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É de difícil assimilação a ideia de uma conclusão acerca da obra de Kierkegaard, devido a uma série de motivos expostos no decorrer deste trabalho. As dificuldades de interpretação de seu pensamento são variadas, principalmente se tratando da categoria da repetição, tema central desta pesquisa. O caráter da principal obra, que visa trabalhar a categoria, muitas vezes, se mostra um tanto quanto metafórica. No entanto, se compreendemos seu intuito, que percorre, de certa forma, todo o pensamento kierkegaardiano, veremos que a dificuldade refere-se, justamente, à consequência de uma filosofia que busca travar diálogo com a própria existência e, portanto, insiste em pensar aquilo que diz respeito, no caso de Kierkegaard, ao âmbito paradoxal do próprio existir.

A categoria da repetição insere-se, igualmente, nesse contexto. Adolfo Casais Monteiro, tradutor de O desespero humano, a salientou como “uma das mais fecundas, mas também uma das mais difíceis ideias de Kierkegaard” (MONTEIRO, 2010, p. 15). Além disso, para realização desta pesquisa, foi perceptível a dificuldade para encontrar bibliografia disponível que trabalhasse, em minúcias, a repetição. No entanto, uma leitura detalhada de suas principais obras, revelaram chaves de interpretação cruciais para uma melhor compreensão de sua proposta, ao pensar a categoria. Aqui, referimo-nos, principalmente, as obras A Repetição e Temor e Tremor que, não à toa, foram publicadas, concomitantemente, no mesmo ano. Através delas, Kierkegaard expôs os exemplos de Abraão e Jó, como casos metafóricos de uma legítima vivência da categoria que, não serviu apenas para analisar seus casos, mas os colocou como exemplos carregados de significado para pensar a existência humana, principalmente, no que diz respeito à experiência religiosa.

A pesquisa proposta nesta dissertação, buscou assimilar, o quanto foi possível, do significado que Kierkegaard intentou expressar através da repetição nas duas narrativas bíblicas, tendo em vista a temática da fé como abertura da interioridade para uma dimensão inabarcável pela especulação filosófica, pois, como visto, diz respeito a uma experiência existencial que põe o indivíduo perante o divino. Nesse momento, o eu mergulha em uma dimensão paradoxal do existir, dado que não é capaz de compreender a natureza dessa experiência. A repetição apresenta-se, nesse processo, como um movimento de reconquista da própria existência a partir do salto da fé que se apresenta através de uma intricada relação de perdas e ganhos: o eu perde-se em função do absurdo, mas recebe-se novamente após o movimento em uma existência plena de significado.

A categoria de provação, nesse momento, refere-se ao sentido dessa perda, visto que “é absolutamente transcendente e coloca o homem numa relação puramente pessoal de oposição a Deus, numa relação tal que o homem não pode dar-se por satisfeito com uma explicação em segunda mão”(KIERKEGAARD, 2009a, p. 121). Ao escolher o salto, o indivíduo vivencia uma repetição na medida que, após a perda de si em decorrência de sua abertura para o paradoxo, reconquista-se novamente, mas já não é mais aquele que era, visto ter realizado, em sua interioridade, o movimento paradoxal da fé. Eis a dialética da repetição,

na qual “aquilo que se repete foi, caso contrário não podia repetir-se, mais precisamente o fato de ter sido faz com que a repetição seja algo de novo”(KIERKEGAARD, 2009a, p. 51).

A temática do instante, assume, nesse contexto, o momento no qual a eternidade, paradoxalmente, encontra a temporalidade, cujo sentido transmuta-se de um contínuo nada passageiro para um momento pleno de significação existencial. Eis o que consiste a temporalidade característica da repetição, em que o eu, vivendo sua finitude, mas portando consciência da necessidade de sua infinitude, salta no abismo desconhecido da fé para, só assim, encontrar equilibro em si mesmo, em sua paradoxal dicotomia interior.

O significado de movimento, em referência a categoria referida, toma aqui, um caráter puramente transcendental, pois adentra uma dimensão que escapa aos limites impostos pela razão, visto que se refere a algo que só é possível no âmbito da existência. A postura diante

desse movimento provoca uma mudança radical na interioridade, dependendo de que direcionamento será adotado pelo indivíduo para vivenciá-lo: ou bloqueará sua existência numa recordação que aponta para o passado ou promoverá uma abertura em sua interioridade, apontando-a para o futuro, através de uma reconquista de si mesmo a partir de uma renovada significação existencial. Eis como opera, por conseguinte, nas palavras do jovem amante, o movimento da repetição, decorrente, estritamente, da “própria interioridade; lá onde a cada instante se arrisca a vida, onde a cada instante se perde a vida e se volta a ganhá- la”(KIERKEGAARD, 2009a, p. 132).

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