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3.3. A PESQUISA SOBRE DEPENDÊNCIA DE ÁLCOOL E RECAÍDA –

3.3.3. Concepções de saúde e o olhar sobre a recaída

Retomando a discussão sobre as concepções de saúde, foi ponderado anteriormente que a definição “biopsicossocial” de saúde não chega a ser uma ruptura com o modelo biomédico de compreensão da saúde como ausência de doença. Na pesquisa e intervenção sobre a dependência, ocorre o mesmo, pois se define a recuperação a partir do controle do beber – subjaz uma definição negativa de saúde, portanto. Há inclusão de aspectos psicológicos, mas apenas como características intrínsecas do indivíduo (auto-eficácia, motivação, craving, etc) que concorrem para a manutenção ou mudança da conduta patológica.

De forma semelhante, aspectos sociais são considerados, mas apenas em sua dimensão de estímulos ambientais indutores ou reforçadores do comportamento-sintoma, como no caso da pressão social para o uso, os conflitos interpessoais e as situações, lugares ou pessoas identificadas como de risco para a recaída (Marlatt & Witkiewitz, 2009; Hunter-Heel, McCrady & Hildebrandt, 2009). Em suma, mantém-se a mesma lógica biomédica, apenas acrescida de elementos psicológicos e sociais na mesma equação etiológica, que procura no indivíduo os determinantes da doença e intervém sobre o indivíduo a fim de controlar esta doença.

Recursos da psicologia têm sido apropriados pelos médicos, mas também os psicólogos por vezes reproduzem práticas semelhantes, em função de sua tendência de tentar transpor para os serviços públicos de saúde o modo de atendimento clínico individual (Guimarães, 2007). Voltando-se também para a intervenção sobre aspectos intra-individuais, através de técnicas comportamental-cognitivas, os psicólogos colocam-

se a serviço de práticas disciplinadoras, contribuindo para a imposição de padrões de comportamentos quanto a hábitos, estilos de vida, práticas de risco (Jesus & Rezende, 2006), enfim, prescrições e proscrições baseadas na autoridade técnica, mesmo que não contemplem as necessidades das pessoas atendidas (Laudet et al., 2009).

Esse tipo de intervenção gera pelo menos dois grandes problemas em relação à questão da recaída. Primeiro, o profissional pode adotar uma atitude fiscalizadora da abstinência, o que é incoerente com qualquer psicoterapia – que por definição, é espaço de escuta e acolhimento. Essa postura parece ainda mais equivocada diante das pesquisas que apontam que a relevância da psicoterapia para a recuperação é justamente a qualidade da relação terapêutica, e não a aplicação da técnica. Contudo, não só tal prática se mantém, como se desenvolvem outras ainda mais restritas, como monitoramento de pacientes por telefone, para conferir a observância do planejamento de prevenção de recaída (McKay, Lynch, Shepard, Morgenstern, Morgan & Pettinati, 2005; Mundt, Moore, & Bean, 2006), ou até o uso de exames laboratoriais para fiscalizar a abstinência (Junghanns, Graf, Pflüger, Wet, Ziems, Ehrenthal, Züllner, Dibbelt, Backhaus, Weinmann & Wurst, 2009).

Posturas mais radicais como estas últimas não apenas desconsideram como também prejudicam o estabelecimento de uma relação terapêutica, pois criam situações em que o terapeuta assume um papel de fiscal – e é um contra-senso qualificar como “terapêutica” uma interação em que a escuta oferecida ao sujeito se restringe à cobrança de certa conduta, ainda mais submetendo-o a exames para confirmar seu relato. Ao invés de acolhimento, o paciente encontra disciplina e constrangimento, e a recaída deixa de ser um problema a ser enfrentado com a ajuda do terapeuta, para ser uma falha que deve ser confessada a ele.

Isso traz um segundo problema, a frustração de não lograr êxito no tratamento. Além do já mencionado efeito de violação da abstinência, que contribui para aumentar o consumo (Silva & Serra, 2004), a recaída se faz acompanhar por sentimentos de culpa e é referida como derrota e como um sintoma de uma doença que, na melhor das hipóteses, o sujeito pode apenas controlar temporariamente (Baus et al.. 2002). Sentimentos de fracasso, humilhação e culpa decorrentes da recaída produzem um efeito de abandono da tentativa de tratamento e aumento do consumo (Rigotto & Gomes, 2002; Santos & Costa-Rosa, 2007). Ou seja, a ênfase na abstinência como meta tem um aspecto

iatrogênico, pois é difícil de cumprir e essa frustração torna-se um fator de piora.

Por isso, é importante utilizar outra concepção de saúde na pesquisa e na intervenção. Há tentativas neste sentido, a começar pela relativização das metas de tratamento, partindo da constatação de que a melhora da saúde e de outros aspectos da vida nem sempre coincide com o estabelecimento da abstinência (Laudet & White, 2009). Uma proposta interessante é a de Simão et al. (2002), que inclui a melhora do relacionamento social e familiar como critério para definir a recuperação (no caso, melhora subjetiva referida pelo sujeito em tratamento e pelos familiares). Estes e outros critérios qualitativos formam uma definição de recuperação baseada na diminuição dos problemas decorrentes do beber, e não apenas do beber em si. Se por um lado são critérios pouco objetivos, por outro lado são um modo de avaliar os resultados dos tratamentos de modo mais condizente com a realidade do sujeito.

Desta perspectiva, recaída é entendida como o recrudescimento da dependência, não como mero retorno ao consumo, seja episódico ou habitual. Essa idéia é reforçada por estudos sobre recuperação sem tratamento, que apontam proporções de até 77% de alcoolistas que conseguiram se recuperar sem recorrer aos serviços de saúde, assim como até 63% que resolveram seus problemas sem se tornarem abstêmios (Sobel et al., 1996, Carballo et al., 2008). Tratamentos direcionados à abstinência podem estar sonegando esta alternativa de recuperação a pessoas que se beneficiariam mais dela do que das estratégias de prevenção de recaída.

Além da relativização da idéia de recaída e das metas de tratamento, também têm surgido estudos que fornecem informação sobre outros fatores, que não os intra-individuais, relacionados à dependência e à recuperação. Por exemplo, a importância da qualidade das interações sociais (Gifford, Ritscher, McKellar & Moos, 2006), assim como suporte social, especialmente o apoio da família (López- Torrecillas et al., 2005; Gómez e Acuña 2007; Carballo et al., 2008; Garmendia et al., 2008). A mera presença do vínculo familiar tem sido apontada como relevante: ter filhos e manter relacionamento conjugal estável foram positivamente associados à adesão a tratamento (Dawson, Goldstein & Grant, 2008). Há maior risco de desenvolver dependência alcoólica entre homens solteiros, separados e viúvos (Filizola et al., 2008), assim como entre pessoas que vivem sozinhas (Barros et al., 2007).

Outros fatores sociais apontados como relevantes são renda e ocupação. Estudos apontam associação entre condições socioeconômicas mais desfavoráveis (baixa renda e desemprego, entre outras) e desenvolvimento de dependência de álcool (Barros et al., 2007, Ortiz-Hernandez et al., 2007; Tomkins et al., 2007); e estudos sobre resultados de tratamento apontam essas condições desfavoráveis como fatores associados à recaída e à maior dificuldade de recuperação (Oliveira Jr. & Malbergier, 2003, Mulia et al., 2008).

A prática religiosa também tem sido associada à recuperação de alcoolistas (Barros et al., 2007, Simão et al., 2002, Filizola et al., 2008). Em estudo mais aprofundado, abordando o significado da freqüência à igreja entre os sujeitos, Sanchez e Nappo (2008) referem que os participantes relataram não apenas uma questão de fé, mas a importância da nova rede de amizades, do acolhimento pelo grupo e da oferta de apoio para a reestruturação da vida. Neste sentido, estudo de caso de Campos e Ferreira (2007) explora a importância do grupo social para reestruturar a vida, pois é através dele que se torna possível a legitimação de outra via de inserção social que não o papel de dependente. Como destacam Gómez e Acuña (2007), em estudo sobre fatores de recuperação, o comprometimento pessoal com um projeto de vida favorece a recuperação.

Estudos que investigam o ponto de vista do alcoolista e os efeitos do seu contexto social têm apontado equívocos nos tratamentos biomédicos, e têm promovido alguma abertura no campo da dependência de drogas. O caráter “biopsicossocial” ou “mutideterminado” da dependência já está bem estabelecido no meio científico, porém assimilado ao molde biomédico, sem que haja uma efetiva mudança no modo de se produzir conhecimento (Orford, 2008). Para que esta mudança seja levada adiante, é necessário assimilar mais amplamente a contribuição das ciências sociais, produzindo mais pesquisas que concorram para a ampliação da compreensão dos diversos determinantes da dependência, da recuperação e da recaída.

É importante também não tomar o caráter multideterminado da dependência como uma soma de fatores causais em uma seqüência de fenômenos de recuperação e recaída. A tentativa de apontar uma causalidade linear tem produzido estudos que abordam alguns aspectos isoladamente, levando a conclusões aparentemente consistentes, mas distantes da realidade, por não levarem em conta o contexto. Por exemplo, há estudos que apontam que o abuso de álcool leva ao conflito familiar (Gianini et al.., 1999), assim como estudos que indicam que o

conflito familiar leva ao abuso de álcool (Rigotto & Gomes, 2002 e Alvarez, 2007). Tanto este tipo de comparação entre estudos quanto a prática clínica na área sugerem que é de bom senso buscar compreender a dependência como uma complexa interação de fatores de influência recíproca.

Para avançar nas pesquisas sobre uso e dependência de álcool, portanto, é necessário superar algumas destas resistências da tradição biomédica. Resgatando a discussão prévia sobre a saúde como um todo: não se trata de propor a migração de um pólo a outro, mas uma abertura à incorporação de outros métodos e à ampliação de conceitos. Mais especificamente, a incorporação de métodos qualitativos, que abordem o ponto de vista do sujeito e levem em conta as especificidades de seu contexto social; e a ampliação conceitual de saúde e de sujeito, a fim de que a pesquisa e a intervenção contemplem a integralidade em saúde.

3.4. Integralidade e sujeito: um olhar antropológico voltado

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