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1.1 O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA NA PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA

1.1.4 A Concepção de Gênero do Discurso

De acordo com Bakhtin (2000), as mais diversas esferas da atividade humana estão relacionadas com o uso da língua, e esses usos podem ser tão variados quanto as próprias esferas. Para o autor, o uso da língua efetua-se sob a forma de enunciados (orais ou escritos), que nascem da interação dos membros de uma ou outra esfera da atividade humana. Assim, os enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada esfera social, considerando-se não somente o conteúdo (temático) e o estilo verbal realizado pelos recursos da língua (recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais), mas principalmente sua organização composicional, pois “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente

estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2000, p.279, grifo do autor). São esses tipos de

enunciado que o autor chama de gêneros do discurso.

Como a atividade social exercida pela humanidade é imensamente rica e inesgotável, também os gêneros do discurso são igualmente ricos e inesgotáveis, e podem modificar-se e ampliar-se, de acordo com a esfera em que circulam, pois estão vinculados às

esferas sociocomunicativas. Dessa forma, eles podem formar-se e desenvolver-se, à medida que se desenvolve e se complexifica a sua esfera social (RODRIGUES, 2001).

De acordo com Rodrigues (2001), os gêneros do discurso funcionam, para o interlocutor, como um horizonte de expectativas que indica mais ou menos a dimensão da totalidade discursiva, a composição do enunciado e os aspectos ligados à expressividade dele. Assim, segundo a autora, no relacionamento entre os interlocutores, eles podem inferir o gênero no qual o enunciado foi formado, o que possibilita a interação.

Os gêneros do discurso são resultado da interação humana, por isso, não são universais, antes, são tipos7 de enunciados constituídos historicamente, sujeitos a variações culturais. No entanto, de acordo com Bakhtin (2000), não se pode afirmar que o uso criativo e livre de um determinado gênero signifique a criação de um novo gênero:

Cada gênero, nas diferentes esferas sociais da comunicação discursiva, possui suas finalidades específicas, sendo que o uso criativo, mais individual no que se refere aos aspectos estilístico, composicional ou temático do enunciado, reflete uma possibilidade já inscrita no próprio funcionamento do gênero, ou melhor, faz parte dos seus objetivos intencionais, ou, então, constitui-se como resultado de tipos de interação verbal mais livres, menos estáveis e normativas, cujos gêneros são menos padronizados, permitindo essa abordagem mais livre e criativa (RODRIGUES, 2001, p.42).

Para Bakhtin (2000, p.301, grifo do autor), as pessoas falam por meio dos gêneros: o “querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do

discurso”, e essa escolha não é aleatória. Para o autor, ela é determinada de acordo com: a

esfera social em que se fala, as necessidades do objeto do sentido, o grupo constituído dos parceiros etc., ou seja, para cada situação social de interação, o falante usa um gênero apropriado, ajustando e adaptando sua subjetividade discursiva ao gênero escolhido. Por isso, “el emisor debe optar por el género que se adecue a la circunstancia concreta de emisión. No

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Na concepção bakhtiniana, a noção de ‘tipo’ dá-se pelo ângulo histórico, e não a partir de um processo teórico de abstração (RODRIGUES, 2001).

sólo las formas lingüísticas (el léxico y la gramática) son obligatorias para el hablante, sino también las formas discursivas, los géneros8” (SILVESTRI; BLANCK, 1993, p.96). No ato da comunicação (oral ou escrita) o falante molda sua fala de acordo com as formas de gênero, o qual pode ser mais padronizado ou mais maleável.

Os gêneros são heterogêneos, porque nascem das mais variadas esferas da atividade humana, desde uma curta réplica do diálogo cotidiano (relato familiar, carta, ordem padronizada etc.) até um repertório formal, sofisticado e padronizado (relatório, tese etc.). Na prática, o falante pode utilizá-los com segurança e agilidade, ainda que não os domine teoricamente.

Bakhtin (2000) estabelece distinção entre os diferentes gêneros, agrupando-os em dois tipos: gêneros primários (os quais chama de simples) e gêneros secundários (complexos). Para o autor, os gêneros primários (cartas, réplicas de diálogos, relatos cotidianos etc.) podem tornar-se componentes dos gêneros secundários, transformando-se dentro deles (por exemplo, uma carta dentro de um romance), adquirindo outra característica, perdendo, dessa forma, a relação imediata com a realidade existente, deixando de ser uma atividade cotidiana para constituir um acontecimento artístico no romance. Os gêneros secundários (romance, editorial, tese etc.) aparecem na comunicação cultural mais complexa e mais evoluída, principalmente na escrita (artística, científica etc.). Ao se formar, os gêneros secundários utilizam, muitas vezes, os gêneros primários.

Os gêneros assumem papel importante na vida da sociedade e da língua, uma vez que estabelecem relação mútua entre língua e ideologia. Eles trazem consigo os modos de ver e perceber o mundo, pois respondem às condições específicas de uma dada esfera, podendo ser agrupados de acordo com as esferas em que circulam, conforme mostra Rodrigues (2001, p.74, grifo da autora):

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O emissor deve optar pelo gênero que seja adequado à circunstância concreta de emissão. Não somente as formas lingüísticas (o léxico e a gramática) são obrigatórias para o falante, mas também as formas discursivas, os gêneros (tradução da pesquisadora).

- Gêneros da esfera da produção: ordem de serviço, instrução de operação de máquinas, aviso, pauta jornalística etc.;

- Gêneros da esfera dos negócios e da administração: contrato, ofício, memorando etc.;

- Gêneros da esfera cotidiana: conversa familiar, conversa pública diário íntimo, saudação etc.;

- Gêneros da esfera artística: conto, romance, novela etc.; - Gêneros da esfera jurídica: petição, decreto etc.;

- Gêneros da esfera científica: tese, artigo, ensaio, palestra etc.; - Gêneros da esfera da publicidade: anúncio, panfleto, folder etc.; - Gêneros da esfera escolar: resumo, seminário, “texto didático” etc.; - Gêneros da esfera religiosa: sermão, encíclica, parábola etc.;

- Gêneros da esfera jornalística: entrevista, reportagem, notícia, editorial, artigo etc.

Como visto, as formulações discursivas dos falantes concretizam-se dentro de um determinado gênero, ou seja, fala-se por meio dos gêneros. Assim, é fundamental que, na escola, o ensino de Língua Portuguesa esteja pensado a partir das concepções dos gêneros do discurso, porque o querer-dizer do aluno está atrelado a um gênero, ainda que o aluno desconheça tal concepção. Todo falante da língua, mesmo de forma inconsciente, na prática, utiliza os gêneros para produzir os enunciados, seja em casa, na igreja, na rua, na escola.

A escola, por exemplo, deve abrir as portas para a entrada dos mais variados gêneros, a fim de melhor desempenhar o seu papel como formadora de cidadãos.