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O presente trabalho teve por objetivo investigar os aspectos do cristianismo no texto dramático Hamlet, de William Shakespeare O primeiro capítulo objetivou situar o leitor no contexto político-religioso do século XVI, bem como trazer o entendimento dos fatores e eventos que contribuíram para tal cenário rico em mudanças e inovações não apenas religiosas, mas também políticas, econômicas e científicas.

Entendemos que a Pré-Reforma, do ponto de vista religioso, contribuiu para o debate que predominou no século XVI e destacamos Wycliffe e Jan Hus como os principais reformadores que legaram uma importante contribuição para compreensão do contexto da pesquisa. Posteriormente, seguiu-se a explanação quanto ao próprio movimento reformador, onde destacou-se a atuação de Martinho Lutero, o qual veio, posteriormente, a influenciar a doutrina da Igreja da Inglaterra.

No tocante à Igreja Anglicana, foi possível esclarecer que a sua origem se deu não apenas por uma vontade do soberano inglês de separar-se de sua esposa e casar-se novamente, mas por um conjunto de fatores socioeconômicos que, insuflados pelo crescente espírito nacionalista, influenciaram na adesão da população à ruptura com a Igreja Católica de Roma e a criação de uma igreja nacional. Ainda no tocante à Igreja Anglicana, observou-se que as seguidas alternâncias de poder na dinastia Tudor geraram reflexos na sociedade e na religião professada pelo povo, o que pode ser verificado, analogicamente, no próprio texto Hamlet.

No segundo capítulo, analisou-se, mais especificamente, as questões religiosas presentes na obra Hamlet, visto que esta abunda em aspectos religiosos acerca de variados temas espalhados dentre as cenas que a compõem. Tais aspectos religiosos circundam entre o cristianismo católico e o cristianismo protestante. Verifica-se que ao longo do texto há certa variação e progressão acerca da predominância na abordagem de cada doutrina. Assim, a primeira parte relacionada a este segundo capítulo refere-se às cenas nas quais figura-se a presença de encenações que podem ser interpretadas como sacramentos católicos ou mesmo, sob outros aspectos, protestantes.

Em consonância com as principais críticas morais dos pré-reformadores, abordou-se a fala de Ofélia ao denunciar a falta de integridade moral dos pastores, que, acerca dos aspectos religiosos, poderia referir-se a pastores protestantes propriamente ditos ou ao sentido de pastores enquanto “aqueles que cuidam do rebanho”, ou seja, enquanto sacerdotes. Destarte, resta certa nebulosidade quanto à interpretação da referência de Ofélia, se esta fez referência

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ao protestantismo, ao catolicismo, ou a ambos. Especialmente porque, à época, havia um grande apelo social relativamente à imoralidade dos sacerdotes católicos, o que não se aplicava de igual modo aos sacerdotes protestantes.

No tocante à cena da oração em que o rei Cláudio “se confessa” diretamente a Deus e denota possível arrependimento, é possível concluir que o fato de tal ação não haver ocorrido perante um sacerdote, mas diretamente a Deus em um relacionamento individual e pessoal, apresenta um caráter protestante. Entretanto, no tocante à interpretação dada por Hamlet ao ver a oração do tio, verifica-se uma dualidade entre a possível interpretação católica e a protestante, de forma tal, que permanece, neste ponto, a marca da ambiguidade que permeia todo o texto.

Ainda no mesmo título, tem-se a explanação acerca da extrema-unção reivindicada pelo fantasma do rei Hamlet ao seu filho, o que, claramente, consiste em um traço do catolicismo. Seguindo pela análise dos aspectos religiosos contidos na ação de casamento entre o rei Cláudio e a rainha Gertrudes, tal relação apresenta-se como incestuosa, segundo a doutrina católica, e revestidora de poder ao vilão, Cláudio.

Em seguida, ao falar-se acerca da cena do enterro de Ofélia, conclui-se que a ritualística fúnebre pertine ao catolicismo, inclusive, tendo como celebrante um padre, o qual manteve certo atrito com Laertes, irmão de Ofélia, que, ao responder àquele, usou em sua fala conceito protestante.

Quanto ao tópico referente ao conceito de pecado original, presente na reflexão de Hamlet de que, apesar de se achar virtuoso para a média humana, enxerga em si graves falhas perante o que seria ideal, tem-se a dual presença interpretativa tanto do conceito de pecado original trazido pela doutrina protestante quanto a católica, o que, semelhantemente, ocorre na cena referente à conversa de Hamlet com Polônio acerca da recepção da trupe de teatro.

No que concerne ao tópico da vida após a morte, ainda dentro do segundo capítulo, vemos que o conceito da imortalidade da alma é bem alicerçado na consciência dos personagens, especialmente na de Hamlet. Tal conceito da imortalidade da alma contempla o cristianismo católico tanto quanto o cristianismo protestante, havendo discrepância quanto aos possíveis destinos imediatos da alma quando da morte.

Ao final, temos uma análise mais específica quanto aos dilemas que permeiam a obra, verificando-se a presença do que aqui chamamos de sina hamleriana, a qual demonstra logicamente a existência de uma verdade absoluta, mas cuja certeza, entretanto, encontra-se inalcançável.

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A religião está presente contundentemente na obra Hamlet. Logo no início da peça, vemos o sobrenatural apresentado de forma fantástica, na figura do fantasma vindo diretamente do purgatório, revelando em que circunstâncias fora assassinado e clamando por vingança. Neste ponto, a peça revela-se, fingindo ser uma típica tragédia de vingança, mas essa informação é tão real quanto a loucura do príncipe Hamlet. Não se demora muito para perceber que a peça não se trata de mais uma obra deste gênero, mas, contrariamente, vai muito além, sendo tão profunda, subjetiva, ambígua e misteriosa quanto o poderia ser. São mais de quatrocentos anos de existência que não foram suficientes para desnudar a peça em suas ricas e múltiplas interpretações e, talvez, em suas incontáveis reverberações. Os aspectos do cristianismo contidos nesta são, igualmente, profundos, subjetivos, ambíguos e misteriosos, tal como todo o seu conjunto.

Shakespeare não poupa esforços para ambientar o público na confusão que forma o enredo da trama. Para Hamlet, é-lhe impossível a fuga à prisão que é a Dinamarca, como também não é possível ao povo inglês fugir da ambiguidade que é a Inglaterra.

Claramente, no texto, Shakespeare nos apresenta a disputa de três poderes: o catolicismo romano, a Reforma Protestante e o espírito da modernidade. Essas três forças entrelaçam-se na dramaturgia shakespeariana, que consegue alcançar o status de legado em ao menos dois grandes níveis; o primeiro enquanto documento histórico que revela a sua sociedade e nos transporta para tal cenário e, segundo, dilemas atemporais, universais, que têm o poder de atingir a qualquer um, pois, provavelmente, antes do leitor deparar com o texto, o expectador com a peça, tal obra já o tinha alcançado por tudo que ela é e representa.

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