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Conceptualização da ferramenta

3. Prototipagem

3.1 Conceptualização da ferramenta

Antes de documentar a componente técnica levada a cabo, é necessário documentar e explicar o processo da sua conceptualização, já que daqui advêm grande parte, senão todas, as diretrizes que guiaram a conceção deste trabalho.

A génese para o desenvolvimento deste trabalho surge com uma série de concertos entre 2018 e 2019 e do desafio que surgiu ao ter de os adaptar a contextos marcadamente diferentes, uma situação de performance em galeria e uma situação de clubbing e rave. Para estes concertos pretendia usar projeções do filme Sociedade do Espectáculo (1972) de Guy Debord, obra que me encontrava a analisar na altura.

O filme trata-se de uma colagem de imagens com carga política, implícita ou explícita, sobrepostas da narração do próprio Guy Debord do seu livro com o mesmo título de 1967. Conceptualmente, trata-se de uma obra filosófica de análise social, com enfoque na crítica sociopolítica e na crítica das artes, tendo sido historicamente importante para os eventos e as revoltas estudantis de Maio de 1968 em França. Guy Debord foi uma das figuras mais proeminentes da Internacional Situacionista (IS), uma espécie de coletivo e organização política de intelectuais, artistas avant-garde e teóricos sociais proeminente na europa entre 1957 e 1972, da qual esta obra se tornou na peça central.

É importante aqui referir alguns dos conceitos-chave da IS, pois serão aproveitados no decorrer deste trabalho. As fundações intelectuais da IS prendem-se com a teoria crítica, nomeadamente teoria Marxista, não só sociopolítica e materialista mas também cultural e artística. (Henriques, 1998) Talvez o principal conceito Situacionista, ou talvez o mais importante para este trabalho, seja o conceito de Espectáculo que os situacionistas definem como a intersecção entre a economia de mercados e os mass media como sendo a fonte das problemáticas do fetichismo da mercadoria, da reificação e da alienação conforme levantadas por Karl Marx em meados do séc. XIX e mais especificamente conforme retomadas por György Lukács nos anos 20. (Wark, 2011) Aqui, os

situacionistas defendem que são a economia e os mercados que dominam os

trabalhadores/consumidores e que existe uma passividade social crescente, fomentada por esta “sociedade do espectáculo”.

Societé Du Spectacle, o livro de 1967 que deu origem à versão filme-ensaio aqui usada, tem como premissas centrais a degradação da vida humana, ou seja, a passagem progressiva do Homem como um ser social, em que a sua representação é o seu próprio caracter individual dentro de uma sociedade, para um Homem definido pelas suas posses (mercantilização) e, num estado mais avançado, para um ser que se define pelo que aparece: o que é visível e demonstrado socialmente. O

ser deu progressivamente lugar ao ter e o ter, por sua vez, foi substituído pelo aparecer:

“The first phase of the domination of the economy over social life brought into the definition of all human realization the obvious degradation of being into having. The present phase of total occupation of social life by the accumulated results of the economy leads to a generalized sliding of having into appearing, from which all actual “having” must draw its immediate prestige and its ultimate function. At the same time all individual reality has become social reality directly dependent on social power and shaped by it. It is allowed to appear only to the extent that it is not.” (Debord, 1967, para. 17)

Esta progressão atinge o apogeu na era actual: do Homem social da época clássica, ao Homem de mercadorias da época industrial até ao Homem da representação nas redes sociais. Neste trabalho pretendo trabalhar sobre este preciso momento na história social do ser humano usando para isso uma espécie de subversão crítica das tecnologias, à semelhança do que Joseph Wizenbaum havia feito com a aplicação digital ELIZA ou Christopher Strachey com o programa Love Letters.

Esta componente também advém de outra das temáticas centrais do livro de Debord, que se relaciona com o plágio, a reutilização ou reapropriação de ideias, de forma irónica, crítica e construtiva:

207. Ideas improve. The meaning of words participates in the improvement. Plagiarism is necessary. Progress implies it. It embraces an author’s phrase, makes use of his expressions, erases a false idea, and replaces it with the right idea. (Debord, 1967, para. 207)

Esta é outra das contribuições intelectuais e artísticas centrais do movimento Situacionista: o conceito de détournment. O détournment aparece descrito da seguinte forma na primeira edição da revista da IS, editada como Internationale Situationniste 1 em Junho de 1958:

Détournement - Short for “détournement of preexisting aesthetic elements.” The integration of present or past artistic productions into a superior construction of a milieu. In this sense there can be no situationist painting or music, but only a situationist use of those means. In a more elementary sense, détournement within the old cultural spheres is a method of propaganda, a method which reveals the wearing out and loss of importance of those spheres.(Debord et al., 1958, p. 13)

Ou seja, trata-se de um desvio estético, crítico e criativo de uma metodologia ou conteúdo de forma a evidenciar de as suas próprias falhas.

Partindo destes princípios, a ideia era recorrer à projeção do vídeo diretamente da internet, usando o sistema nativo de captions e de tradução automática do YouTube. Sendo o filme narrado em

francês, ficaria sujeito ao bom (ou mau) funcionamento não só do reconhecimento de voz automático das captions como também da tradução automática do francês para o inglês. Pretendia-se assim que as fragilidades destes sistemas fossem expostas e exploradas de forma recreativa, uma espécie de détournment dos situacionistas e das tecnologias automáticas massificadas mas erráticas disponíveis em plataformas tão ubíquas hoje em dia como o YouTube. A projeção seria enquadrada de modo a centralizar o foco no texto cortando até parte da imagem. O texto tornou-se desta forma o principal elemento da projeção que acompanharia toda a performance musical. Apesar do conteúdo político e filosófico do texto ser intencional, a introdução de uma componente incontrolável (o reconhecimento e tradução automáticos erráticos) contribuiria para um efeito heurístico, onde as partes mal transcritas ou mal traduzidas poderiam vir a potenciar uma nova camada de interpretação ao espectador.

No entanto, este sistema de apresentação do texto via YouTube veio a tornar-se impossível de implementar pelo simples facto de depender de uma ligação à internet, característica que não conseguia garantir em todos os espaços onde pretendia apresentar este trabalho. Surgiram então deste modo as premissas principais que levaram a este trabalho: o texto como conteúdo principal (mais especificamente a sua desconstrução e recombinação) e o détournement tecnológico como forma de crítica, à semelhança de Strachey, de Wizenbaum, de Burroughs e de Debord.

O próprio livro Societé du Spectacle (1967) de Guy Debord foi escrito como uma série de colagens de várias fontes, muitas das vezes reinterpretadas, outras vezes reapropriadas ou desviadas (détourné) e, outras ainda, plagiadas diretamente. Debord recorre a apropriações de várias fontes directas, como Karl Marx, Max Stirner ou Hegel mas também a fontes menos diretas como Moby Dick de Herman Melville. (Debord, 2003) Esta técnica, uma espécie de variação do cut-up de Burroughs, mais cirúrgica e minuciosa e sem aleatoriedade, confere ao texto uma camada interpretativa bastante profunda. É necessário descodificar o sentido do texto através da forma, torna- se difícil de ler mas, de alguma forma, fácil de interpretar. Foi assim que surgiu a ideia de usar geração automática de texto neste trabalho.

Numa primeira fase, pretendia recorrer a tecnologias avançadas ligadas à geração automática de texto para evidenciar as falhas que existem e até tentar expor de alguma forma o uncanny valley14 inevitável resultante de se entregar escrita criativa a um algoritmo digital. No entanto, ao estudar

hipóteses como o GPT-2, as redes neuronais ou até o machine learning (e.g. TensorFlow15), aparecem

inúmeras problemáticas que se prendem não só com a aplicação técnica como incapacidade de resposta em tempo real devido a sistemas de processamento complexos ou (novamente) a necessidade de ligação à internet. Também existem algumas problemáticas conceptuais como os vieses gramaticais e contextuais inerentes à própria programação dos algoritmos e à amostragem que é usada para a sua construção. Há também uma componente ética, conforme documentado em 2.6, que me inibiu de

14 O uncanny valley é um conceito hipotético que pretende relacionar o grau de semelhança de um objecto

com o ser humano e a resposta humana a esse mesmo objecto.

15 O TensorFlow é uma plataforma online open-source da Google para machine learning multi-

recorrer a sistemas potencialmente enviesados para algum tipo de ideologia inerente à sua construção, como por exemplo os famosos autocomplete do Google que normalmente continham conteúdo racista ou misógino16.

Surgiu assim a vontade de recorrer às tecnologias primitivas e elementares de recombinação de texto, tanto o cut-up de Burroughs como as cadeias de Markov usadas por Wizenbaum e Strachey nos seus trabalhos seminais. Pretendia combinar de alguma forma estas duas técnicas, a capacidade de conseguir controlar o conteúdo ou, no mínimo, a temática, da mesma forma que o cut-up permite escolher o que se recorta. Assim sendo, o objectivo passou a ser recombinar dois trechos de textos diferentes através de cadeias de Markov geradas e controladas através do computador.

O recurso a passagens maiores de textos recombinados através de cadeias de Markov permitiria gerar texto gramaticalmente mais interessante do que um processo totalmente aleatório como o cut- up. Da mesma forma, iria conseguir desta forma ter algum controlo sobre a temática geral do texto gerado.

Encontrado este esquema base, fui desenvolvendo a ideia em torno de retirar o máximo de variações possíveis deste método de recombinação de dois textos. O modo de interação mais simples neste modelo seria a possibilidade de obter controlo sobre a quantidade de cada texto que se misturava no “sistema”, ou seja, quanto conteúdo do texto-fonte A e do texto-fonte B seria alimentado à cadeia de Markov para posterior recombinação. Desta forma seria possível guiar a temática geral do texto sem nunca se obter controlo total, deixando sempre em aberto uma componente generativa na criação do texto.

Foram estas premissas que deram origem à proposta desta dissertação e ao trabalho que passo a documentar no capítulo seguinte.

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