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Antes do que apresentar uma leitura conclusiva em si mesma, este trabalho se propõe a problematizar e esboçar uma metodologia hermenêutica no intuito de esclarecer e reforçar um ponto de vista, mas simultaneamente complexificá-lo. Deste modo, ainda que a maior parte das conclusões mais significativas já tenham sido dispostas e defendidas no decorrer do trabalho, trata-se de, por fim, explicitar suas conexões e consequências no plano geral da proposta empreendida. Segundo o caráter circular desta tentativa – me pareceu necessário tanto diante das lacunas historiográficas quanto para se adequar à própria circularidade dos argumentos heraclíticos – cada uma das três vias de aproximação em que se divide o trabalho precisou ser constantemente revista diante das consequências do aprofundamento das demais. Um elemento metodológico que se mostrou muito importante foi justamente a

apreciação dos ‗testemunhos‘ enquanto vestígios fundamentais para a construção de uma

estratégia hermenêutica. Embora a personagem humana, por exemplo, pareça ter sido ‗criada‘ a partir de impressões do próprio texto, justamente por isso, às caracterizações psicológicas e anedotas se associam diretamente a aspectos estilísticos significativos, como nas descrições atribuídas a Tímon e Teofrasto por Diógenes Laércio (IX, 5):

Isto também escreve Timón, dizendo: 'entre eles, gritador como um cuco e insultador da multidão, surgiu, enigmático, Heráclito'. Teofrasto afirma que devido à bile negra [melankholías] teria escrito algumas partes de maneira incompleta e outras de modos diversos.

Entre outros aspectos, tais descrições corroboram uma perspectiva acerca da

‗performance‘ do texto e de sua organização. O aspecto altivo, provocador e enigmático de

Heráclito é um tópico dominante durante toda a apresentação de Diógenes Laércio, mas, neste caso, na voz de um terceiro, acrescenta um aspecto mais forte e performático. Tal ‗gritaria‘, condiz também com a perspectiva de um aspecto eminentemente político, ético e educacional

do ‗discurso‘ heraclítico. Isto, contudo, não deve necessariamente indicar uma predominância

deste aspecto em relação ao caráter mais cosmológico, físico-astronômico e metafísico- religioso do mesmo: ambos aparecem, nos fragmentos, profundamente interligados tanto nas terminologias (lógos ora é a palavra humana, ora a medida das trocas proporcionais entre estados físicos, ora o arranjo cosmológico, algo semelhante poderíamos dizer de pólemos) quanto nos exemplos e metáforas.

Também no testemunho de Diógenes se encontram outras indicações importantes sobre a estrutura original do texto e seu modo de composição: a divisão em três logoí, por exemplo, ainda que baseada em uma classificação tardia, corrobora a hipótese de um discurso concatenado, ainda que microestilizado. Mesmo que, como indica a caracterização atribuída a Teofrasto, o texto devesse aparentar, já para os padrões da filosofia clássica, irregular e lacunar, isto me parece suficientemente distante de uma coletânea de dizeres, onde as microunidades podem formar um todo semanticamente coeso, mas não foram originalmente

compostas como uma sequência, isto é, um ‗discurso‘ propriamente dito.

Neste caso, ainda que a tentativa de ‗reconstrução‘ do texto segundo um método cada

vez mais bem fundamentado, como empreendeu Mouraviev, seja fundamental, acredito que o próprio exercício hipotético de reconstrução, visto que as conexões entre os significados de cada fragmento provavlemente tampouco estariam evidentes originariamente, deve ser empreendido e valorizado. Assim, a imagem do puzzle não é apenas uma imagem: as configurações atuais das citações em um conjunto de fragmentos, somada à polissemia circular dos fragmentos mesmos, tornam este 'corpus' literalmente um quebra-cabeça.

Este ‗jogo de montar‘ que o texto é capaz de tonar-se é ainda mais fascinante na medida em que é explorado tendo em vista uma copertinência nos planos da ‗forma artística‘ e do ‗conteúdo filosófico‘: os recursos literários e os insights filosóficos são duas facetas de

uma mesma. Os jogos de linguagem revelam um estilo muito peculiar, ainda que formado a partir da associação e reapropriação de recursos e estratégias comuns ao cenário literário- filosófico da época. Tanto no sentido de pensar as proximidades e as rupturas em relação à tradição poética quanto na tentativa de entender o sentido da função poética da linguagem, trata-se de buscar, no elemento ‗poético‘, uma organicidade entre forma e conteúdo. Heráclito ressignifica metáforas e dizeres tradicionais, problematiza, enfrenta diretamente as grandes autoridades: como um verdadeiro ancestral da tradição filosófica, Heráclito é,

enquanto um artista da palavra, um ‗antropófago‘ criativamente agressivo. Assim, nesta proximidade como que familiar com os ‗cantores do povo‘ a quem ironiza e se opõe

abertamente, é possível perceber um diálogo plenamente poético e plenamente filosófico. Comparado à poesia épica de Homero ou às elegias de Arquíloco, o texto de Heráclito parece menos musicalmente refinado, talvez mais próximo a uma sonoridade mais popular e à linguagem falada. A ‗prosa poética‘ heraclítica é marcada, por exemplo, pelo uso de homoteleutos e aliterações enquanto a épica tende privilegiar rimas internas. Também a polissemia sintática apontada por Aristóteles na primeira linha de B1 remonta a um estilo marcado pela oralidade. Por outro lado, um ‗tom elevado‘ se faz notar em diversos momentos

pelo uso do vocabulário épico e nas lacunas sintáticas próprias da linguagem oracular e gnômica. Assim como a densidade semântica potencializada nos jogos de linguagem não segue uma intensidade constante por todos os fragmentos, devemos supor que o texto heraclítico alternasse momentos de diferentes tons, alguns cômicos e/ou ofensivos, outros simplesmente mais técnicos.

Na hipótese de resconstrução de Mouraviev (2011), o que me pareceu bastante coerente, percebe-se uma divisão entre tais enfoques, ainda que as conexões temáticas permaneçam. Um início mais filosófico e poético, onde estariam contidas também as polêmicas contra os sábios, é seguido por um segundo momento onde revisões de caráter mais pontual, sobretudo em questões de física e astronomia, e uma teoria físico-cosmológica é esboçada. Todos estes aspectos aparecem ligados à noção de ‗lógos‘, que define a realidade

cosmológica a partir de uma ‗proporção‘ ou ‗arranjo‘ de ‗medidas‘, uma ―unimultiplicidade‖.

Na relevância dupla do poético e do filosófico, a densidade semântica indica uma maneira de desconstrução e reconstrução de significados a partir de ressiginificações sucessivas de uma mesma palavra ou de várias palavras semanticamente próximas. Este modo próprio de expansão e ao mesmo tempo concentração dos significados possíveis de uma mesma palavra, resulta propriamente em uma ‗densidade‘ que a palavra mesma (e não o falante) comunica enquanto tradução de uma unidade na multiplicidade.

Esta estruturação do pensamento segundo conexões inaparentes que exercita Heráclito se reverte também em outro aspecto fascinante de seu pensamento: dentre questões cosmológicas e epistemológicas, físicas e metafísicas, resta sempre um link que relaciona tais questões à vida e à condição humana. Trata-se da apologia e do exercício da busca por uma coerência parcial em uma realidade instável e dinâmica, mas fundamentalmente orgânica: um exercício sempre necessário, mas nunca completamente suficiente, de um ponto de vista sempre mais amplo e relativo, nunca fixo.Diríamos que a condição humana de desconexão com a sintonia do arranjo cósmico a que se refere a ‗palavra‘ é, em certo sentido, constante e incontornável, mas por outro, parcial e, de maneira trágica, apenas pontual. A percepção das 'coisas tais quais as encontram' não é possível em sentido absoluto pelo próprio aspecto limitado da perspectiva humana, mas parcialmente possível e, mais importante, passível de aprendizado. O aprendizado do olhar, do ouvir, do pensamento.

Embora o ‗livro‘ de Heráclito tenha provavelmente se proposto a uma variedade de

proposições acerca de tópicos variados, uma temática que parece perpassar todos os âmbitos é exatamente a do aprendizado da percepção e do pensamento. À percepção da organicidade do universo associa-se a perspectiva de um salto poético-filosófico a partir do despertar de uma

insensibilidade. À palavra que aponta para o universo, aponta de volta o universo. Neste sentido, os jogos de linguagem e a densidade semântica representam uma variedade de caminhos possíveis para a compreensão da necessidade de uma abertura para o aprendizado, como única estratégia para o aspecto enigmático da própria experiência humana, marcada tanto por sua temporalidade finita quanto por sua compreesão finita do universo e de si mesmo. Sobretudo aqueles mais evidentes (como a metáfora e o paradoxo) funcionam como gatilhos da reflexão. Tal como a leitura dos fragmentos, a leitura do mundo pede, enquanto processo transitório, uma escuta circular e um meta-aprendizado incessante.

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