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CONCLUSÃO: O ILUMINIILISMO DA LOUCURA LÚCIDA

Eu insulto o burguês-funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros! Fará sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais

o êxtase fará sempre sol!

Mário de Andrade

Lembra do Dante? Aquele cara que levou você para fazer um recital na FEI em 68 e que ficou uma vara porque a estudantada só queria ouvir Ray Conniff. Você profetizava para uma plateia de múmias. E ninguém se tocava. Lembra que chegou uma hora o Dante não aguentou, levantou e começou a xingar a mãe de todo mundo? E ninguém reagiu! Ninguém reagiu!!

Fala do filme Sangue Corsário (1979), de Carlos Reichenbach

Parolini era o poeta!

João Silvério Trevisan

LADO 1

Após a leitura desses poemas, dessa obra, chegamos, aqueles que tivemos fé, ao final (ou, na verdade, ao começo de tudo185, pois será (também) daqui que os outros pesquisadores e pesquisadoras que se interessarem pela obra paroliniana podem partir e ampliar as leituras que essa obra possibilita). Chegando aqui, nessa con(cl)(f)usão, a impressão que tenho é a de que o trabalho de Orlando Parolini é realmente um trabalho interessante, forte e impactante e que merece ser mais lido e debatido, mais curtido em noites alucinadas de sábado ou em tardes sonolentas de domingo, lido em saraus furiosos

185 Como diziam os velhos e simpáticos boêmios que, aos sábados pela manhã no bar do meu pai, recebiam

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pelo centro da cidade, nos espetáculos de rock e happenings anticaretas186. É por conta

do impacto dessa poesia em minha sensibilidade de leitor que essa tese187 existe, afinal

de contas. Saravá, Parolini!

Orlando Parolini é, antes de tudo, um sujeito radical, que optou por viver uma vida radical. Por isso, sua poesia e sua trajetória pela cena artística também são radicais. Como acontece aos poetas radicais, a circulação e recepção de sua obra é comprometida, justamente por que o radicalismo não faz média – tanto que os editores de seu tempo recusaram publicar seus poemas e seu romance. Estamos falando de um poeta com uma linguagem anárquica e alucinada que começou a compor poesia ainda na segunda metade dos anos de 1950. Uma poesia-contra, poesia antiliterária, contrapoética.

Orlando Parolini é, também, um poeta contemporâneo. Nosso contemporâneo. Poeta furioso que fragmenta a luz do presente (não nos esqueçamos que, para quem experimenta o contemporâneo, todos os tempos são obscuros), perscruta no escuro e transforma o tempo e nele constrói sua perspectiva histórica.

À primeira vista, pode parecer uma poesia negativa188 (o que, de certa perspectiva, é também verdade), mas não é, somente. A sociedade capitalista é negativa, e, em seu jardim, regado com o sangue de culturas milenares, só podem brotar flores podres e pulsão de morte. A poética paroliniana, assim, vai de encontro a esse estado de coisas. É uma poesia desesperada e brutal, muitas vezes, mas é também uma poesia que nos leva a pensar nossa situação num mundo que, de maneira alguma, escolhemos viver.

Gosto muito de um poema chamado “Uberaba”. Um belo poema meditativo escrito ainda nos anos de 1950 (florescer da contracultura norte-americana); mais exatamente em 19 de janeiro de 1959.

186 Nosso país se tornou uma nação infeliz, imbecil, hipócrita e profundamente previsível. Como diz o

Serafim Ponte Grande (1933), obra radical do inquieto e grandioso Oswald de Andrade: “O Brasil é uma

república Federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus. Depois todos morrem”.

187 A escritura dessa tese, não poderia deixar de dizer, cruzou momentos políticos tensos e extremos de

nossa história recente. Passamos por um impeachment sujo de uma presidente da república, pelo desmonte total e descarado das instituições democráticas, e, desgraçadamente, pela eleição pelo voto popular de um presidente fascista. Tudo isso teve um impacto psicológico brutal sobre mim (e sobre as pessoas que amo, meus afetos – a minha vida, enfim) e isso, obviamente, respingou no meu trabalho de pesquisa. A destruição do horizonte utópico e o sucateamento completo da vida atingiram em cheio a todos nós. Baqueou. Atingida pelo fascismo, essa tese, porém, lhe faz resistência.

188 Como afirma Herman Bahn: “O homem grita das profundezas da sua alma, a época toda se torna um

grito isolado, perfurante. A arte também grita, dentro da profunda escuridão, grita por socorro, grita pelo espirito.”

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UBERABA

depois de ver que é seca (a flor de vidro)

antes que o tempo nos amorteça quando flor de vidro a flor em nosso jarro

a flor de barro

começaremos a volta ao cotidiano imemorial

AGORA

há o lento invulnerável momento de sempre nós antes do mais tudo que desejaríamos depois eternamente

não desesperar

será voltarmos para o abismo no abismo de nós, em nós, a todo instante

da indiferença alheia não desesperar

será morrermos em nossa morte hoje e sempre

silencioso enigma

Penso nesse poema como uma dobradura de cujas camadas se desdobram assuntos importantes para a poética de Parolini. Estão nele alguns objetos de linguagem importantes para sua sensibilidade lírica: “quando flor de vidro a flor / em nosso jarro / a flor de barro / começaremos a volta ao cotidiano / imemorial / AGORA”. Está aí a flor, o

“imemorial AGORA”, o instante absoluto zen. Nele, já há o desespero, tão característico

em almas inconformadas e românticas: “não desesperar / será voltarmos para o abismo no abismo / de nós, em nós, a todo instante / da indiferença alheia / não desesperar / será morrermos em nossa morte”. Um desespero ainda ponderado, que cumpre alguma mediação. Explica os efeitos do “não desesperar”. Aclara: poeta-visionário. Enigmático, “hoje e sempre / silencioso enigma”.

Mente alerta: hippie avant la lettre189, possuído pela revolta, embebido em sua vanguarda subversiva, Parolini tinha noção muito clara de suas escolhas, como vimos. As angústias e frustrações de sua geração o afligiram de muitas maneiras. Sua poesia, “visionária e generosa” (REICHENBACH, 1979), antecipando o desbunde da poesia

marginal dos anos de 1970 e a brutalidade do punk, deixa as marcas de um artista com

189 Sempre muito inquieto, o poeta-visionário se antecipava aos acontecimentos, como observa Jairo

Ferreira: “Parolini já era um beat e foi um dos primeiros a deixar o cabelo crescer sem repressões. Anárquico, surrealista, ele nunca foi de muito papo, ainda em 63 caiu fora do grupo de estudos Fílmicos e foi distribuir suas poesias apocalípticas em praça pública”.

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plena consciência de seu tempo. “Viver hoje significa usufruir todos os prazeres do corpo e do espírito, mesmo que para isso tenhamos que mandar a moral e as convenções às urtigas. Se não temos coragem, daí nossa tragédia, a culpa será nossa, pois, de ambos os lados, milhares de bombas aguardam um momento oportuno” (PAROLINI, 1963, p.96), como escreveu o poeta.

Jairo Ferreira190, grande crítico de cinema, espírito livre e contracultural, escreve sobre Orlando Parolini no texto “Tchau pra quem fica”, publicado em sua coluna sobre cinema no jornal São Paulo Shimbun de 28 de janeiro de 1971, reconhecendo na figura do poeta o autor do primeiro filme underground do Brasil, que seria o mítico Via Sacra191:

Justiça seja feita: o curta-metragem Via Sacra, de Orlando Parolini, passa a ganhar maior importância. Iniciando em 66, surge hoje como o primeiro filme underground brasileiro. Antecipou Gamal, jogando a ficção nas ruas, no documental. Em matéria de heterossexualidade, vai a consequências ilimitadas, discretamente mostradas em Mulheres

Apaixonadas (chupação do underground). Como visão das

vagabundagens adolescentes ainda está insuperado. (FERREIRA, 2006, pp.212-213)

Parolini era conhecido no underground pelas eletrizantes leituras públicas que fazia pela cidade. Verdadeiros espetáculos de rock movidos a garganta e versos, essas performances anárquicas marcaram muitos dos jovens inquietos que circulavam pelo sistema nervoso da cidade e que tiveram a sorte de presenciar alguma leitura do “profeta da Galeria Metrópole”. O cineasta Carlos Reichenbach, que guardou por muitos anos os originais com os quais trabalhei nessa tese, dá o seguinte depoimento:

190 Jairo Ferreira era um grande interlocutor a admirador de Orlando Parolini. Em seu artigo

“Criticanarquicanozerodeconduta” escreve: “O Ignácio Loyola me deu toda a promoção. O Orlando Parolini, primeiro crítico do Shimbun, ficou de eminência parda até que assimilasse o anarquismo dele para ser eu mesmo e inclusive contestá-lo radicalmente (os anárquicos são pólvora crítica versus nitroglicerina cultural), mas até hoje o Parolini é um poeta melhor que Piva e Willer, justamente por isso perdido no anonimato.”. In: Contracampo. Disponível em http://www.contracampo.com.br/25/zerodeconduta.htm

Acesso em 12 de janeiro de 2017.

191 Em entrevista ao também cineasta Petter Baiestorf, publicada no zine Brazilian Trash Cinema n.3, em

2001, Jairo Ferreira fala um pouco, en passant, sobre Parolini. A pergunta de Baiestorff é: “Fale um pouco sobre a ‘paranoia de 68’, quando cineastas neuróticos destruíam seus filmes (como Parolini, coautor do destruído e inexistente Via Sacra”. A resposta de Ferreira é: “Essa pergunta é boa. Abra meu livro na página 126. Temos aí Orlando Parolini em Via Sacra. Uma foto vale por mil palavras.” Na foto citada, Parolini aparece com olhar severo, com uma espécie de coroa invertida feita de papel sobre a cabeça, cabelos longos e barba grande (“desvairado de cabelos até a cintura e barba de Jesus Cristo que recitava poemas apocalípticos”, nas palavras de Carlos Reichenbach), vestimenta de jornal onde se lê em letras grandes, na faixa ao lado esquerdo “Vão me matar”, e na faixa do lado direito “eu sei demais”. A foto pode ser conferida no anexo IV dessa tese, onde se encontra alguma iconografia do poeta. A entrevista está disponível em:

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No início dos anos 1960, entre a garotada que vinha em caravana conhecer de perto o “profeta da Galeria Metrópole”, o desvairado de cabelos até a cintura e barba de Jesus Cristo que recitava poemas apocalípticos, estava o jovem Jorge Mautner. E em 1964, quando o viaduto do chá era invadido pelas hordas militantes que hostilizavam a população com sua panfletagem desenfreada, Parolini armava sua tenda na frente do prédio da Light e distribuía gratuitamente seus textos virulentos e blasfemos para os mesmos transeuntes. À noite, voltava com alguns amigos e ficava horas examinando as latas de lixo, num pioneiro exercício de pesquisa de mercado.192

Essas leituras instauravam focos de resistência, incendiavam corações e mentes, ajudavam a manter um circuito criativo, o que era essencial naqueles tempos de trevas da ditadura empresarial-militar. Sua filiação com a anarquia e sua consciência que o lugar da arte é o lugar da anarquia eram sua ética e sua poética. Blasfemo, como o chama seu amigo Reichenbach, o poeta, anjo cyber-xamã pluridimensional e pansexual que evangeliza pelo espanto, pelo alumbramento libertário nos filmes da boca do lixo, é pela apreensão das coisas do mundo que luta, ao final das contas. Há uma enorme generosidade nesse ato.

Através de suas muitas maneiras de compor e dos vários caminhos construtivos pelos experimentou, adiantou muitas das questões que seriam investigadas apenas no decorrer da segunda metade de seu século convulsivo. “Você sabe que eu achava uma babaquice em 63 quando você ficava falando de bomba atômica”, diz o patético personagem do curta-metragem, típica figura engolida pelo sistema, encalacrado com seus pequenos problemas, ao personagem visionário de Sangue Corsário. “Você antecipou muita coisa. E sempre caía fora da jogada quando a coisa virava moda”, continua a personagem, ainda pasmo. Aqui, se configura uma ética, a representação de um espírito contestatório que, tendo “consciência de que no final perderá”, jamais se rendeu às chantagens e aos confortos do sistema. Afinal, o importante ainda está por fazer, como diz o Parolini-Parolini de Sangue Corsário. Realmente, o importante continua sendo mirar o impossível e fazê-lo acontecer. Até lá, a poesia paroliniana continua firme, cantando furiosamente, e, assim, resistindo.

192 Depoimento citado por Sergio Cohn na apresentação ao volume 1960 da antologia Poesia.br. In:

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LADO 2

Só acredito no artista fora da lei, ou por outra: a tradição é chatíssima. É o marginal que mantém o arco em permanente tensão, o excêntrico que escandaliza a Hebe, o maluco que horroriza a classe-média-com-pão- e-manteiga, o doido que enfurece as inquisições e a crítica-coalhada de todos os tempos. Estes são os bons, os que mandam a bola pra frente. Me apontem um grande artista bem comportado, ou uma arte nova bem compreendida. Os olhos verdes brilham melhor sobre uma posta de fígado cru, os olhos tristes são de Lindoneia, aqui é o fim do mundo. E os Mutantes são demais, doidos de pedra. A loucura é essencial à criação e o Brasil deve TUDO aos seus melhores loucos. O resto é novela, sambinha e abril.

Torquato Neto

Vaca profana, põe teus cornos Pra fora e acima da manada Dona de divinas tetas

Derrama o leite bom na minha cara E o leite mau na cara dos caretas

Caetano Veloso

Estamos no século XXI e as coisas não estão nada bem. Mas as utopias, ainda que

em frangalhos, estão aí, prontas para reconstruir pontes entre corações/mentes e inventar mundos possíveis. Movimentar. Em ensaio escrito em 1967 (intitulado “I’m Given to Write Poems”), o poeta americano Robert Creeley afirma: “Poems are very specific kinds of dancing, because language is that possibility most specific to our condition as human beings”193. Lawrence Ferlinghetti, um dos maiores poetas da contracultura (que, aliás,

completa 100 anos nesse ano da desgraça de 2019), em foto bastante popular, aparece com um broche onde se lê: “Fuck art, let’s dance”. Pound, que já havia dado a letra, através de sua definição de poesia logopáica, “dança do intelecto entre as palavras” (POUND, 1991, p.37), também ensinara que poesia não é literatura (e não é mesmo). Décio Pignatari já nos ensinou que a poesia é a arte do antimercado. A poesia não dá lucro, não vende, ninguém se interessa por poesia. Muito ao contrário, como podemos perceber, da

193 Robert Creeley. The Collected Essays of Robert Creeley. Berkeley: University of California Press.

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literatura e das artes em geral. A poesia não é cria da civilização tecnocrata, a poesia é selvagem. É estado de alma selvagem, vibrante, sanguíneo. A poesia, como dizem, é outra coisa. A poesia é um modo de estar no mundo, enfrentamento constante ao ordinário, uma dança, uma ética.

O poeta norte-americano Lawrence Ferlinghetti

A dança, o rebolado, o rock, o transe do som nos poros, o corpo em puro alento: a dança, o amor livre, a poesia. Na sua revisão da contracultura hippie, Leminski escreve: “Choram todos os que dançam” (LEMINSKI, 2011, p.58). Alguns jovens poetas chilenos, aqui do lado, sangue latino, através do “Primer manifiesto infrarrealista”, de 1976 (plena ditadura Pinochet), somavam:

Son tiempos duros para la poesía, dicen algunos, tomando té, escuchando música en sus departamentos, hablando (escuchando) a los viejos maestros. Son tiempos duros para el hombre, decimos nosotros, volviendo a las barricadas después de una jornada llena de mierda y gases lacrimógenos, descubriendo / creando música hasta en los departamentos, mirando largamente los cementerios-que-se-expanden, donde toman desesperadamente una taza de té o se emborrachan de pura rabia o inercia los viejos maestros.

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Parolini, consciente da impotência da linguagem em deflagrar acontecimentos táteis nas operações de transformação real, mas atento ao sorriso demente de seu século (AGAMBEN, 2009, p.62), sabe, por outro lado, da potência das pequenas magias operadas

pela poesia. A poesia é palavra mágica194, uma manifestação muito mais ampla que os manuais ou os “técnicos” possam tatear com sua certeza inabalável, uma ética, um modo de ser e estar. Nesse sentido a poesia arma uma bomba: a vida se ilumina. O modo pelo qual encaro a poesia vai por aí. Acredito que Orlando Parolini também.

– se falo rosa não digo nada se um mundo guardo dentro de mim

O grande escritor argentino Jorge Luis Borges, em “Inscripción”, peça de seu último livro, Los conjurados (1985), diz que “Escribir un poema es ensayar una magia menor. El instrumento de esa magia, el lenguaje, es asaz misterioso. Nada sabemos de su origen. Sólo sabemos que se ramifica en idiomas y que cada uno de ellos consta de un indefinido y cambiante vocabulario y de una cifra indefinida de posibilidades sintácticas”195. Essa magia menor é o que imprime sentido ao mundo. O que o reconfigura

pelas medidas do corpo e batidas do coração, muda a reconfiguração padrão. O antropoceno é aqui. A vida é mágica. E também trágica. Tudo é muito misterioso. No filme de Reichenbach, Império dos desejos (1980), na casa onde mora o poeta Di Branco (personagem interpretado por Orlando Parolini), pode-se ler a frase: “Vim e irei como uma profecia”. Talvez seja a melhor definição de Orlando Parolini.

Tão pungente quanto inteligente, estranha e bela, essa poesia veio para eletrificar o cânone, abrir possibilidades, criar novos mundos. Poesia de sabor forte, chega para, dentre outras coisas, reensaiar a mágica, ocupar espaço. Grande Orlando Parolini! Mil vivas! Seja bem-vindo.

A poesia é foda!

194 Ainda uma vez com Leminski: “A poesia é o princípio do prazer no uso da linguagem. E os poderes

deste mundo não suportam o prazer. A sociedade industrial, centrada no trabalho servo-mecânico, dos EUA

à URSS, compra, por salário, o potencial erótico das pessoas em troca de performances produtivas, numericamente calculáveis”. (LEMINSKI, 2011, p.86).

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