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Determine, rapaz Onde vai ser seu curso de pós-graduação Se oriente, rapaz Pela rotação da Terra em torno do Sol Sorridente, rapaz Pela continuidade do sonho de Adão (Gilberto Gil. Oriente, 1971. 3ª estrofe)

A tarefa de concluir um trabalho cujo tema trata das coisas incompletas e que, mais ainda, furta-se a definições conceituais é, no mínimo, curiosa. Ainda assim, num exercício de dizer sobre o indizível, especialmente ao nosso contexto acadêmico, pode-se apontar algumas conclusões que auxiliam na afirmação da riqueza do tema investigado neste trabalho.

Defendo, então, que o acesso às epistemologias japonesas nos fornece bases diferentes sobre as quais pensar as modalidades artísticas, apontando para o possibilidade de renovação dos possíveis ao relacionar a noção de corpo e percepção pressuposta pelo wabi-sabi com o universo das artes e dos estudos culturais, podendo contribuir para o enriquecimento do repertório de referenciais teóricos e estéticos para obras e estudos relacionados à arte, cultura, percepção e matrizes culturais não ocidentais.

Em artigo produzido a partir do estudo desenvolvido no primeiro ano de pesquisa PIBIC, apresentado e disponível nos anais do XII Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (ENECULT), pudemos perceber que o wabi sabi é mais do que um estilo artístico, e sim um modo de estar no mundo, no qual inclui a própria existência corporal, e que só pode ser alcançada a partir de um intenso trabalho de treinamento e cultivo pessoal. Com isso, passamos a considerar que

diferentes estados corporais modificam o modo como processamos informações das mais diversas, ou seja, outras maneiras de estar/sentir no mundo (estética) implicam em diferenças em como expressamos essas informações por meio das ações/reações do corpo e no corpo (ética) (SAINT CLAIR; RIBEIRO, 2016).

É nesse sentido que esse trabalho defende e explora a existência de um instigante relacionamento entre o universo wabi-sabi e obra de Gilberto Gil ao reconhecer ambos, apoiados em diversas canções e posturas que foram esmiuçadas e relatadas nos dois capítulos deste trabalho, uma potente capacidade de transformar nossa maneira de viver e de lidar com a vida, mesmo que por alguns

momentos, na duração de uma música ou de uma xícara de chá, nos fazendo enxergar a possibilidade de celebrá-la sempre assim, como ela é.

Adentrar o universo da criação artística de Gilberto Gil através da perspectiva wabi-sabi nos fornece outros mecanismos que – defendo – em muito oxigenaria os poderes-saberes em torno da estética ocidental contemporânea, pois nele, bem como em todas as artes japonesas, percebemos uma não dissociação entre teoria e prática. A simplicidade do fluxo natural e impermanente da estética wabi-sabi é – para estranhamento do ocidente – fruto de rigorosa disciplina. Paradoxalmente, apenas quando o treinamento se mostra maduro, o fluxo pode mostrar-se em sua inteireza.

Pelo viés wabi-sabi, corpo, mente e arte em Gil formam um todo contínuo a partir de um cultivo pessoal vinculado a práticas orientais de meditação, respiração e ioga, e que, muito naturalmente, transcende qualquer limite que possa ter sido criado entre essas dimensões, fazendo com que, em seus modos expressivos, também envolva e articule corpo, mente e arte, num constante exercício de aprimoramento dessa relação.

A partir desse cultivo com wabi-sabi - defendo e atesto - é possível produzir uma outra forma de estar no mundo e de se relacionar com tudo que existe, passando por uma renovação do olhar e do entendimento sobre as coisas. Um modo de viver capaz de enxergar e se relacionar com a mesma graça e encanto com tudo que existe, percebendo nas mínimas sutilezas e imperfeições, uma oportunidade de reafirmar a beleza de estar vivo e a serenidade diante da constatação da impermanência de tudo.

Ciente que a única constante do universo é a da transformação, já certo de um novo começo, encerro

Porque os tempos passaram e passarão

Tudo que começa acaba, e outros cabras seguirão Cruzando o atemporal do tao do baião21

21 Cf. Letra: VELOSO, C. Arranjo: GIL, G. Baião atemporal. In.: Tropicália 2. Rio de Janeiro: Polygram/Philips, 1993. CD. Faixa 11.

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