2.3 Avaliação do ciclo de vida
2.3.2 Conceitos gerais da Avaliação do Ciclo de Vida
Toda demanda por produto ou serviço, quando materializada, provoca a geração de aspectos ambientais e por consequência, potenciais impactos ambientais. A partir disso, a série ISO 14040 propõe o uso da ACV como uma ferramenta metodológica de gestão ambiental para rastrear os potenciais impactos ambientais de um produto, processo ou atividade, mediante a compilação e avaliação quantitativa das entradas, saídas e dos impactos ambientais potenciais de um sistema de produto ao longo de seu ciclo de vida, o qual resume- se a quatro etapas: (i) extração de matéria-prima; (ii) produção/manufatura; (iii) uso; e (iv) disposição final/reciclagem.
Para modelagem e análise dessas quatro etapas, a ACV pode ser desenvolvida mediante quatro fases principais iterativas: a Fase 1, de Definição de Objetivo e Escopo; a Fase 2, de Análise de Inventário; a Fase 3, de Avaliação de Impacto do Ciclo de Vida; e a última fase, de Interpretação, conforme apresentado na Figura 2.5.
A Fase 1 da ACV define e descreve o produto, processo ou atividade, estabelecendo o contexto no qual a avaliação será feita, seus respectivos limites e os efeitos ambientais. A definição do objetivo deve ser clara, devendo constar as razões, aplicação pretendida e público-alvo do estudo (SUGAWARA, 2012), seja visando uma ACV stricto sensu ou a comparação de dois ou mais produtos, processos ou atividades, semelhantes entre si, por meio dessa ferramenta (WALTER et al., 2016). O escopo, por sua vez, possui um caráter iterativo, principalmente pela limitação de tempo e de recursos na obtenção de dados e no desenvolver da modelagem.
Nessa fase, é comum haver a elaboração de um sistema de produto, formado pelo conjunto de unidades de processo. Unidades de processo são as atividades capazes de realizar uma transformação de um produto ou serviço, caracterizadas por um fluxo de entradas e
saídas (e.g. fluxos materiais, fluxos de energia), ligados em cadeia, formando um fluxograma. Alguns desses fluxos são considerados desprezíveis com relação ao processo de manufatura do produto principal ou serviço, dependendo do nível de detalhamento (FERREIRA & CARVAS, 2014), regionalização e das fronteiras definidas no escopo.
Figura 2.5 – As quatro fases da Avaliação do Ciclo de Vida
Fonte: Autoria própria.
A determinação da fronteira do sistema é fundamental para que os objetivos da ACV possam ser alcançados de forma eficiente, já que nem sempre demandam do ciclo de vida completo do produto (“do berço ao túmulo” ou “cradle-to-grave”). A fronteira “do berço ao portão” ou “cradle-to-gate”, elimina as unidades de processo após a manufatura. Já a fronteira “do portão ao túmulo” ou “gate-to-grave” não utiliza dos fluxos anteriores à manufatura. Por fim, a delimitação “do portão ao portão” ou “gate-to-gate”, exclui todos os processos além daqueles contidos na manufatura (FERREIRA & CARVAS, 2014). Sugawara (2012) menciona que a fronteira do sistema define quais etapas do ciclo de vida, processos
FASE 2: Análise de Inventário FASE 3: Avaliação de Impacto do Ciclo de Vida FASE 1: Definição de Objetivo e Escopo FASE 4: Interpretação
elementares ou até mesmo, entradas e saídas devem ser inclusas, de acordo com critério mássico, energético ou por significância ambiental, indicando três tipos de fronteiras do sistema: (i) fronteira entre o sistema de produto e o ambiente; (ii) fronteira entre os processos relevantes e os irrelevantes; e (iii) fronteira entre o sistema de produto em estudo e outros sistemas.
Ainda no escopo, estabelece-se a função do produto ou serviço, ou seja, indica-se o(s) uso(s) a que esse(s) se destina(m) para efeito da elaboração do estudo e quantifica-se a suas performances, dentro de um fluxo de referência, ou de uma unidade funcional. A unidade funcional é a quantificação do exercício da função, especificando de forma quali e quantitativa a função do produto, como referência para estabelecimento das entradas e saídas do sistema de produto (SUGAWARA, 2012).
Nesta primeira fase também devem constar informações a respeito da metodologia de AICV, com dados das categorias de impacto, dos indicadores das categorias consideradas e o modelo de avaliação de impactos ambientais adotado (SUGAWARA, 2012).
A metodologia de AICV pode ser nível midpoint, em que a caracterização usa indicadores localizados ao longo do mecanismo ambiental, antes de chegar ao ponto final da categoria; ou nível endpoint, quando a caracterização considera todo o mecanismo ambiental até o seu ponto final, ou seja, se refere a um dano específico relacionado com a área mais ampla de proteção, que pode ser saúde humana, ambiente natural ou recursos naturais.
Como não existem métodos desenvolvidos para o Brasil, nem para a América do Sul, Mendes (2013) aponta que os métodos mais utilizados e com abrangência de aplicação global são: (i) CML; (ii) EDIP; (iii) EPS 2000; (iv) USEtox; (v) IMPACT World +. Um resumo das categorias de impacto avaliadas por alguns métodos de AICV é encontrado no Apêndice A.
A Análise de Inventário (Fase 2) é o resultado da compilação e quantificação dos inputs e outputs (entradas e saídas de recursos fisicamente mensuráveis) de um sistema de produto ao longo de seu ciclo de vida. Para concretizar essa fase, é possível utilizar como estratégia inicial uma estimativa ou coleta grosseira de dados. Concomitantemente, com a finalidade de perfilamento se faz necessária a coleta de dados primários e dados secundários (em banco de dados – visto na Tabela 2.16 - e trabalhos com unidades de processos semelhantes).
Tabela 2.16 – Alguns dos principais bancos de dados diponíveis para Avaliação de Ciclo de Vida
Banco de dados Foco Escopo
regional
Ecoinvent
Ampla gama de dados atualizada regularmente, disponíveis como processos unitários e de sistema; possui aplicação coerente das fronteiras do sistema e alocação; possui informações de bens de capital; é bem documentado; possui uma rotina de cálculo; possui um editor associado ao MS-Excel
Global
IVAM LCA Setores de produção civil, produção alimentar e gerenciamento de resíduos sólidos
Não informado
SPINE@CPM Transporte, geração de energia, produção de materiais e gerenciamento de resíduo sólido
Não informado
BUWAL 250 Materiais de embalagem Suíça
Canadian Raw Materials Database
Matérias-primas Canadá
LCA food Produtos alimentícios Dinamarca
Fonte: Campolina et al. (2015).
Eventualmente, pode haver uma reavaliação do escopo, principalmente dos limites do sistema, de modo iterativo. Então, ocorre a escolha do método de análise e, se houver demanda, dos procedimentos de alocação de coprodutos (FERREIRA & CARVAS, 2014).
Quando o sistema de produto gera outros coprodutos e não se consegue separar nitidamente os aspectos ambientais gerados por cada um no sistema produtivo, é necessário realizar a alocação dos resultados obtidos, consoante algum critério. A norma ISO 14044 recomenda que a alocação seja evitada sempre que possível, dando preferências à: (i) divisão do processo elementar multifuncional em dois ou mais processos, e coleta dos dados de entrada e saída relacionados a esses processos; e (ii) expansão do sistema de produto de modo a incluir as funções adicionais. Entretanto, quando necessária, a norma sugere que a alocação ocorra entre as entradas e saídas do sistema, de acordo com as relações físicas subjacentes entre os produtos. Quando uma relação física, por si só, não puder ser usada como base para alocação pode-se apelar a outras relações entre eles (e.g. proporcionalmente ao valor econômico) (WALTER et al., 2016).
A partir dessa fase, para apoiar a condução da ACV, utiliza-se softwares (Tabela 2.17) que auxiliam na execução do estudo, principalmente na Análise do Inventário e Avaliação de potenciais Impactos do Ciclo de Vida. Esses softwares permitem o processamento de dados
de forma mais fácil e rápida, além de garantir modelos de confiança, o que fornece consistência aos resultados (RODRIGUES et al., 2008).
De acordo com Frühbrodt (2007) apud Rodrigues et al. (2008), existem cerca de 54 ferramentas de ACV mencionadas na literatura, sendo que apenas algumas são adequadas para aplicações complexas.
Na Fase 3, de Avaliação de Impacto Ambiental (AICV), analisam-se os efeitos humanos e ecológicos da utilização de energia, água, materiais e das liberações para o ambiente identificadas na Análise de Inventário, os quais são contabilizados e categorizados como potenciais impactos ambientais.
A escolha das categorias de potenciais impactos ambientais, a metodologia e o nível de detalhamento dependem do objetivo e da delimitação do escopo. A AICV, segundo a norma ISO 14042, é composta por três etapas obrigatórias (seleção e definição das categorias, classificação e caracterização) e três etapas opcionais (normatização, agrupamento e valoração) (FERREIRA & CARVAS, 2014). A seleção e definição das categorias deve decorrer da identificação dos focos dos principais aspectos ambientais, que potencialmente afetem a capacidade de suporte de ecossistemas, ou do foco de preocupação e/ou atuação mitigatória ambiental. Em seguida, ocorre a classificação dos aspectos ambientais, consoante às categorias de potencial impacto ambiental correlatas, para serem caracterizados com a unificação de unidade de referência, por meio fatores de equivalência (FERREIRA & CARVAS, 2014).
Assim, na última fase de Interpretação, a fase mais importante, identificam-se os potenciais impactos ambientais mais significativos, avaliam-se as constatações da Análise de Inventário e/ou da Avaliação de Impacto com relação ao objetivo e escopos definidos. Então, como considerações finais, deve haver a verificação da integridade, sensibilidade e consistência de resultados, buscando chegar a conclusões, identificar limitações e estabelecer recomendações para estudos futuros.
Tabela 2.17 – Alguns dos principais softwares de Avaliação de Ciclo de Vida disponíveis
Software Produtor País de origem Especialidade
Aspectos passíveis de modelagem
SimaPro Pre Consultants Holanda
Modelar processos e tecnologias associados ao ciclo de vida de um produto, sistema ou serviço. Suporta os bancos de dados Australian LCI Data Project, BUWAL 250, Dutch Input Output,
Franklin US LCI, IVAM LCA Data, Japan National LCA Project, LCA Food e Ecoinvent. Banco de dados editável e
ampliável, sem restrições
Ambiental, econômico e social GaBi PE Europa GmbH e IKP Universidade de Estugarda Alemanha
Modelar processos e tecnologias associados ao ciclo de vida de um produto, sistema ou serviço. Suporta os bancos de dados EDIP, German Network on LCI
Data, Japan National LCA Project, US LCI Database Project, Ecoinvent e GaBi
Ambiental, econômico e social
Umberto Ifu Hamburgo GmH Alemanha
Modelar processos e tecnologias associados ao ciclo de vida de um produto, sistema ou serviço. Suporta os bancos de dados Japan National LCA Project, GaBi e
Ecoinvent
Ambiental
Team Ecobilan França Modelar sistemas em geral, independente da complexidade Ambiental
open LCA GreenDelta Alemanha Modelar sistemas em geral gratuitamente
Ambiental, econômico e social SPOLD Data Exchange Software Society for Promotion of Life Cycle Assessment
Dinamarca Modelar sistemas em geral Ambiental
Regis Sinum Suíça
Auxiliar na tomada de decisão para melhoria do desempenho ambiental de empresas
Ambiental
LCAPIX KM limited Estados Unidos Conciliar conformidade ambiental e rentabilidade sustentada Ambiental, econômico
KCL-ECO KLC Finlândia Modelar sistemas com muitos fluxos de
processos Ambiental
IDEMAT Delf University of
Technology Holanda
Auxiliar na seleção de materiais no processo de design, fornecendo um banco de dados com informações técnicas sobre materiais, processos e componentes
Software Produtor País de origem Especialidade Aspectos passíveis de modelagem GREET U.S Departamento of Energy’s Office of Transportation Technologies fuel- cycle Estados Unidos
Modelar inventário referente a gases de efeito estufa, emissões reguladas e uso de energia no transporte por veículos automotores leves
Ambiental
ECO-it Pre Consultants Holanda Modelar metais, plásticos, papel e vidro Ambiental
BEES
National Institute for Standards and Technology Building and Fire Research Laboratory
Estados Unidos
Modelar processos relacionados ao setor de construção civil (65 produtos)
Ambiental e econômico
LCSoft Não informado Estados
Unidos
Modelar processos relacionados à produção de produtos químicos, petroquímicos e processos bioquímicos, com opção de integração com outras ferramentas de design sustentável (SustainPro), análise econômica (ECON) e simulação de processos. Suporta o banco de dados US LCI Database Project
Ambiental e econômico
Fonte: Adaptado de Rodrigues et al (2008) e Campolina et al. (2015).