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“Um verdadeiro amor nunca fenece E pouca gente ainda o conhece Meu bem, se o teu amor morreu É porque ninguém o entendeu”

Excerto da Música Coração Vulgar de Paulinho da Viola

O presente trabalho pretendeu conhecer de que forma a organização identitária se estabelece e como é que a mesma se expressa e ao finalizarmos este trabalho tendo em consideração os resultados obtidos, pôde verificar-se aquilo que o levantamento teórico de algum modo anunciava: nomeadamente a identidade ser construída num continuum onde concorrem aspetos como as relações estabelecidas e as experiências vividas no seio intrafamiliar, a relação com a figura primária, os aspetos traumáticos que se vão colocando ao longo da nossa história, para os quais se vai construindo um sentido e as mudanças que a realidade interna opera na realidade externa. A arquitetura e arranjos identitários são o resultado da influência da família que estimula, demarca e compõe um referencial prévio ao qual o sujeito se pode identificar e que inscreve no psiquismo uma ancestralidade, uma herança cultural e uma continuidade de si. Uma parte desta identificação é realizada através da relação estabelecida com a figura primária que, ao constituir-se como objeto de identificação ao nível das funções do self, permite, mais tarde, internalizar essas funções e estabelecer o começo do processo de diferenciação, mas também de reconhecimento com um

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Outro. A ação sobre a realidade externa, operada através da mudança de espaço, contribui para o desenvolvimento psíquico como uma oportunidade para a criação de experiência, o crescimento mental e a formação de sentido. Olhar o trauma como (sempre) desestruturante é retirar aquilo que também faz parte da Condição Humana: a dor que evoca a vontade – a vontade de mudar. Sem a vontade a ação definha-se e sem ação o ato criador perde-se. A dor pode conduzir ao crescimento mental pelo pensar, pensar-se e pela utilização do que é pensado para reestruturar e reorganizar a unidade psíquica.

Assim, pergunta-se, não será isto que se pode encontrar numa narrativa que tem em si história e ficção, memória e criação, desejo e intenção, frustração e realização? Estas narrativas apresentam-se como verdades míticas, aquelas em que o enunciado não corresponde necessariamente aos factos reais e que possibilita um saber e uma verdade: aquilo que é conhecimento da consciência e aquilo que é a verdade do inconsciente. A história que nos é contada e o que dela fazemos nossa e a história que contamos e o modo como o fazemos. Porque a narrativa é tomar da palavra para proferir, nomear e enunciar, o sujeito (re)cria, (re)liga e transforma a sua verdade subjetiva, de modo que a história que cada um narra acerca de si, permite apreender uma memória do que de si é fundador. Por isto, a narrativa que cada um faz de si conta uma história que tem o seu sentido e requer um encontro intersubjetivo que se movimenta entre quem escuta e quem se exprime, entre quem olha e quem é olhado. As narrativas, posse de quem as relata, são a composição e harmonia dos objetos representados, mais as relações que estabelecem entre si e que se prestam ao manifesto e ao latente, à imagem e ao nada, ao interdito e à impossibilidade. São uma biografia, confiantemente revelada que, clinicamente, se apraz captar e acolher, é como ter um verdadeiro tesouro em mãos sem o invejar e desejar possuir.

Procurámos, também, não realizar uma análise exaustiva das entrevistas ainda que o trabalho final surja incompleto, dado que este tipo análise poderia traduzir-se num sem significado que aboliria o lugar das ligações, que é o lugar da compreensão. Gostaríamos de recorrer ao Teorema da Incompletude de Godel para afirmar que existe sempre algo de indemonstrável, algo de inacessível, mesmo que se atenha uma teoria consistente e com proposições verdadeiras, existe (sempre) algo de incognoscível, por sempre se verificar ser incompleto. Extrapolando para o contexto clínico, talvez seja o que sustenta e motiva o desejo de compreender o Outro, a partir do seu próprio referencial. Do anterior, partimos para a ideia de intersubjetividade: de um encontro que é experienciado entre duas subjetividades, em cada qual se movimentam outras tantas subjetividades, um mesmo lugar, para vários lugares. Cria-

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se uma matriz relacional que apraz ser escutada e neste encontro intersubjetivo experienciada, assim criando uma memória com espessura afetiva e uma metáfora geradora de significados.

Postulamos que, do ponto de vista da prática clínica, os resultados discutidos podem revelar-se, eventualmente, importantes na medida em que “os pacientes que chegam à análise têm a sua identidade afetada (…) cremos que um dos motivos conscientes ou inconscientes pelo qual se socorrem da análise é a necessidade de consolidar o seu sentimento de identidade” (Grinberg e Grinberg (1966) cit. por Grinberg, p.184, 2000).

Contudo, achamos que a virtude deste trabalho, em primeiro lugar, repousa na possibilidade de estudar a organização identitária fora de um setting clínico e por isso introduzir na investigação sobre identidade dados provenientes de sujeitos externos a esses contextos, enriquecendo a elaboração teórica acerca do tema. Em segundo lugar, retomar o estudo da identidade que, perante a restruturação social, requer um repensar da identidade. Esta necessidade surge ligada ao contexto social atual, onde o instantâneo, o instável e o descomprometido regulam a massa social e onde o processo primário impera nas demandas empreendidas.

O trabalho, que agora chega ao fim, tem de ser encarado como um pequeno contributo, sobretudo procurando deixar mais a interrogações que respostas, já que um trabalho desta natureza é sempre eminentemente incompleto, e não o poderia deixar de ser. Afinal, trata-se da identidade: um tema complexo, num tempo social complicado.

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