅 a resistência do meio em qual ocorre o movimento e 𝒗 a velocidade desse corpo.

Podemos observar, que de acordo com o conceito de força impressa proposto por Filoponos, o movimento no vácuo seria uma possibilidade, pois sendo a resistência nula, a velocidade não se torna infinita como na relação aristotélica.

Segundo acreditava Filoponos, a força incorporada pelo corpo se extinguia gradualmente mesmo no vácuo, desta forma rejeitando a possibilidade de um movimento infinito mesmo sem ter como mostrar como isso de daria. Ainda sobre a força impressa em um corpo em movimento, Peduzzi (2008) diz que para Filoponos a diminuição da força impressa em um corpo, em um meio qualquer, é atribuída à resistência oferecida pelo mesmo e à tendência natural do corpo, ou seja, sua inclinação em retornar ao seu lugar natural.

Com a decadência de Alexandria, considerada um grande centro científico, os conhecimentos produzidos pelos gregos foram propagados, principalmente pelos árabes. Diversos filósofos islâmicos exerceram um papel importante na preservação das obras dos gregos e na sua introdução

na cultura ocidental, sendo expoentes os pensadores Ibn Sina (980 – 1037), Ibn Bajjah (1106 – 1138) e Ibn Rusch (1126 – 1198) que ficaram conhecidos no ocidente como Avicena, Avempace e Averroes, respectivamente. São esses estudiosos que retomam a discussão sobre a natureza do movimento, assim como a possibilidade de um movimento no vácuo e a noção de força impressa.

Avicena é o primeiro filósofo a rediscutir a ideia de força impressa. Para ele, a força não era auto extinguível. A força incorporada pelo corpo no lançamento só se “consome” se o corpo se movimentar por meio de um meio. Ou seja, no vácuo não haveria movimento. Pois, o corpo se moveria indefinidamente. Algo, inaceitável.

O árabe Avempace foi quem mais discutiu as ideias de Filoponos, defendendo a relação em que a velocidade é proporcional ao saldo entre a força motriz e a força de resistência. Este filósofo também discordou das ideias aristotélicas de antiperistasis, assim como sua relação de proporcionalidade inversa entre a velocidade e resistência do meio. Para ele o movimento no vácuo era possível e seria finito, pois mesmo sem resistência o corpo teria uma certa distância finita a percorrer num determinado tempo.

Apesar de estar em um contexto em que predominavam as ideias aristotélicas, as concepções de força impressa de Filoponos e Avempace tiveram importantes adeptos do século XIII, sendo eles Tomás de Aquino (1225 – 1274) e Roger Bacon (1214 – 1294). Tomás de Aquino, considerado a mente filosófica mais refinada na Europa desde Santo Agostinho tentou conciliar a filosofia aristotélica com a doutrina da igreja (PIRES, 2008). Ele refutou a ideia do vácuo com o mesmo argumento de Aristóteles, pois o corpo se movendo no vácuo se moveria indefinidamente, mas admitia a tese de um vácuo hipotético, considerando, neste caso, as hipóteses de Avempace sobre a velocidade finita de um corpo se movendo sem resistência.

Trabalhos como os realizados por Francisco de Marchia (1290 – 1344), Jean Buridan (1297 – 1358) e Nicolau Oresme (1320 – 1382), realizados em torno dos séculos XIII e XIV, deslocaram o enfoque das

discussões do “porquê” para o “como” e mudaram a forma de encarar o problema.

A força impressa foi retomada por Francisco de Marchia, que propôs uma versão na qual a força impressa incorpórea era uma força temporária e auto-dissipativa. Nesse processo o ar continuava a exercer um papel importante, pois quando um corpo era posto em movimento, o ar em torno recebia também uma força impressa que ajudaria no movimento do corpo.

Francisco de Marchia podem ter influenciado o professor da Universidade de Paris no século XIV, Jean Buridan, no desenvolvimento de sua teoria de força impressa. Com ele, chegamos na mais bem elaborada teoria sobre força impressa, a teoria medieval do impetus. Esta teoria se parece muito com a noção de força impressa de Filoponos, mas, ao que se sabe, Buridan desconhecia seu trabalho.

O impetus de Buridan seria uma força motriz incorpórea, passada de um motor inicial ao corpo colocado em movimento, que permanecia no corpo caso este não fosse afetado pela resistência do meio ou pela gravidade, aqui entendida como a tendência natural de se dirigir para seu lugar natural. Buridan usou sua teoria do impetus para criticar a explicação que a física aristotélica para o movimento de projéteis.

Em suas explicações, utilizou exemplos extraídos da experiência cotidiana para contradizer a ideia de que o ar seria o responsável para dar força motora necessária para o projétil continuar em movimento. Um dos exemplos utilizados por Buridan, segundo Peduzzi (2008), foi o caso de um pião que, ao girar, não muda sua posição. Essa observação permitiu a ele criticar a antiperistasis, já que, segundo esta, só é possível o movimento de um corpo, se o que o move passa a ocupar o lugar deixado pelo corpo, assim impedindo a formação do vazio.

Um corpo ao ser lançado, segundo a teoria de Buridan, adquire um impetus que é transferido pelo lançador no momento do lançamento. O impetus do corpo vai diminuindo com o tempo, com a ação da força resistiva do ar e com a tendência natural do corpo de cair verticalmente, parando somente quando o impetus é vencido por essas forças externas.

O conceito quantitativo de Buridan considera a velocidade e a quantidade de matéria de um corpo como sendo a medida da força do impetus que produzia o movimento. Para ele, em um corpo mais denso havia mais matéria que em um corpo mais rarefeito, de mesmo volume e de mesma forma, dizendo que se um pedaço de metal e um pedaço de madeira de formas e volumes idênticos fossem postos à mesma velocidade, o corpo de metal alcançaria uma maior distância, devida a maior quantidade de matéria, que poderia receber mais impetus e perdurar por mais tempo contra as forças resistivas.

Jean Buridan também contribui de forma importante com sua explicação para o movimento acelerado dos corpos em queda. Para ele a variação da velocidade estava associada ao impetus que crescia no decorrer da queda. Inicialmente, o corpo se move, na queda, devido a sua tendência natural e a ação da resistência do ar, sendo sua velocidade constante. Com a continuidade da queda, o corpo vai adquirindo um determinado impetus devido ao seu próprio movimento e, com isso, aumenta a velocidade. Sob a ação da gravidade e do impetus crescente, o corpo acelera em sua queda (PEDUZZI, 2008).

Figura 3: Representação do movimento de queda de um corpo segundo a concepção de Buridan. As setas finas representam o impetus no corpo.

Nicolau Oresme, também contribui de maneira muito significativa para as teorias de força impressa. Enquanto que o impetus, para Buridan, só podia

ser esgotável por forças externas, para Nicolau Oresme o impetus adquirido por um corpo era auto consumível. Outro detalhe importante da concepção de Nicolau Oresme era sua aceitação da possibilidade do movimento no vácuo, pois sendo o impetus auto consumível, para ele, o movimento seria necessariamente finito, ocorrendo ou não no vácuo.

A noção do impetus, bastante utilizada na física medieval, permitiu uma explicação para o movimento de corpos celestes. Segundo ele, seria aceitável a ideia de que o movimento circular eterno dos astros se dava por um impetus transferido aos astros no início da criação. Interessante notar mais uma vez as fortes influências dogmático teológicas da época.

Em parte alguma da Bíblia se lê que existem inteligências encarregadas de transmitir às esferas celestes seus movimentos próprios; assim, é lícito mostrar que não é necessário presumir a existência de tais inteligências. Podemos dizer que Deus, ao criar o Universo, moveu cada um dos orbes celestes como desejou; deu a todos um ímpeto que os manteve em movimento desde então [...] (BURIDAN10

apud JAMMER, 2011, p. 97).

Outros autores posteriores a Buridan deram suas contribuições à teoria do impetus, embora sugerindo poucas variações. Entre eles destacamos: Alberto da Saxônia (1316 – 1390), Leonardo da Vinci (1452 – 1519), Niccolo Fontana Tartaglia (1500 – 1557) e Giambattista Benedetti (1530 – 1590). Dada sua importância a dinâmica do impetus foi utilizada em diversas escolas durante os séculos XV e XVI. A teoria do impetus serviu de base para a formação de Galileu Galilei que a utilizou em seus primeiros trabalhos seus primeiros trabalhos, como veremos a frente.

2.2.3. O início da mecânica clássica – Galileu e uma nova visão de