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Linha 2 – Formação como Prática de Liberdade

4. CONCLUSÃO

Concluir uma pesquisa, uma escrita é enunciar uma finalização provisória. Estivemos interessados ao longo deste percurso em afirmar a marca do inacabamento dos processos de trabalho, de formação, da produção de saúde, de subjetividade, de políticas, da abertura histórica que sempre escapa às formatações. Importa lembrar mais uma vez que o inacabado não é da ordem do consumo/descarte de formas, de técnicas, de modelos. O signo do inacabamento marca o devir e a errância constitutiva da vida, a potência de (trans)formações que nunca se esgota, potencia de Vida que pode, por meio das políticas subjetivas em curso, ganhar visibilidade e ser fortalecida numa lógica de ampliação do viver, ou tender para a invisibilidade e captura em favor de uma lógica produtiva mantenedora de modos de existência hegemônicos.

Acompanhar o curso de Apoiadores Institucionais no Espírito Santo foi colocar-se em meio a uma arena onde se misturam diferentes forças, entendimentos, modos formativos, modos de se organizar para trabalhar, de produzir saúde, de viver. Expostos à complexidade deste campo, não nos dispusemos, assim, a explicá-lo, mas a por em análise seus efeitos, problematizar práticas nestas andanças a fim de construir outros possíveis, práticas e efeitos por vezes dissonantes. Assim, tivemos a mobilização até mesmo de um serviço ‘mastodôntico’64

que, por meio de um trabalho pensado coletivamente, pode passar a coletar sangue em localidades mais próximas do doador65 – isso é PNH! Por outro lado (outro?), acompanhamos também situações difíceis vivenciadas pela equipe responsável pelo curso como saídas repentinas de alguns apoiadores pedagógicos, enfrentamento de questões da ordem de financiamento gerando atrasos no pagamento destes trabalhadores. Em meio às alegrias, conquistas, ao clima amistoso favorecedor de um movimento de cooperação se deu também climas tensos em que nem sempre se tinha clareza do

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Termo utilizado trabalhador da saúde entrevistado.

65 Experiência do HEMOES – São Mateus que constituiu o plano de intervenção dos trabalhadores

que se passava, configurando-se um ‘exercício paradoxal’ dos possíveis e das invenções humanas; isso também é PNH!

Os impasses na feitura de um trabalho de pesquisa, a imbricação de vida e pensamento lateralizaram e compuseram uma análise e escrita marcada por um processo formativo em que emergem como analisadores os impasses dos trabalhadores em seu cotidiano do fazer-saúde, dos impasses do formadores em tentar realizar uma ação de formação ocupada com a circulação da palavra, com a produção de autonomia e fortalecimento da transversalidade de uma política pública que se constitua ela mesma como obra aberta (REDEHUMANIZASUS, 2009). PNH dispositivo de análise, dispositivo de dispositivos!

O curso que acompanhamos, assim, não foi apenas “o curso da PNH”. Foi um curso em que entram em cena diferentes compositores que o experimentaram de diversas formas, fizeram dele diversos usos e possibilitaram ressonâncias imprevisíveis. O curso, então, pedindo emprestado a quase imagética escrita de Heckert (2004) talvez se aproxime mais do um curso de rio, com seus fluxos e margens que ora se repetem, se fixam e ora se diferem desenhando movimentos que nos coube acompanhar, sendo partícipe de sua fabricação.

Curso como espaço de compartilhamento das mazelas, do que é adoecedor, mas também para o que sopra como novos ventos, novas intensidades, para aquilo que se faz com prazer e se vê sentido em compartilhar para que se possa fazer intercessor no trabalho de outros, com outros. Curso como espaço de lembrança que ativa a potência disruptiva, que abre brechas para que se continue, comece e/ou recomece a acreditar no sistema público de saúde. Uma Política Pública com capacidade resolutiva, produtora de saúde para usuários, familiares e trabalhadores, sem prescindir do olhar crítico diante das cronicidades, do enfrentamento dos paradoxos experimentados por quem habita/produz um espaço de trabalho, de cuidado, de exploração, de lutas e contrasensos.

Curso como oferta de uma ‘mala de ferramentas’ que permita criar espaços de discussão sobre os processos de trabalho com sua equipe de saúde de forma mais articulada, com maior possibilidade de criar coletivamente critérios para acompanhamento e avaliação de projetos com lastros locais. Modos de trabalho que

escapem à lógica da delimitação binária do ‘certo’ ou ‘errado’, do puro prescrito arraigado em normas fabricadas em outros lugares e tempos.

Curso também como ofertamento de um espaço para que se possa ouvir as vozes ‘cantando’ diferentes entendimentos sobre o humano, a humanização, o cuidado humanizado e que oportuniza possíveis provisórios (problemas, soluções, caminhos, torções) e possíveis permanentes (conquistas trabalhistas), a construção de um comum sem o apagamento das singularidades.

Um curso ainda que prevê lista de presença, que registra as faltas, que requisita entrega de material para aprovação e certificação. Curso que não alcança a todos, que por vezes não dá passagem a intensidades e questionamentos, seja pelo aperto do tempo, do cronograma, seja pela fala difícil que não se faz entender, pelas marcas de outras formações em que especifica restringindo os lugares: do aprendiz, depositário do saber e ensinamentos do mestre.

Enfim, um curso em que a experimentação maior talvez tenha sido a de como operar deslocamentos, como ultrapassar as queixas e se construir outros movimentos em saúde, como afirmar cotidianamente o Vital do humano e a criação no trabalho que fabricam sempre outros modos de se conjugar os verbos da vida (NEVES, 2002). O curso... um percurso formativo que nos encontros se serviu de uma partitura. Desta partitura, fica o desejo de que ela não se torne um modelo a ser seguido e reproduzido, mas que seja tomada como ponto de apoio para a produção de novos arranjos nas mãos e instrumentos dos artistas-trabalhadores. Fica o desejo, sobretudo, de que mesmo após a ‘finalização’ dessa atividade formativa e dessa pesquisa, os seus participantes continuem a fabricar suas canções nas redes de saúde.

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