• Nenhum resultado encontrado

A ideia de supremacia da constituição sobre todo o ordenamento jurídico, especialmente a sua concepção normativa, além da dimensão de carta política é relativamente recente na história do mundo ocidental. A fundação do Estado Democrático de Direito só é possível ser reconhecida no século XX pós-guerra, quando se erigem as discussões sobre fonte do poder, procedimento de decisão e conteúdo das obrigações em seus aspectos negativos e positivos dos órgãos de poder: questiona-se a legitimidade do poder e a representação política. O Estado erigido nesse âmbito exige, ao menos, três esferas de limitação do poder, na vertente material, pela presença de valores básicos e direitos fundamentais; orgânica, pela divisão em três poderes autônomos, independentes e com controle recíproco e, processual, ante a necessidade de observação do devido processo legal pelos órgãos do poder.

A aproximação entre constitucionalismo e democracia capaz de reorganizar a política e constituir o Estado Democrático de Direito deu-se no período pós-guerra, como reação a regimes políticos autoritários. Nesse contexto, introduziu-se valores morais compartilhados pela sociedade através de princípios. Esse fenômeno constitucional foi denominado de neoconstitucionalismo, apesar de carecer de unidade teórica, destacam-se algumas características comuns a diversos autores, tais como a) distinção entre princípios e regras; b) adoção da ponderação como teoria argumentativa em detrimento da subsunção; c) subordinação de todo o ordenamento jurídico às normas constitucionais; e, d) defesa da interpretação criativa dos juízes, figurando como legisladores negativos.

Observa-se que esse paradigma constitucional priorizou a supremacia formal da constituição no ordenamento jurídico, sem valorar se a origem do texto constitucional deu-se em moldes democráticos, ou seja, não foi objeto de análise o contexto político, as condições históricas, a natureza jurídica das assembleias constituintes na gênese das constituições antes de elevá-las ao topo na hierarquia das fontes do direito. Além disso, como bem sublinhado por Luigi Ferrajoli, a defendida técnica argumentativa da ponderação tem duplo prejuízo: amplia o poder discricionário dos magistrados na aplicação da constituição, funcionando como um poder

realizará por iniciativa ciudadana, con la firma de al menos el veinte por ciento del electorado; por mayoría absoluta de los miembros de la Asamblea Legislativa Plurinacional; o por la Presidenta o el Presidente del Estado. La Asamblea Constituyente se autorregulará a todos los efectos, debiendo aprobar el texto constitucional por dos tercios del total de sus miembros presentes. La vigencia de la reforma necesitará referendo constitucional aprobatorio.”

de criação, como legislador negativo, o que viola a separação de poderes, base da organização do Estado Democrático de Direito e carece de legitimidade democrática; bem como eleva a jurisprudência como fonte do Direito e esvazia a normatividade da constituição e sua consequente aplicação.

Por outro lado, a América do Sul passou por um período recente de reconstitucionalização após regimes autoritários que ensejaram a defesa de um novo momento do constitucionalismo, que não se confunde com o neoconstitucionalismo. De acordo com Dalmau e Pastor, esse novo constitucionalismo mantém a necessidade de constitucionalização do ordenamento jurídico com o mesmo rigor que a concepção constitucional precedente. Contudo, dela se difere, porque preocupa-se com a legitimidade democrática da constituição antes da dimensão jurídica, tendo em vista que concebe a constituição como fonte do poder por manifestar a vontade soberana constituinte. Destacam, nesse âmbito, que o primeiro elemento marcante do novo paradigma é o processo constituinte legitimamente democrático. Dentro os elementos materiais comum às novas constituições, há a intensa presença nos textos de mecanismos de participação popular que legitimem e controlem o poder constituído.

No entanto, dentre os países da América do Sul, é possível perceber que a participação popular não é um elemento novo, tampouco exclusivo nas constituições: alguns países, como o Uruguai, já prevê elementos que assegurem a vontade popular. Com efeito, ainda assim, é inegável que essas manifestações constitucionais mais recentes aprimoram e recuperam a soberania popular com a refundação do estado, especialmente, no cotejo analítico realizado entre Brasil, Colômbia, Venezuela, Equador e Bolívia. Assim, a proposta de um Constitucionalismo Sul-Americano deve prosperar como instrumento para proporcionar a integração da região, bem como aprimorar as democracias constitucionais.

Nesse sentido, adotou-se a concepção de democracia constitucional, através do reconhecimento da igualdade como pressuposto comum à ambos, na ideia de que todas as pessoas necessitam de iguais condições e respeito aos direitos fundamentais, bem como estruturas de decisão democrática apta a garantir o mesmo valor às opiniões. Assim, admite-se que a democracia só se realiza mediante a presença de determinadas condições jurídicas, quais sejam os princípios e regras estabelecidas pela constituição: o constitucionalismo organiza o processo democrático por meio de limites a ele impostos. Para isso, aposta-se em constituições rígidas que vinculem e submetem todos os poderes, enquanto que constituídos, a fim de

assegurar a vontade do poder constituinte manifesta. Em suma, o conceito de constitucionalismo apenas como limitador da soberania popular e do auto governo é substituído por uma fórmula democrática, por meio da qual o poder constituinte se expressa e se mantém. Em termos estruturais, a democracia é resguardada pela constituição.105

A história constitucional brasileira é marcada por regulamentações, desde do Império ao regime militar de 1964, por elites locais em detrimento da autenticidade através de movimentos populares, emancipação dos povos, ou, ainda reorganização do espaço público com cidadania e democracia. Indubitavelmente, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é a mais avançada e democrática, especialmente quanto a previsão de direitos e garantias fundamentais, marcando, de certa forma, o período de redemocratização do país. Contudo, há de se observar, que a reorganização do espaço público não se deu por meio de legitimidade democrática, com ampla participação social. Desde os trabalhos constituintes, que antecedem a promulgação da constituição, nota-se a marginalização de previsão de mecanismos de participação popular no texto constitucional.

Alinha-se, neste feito, ao entendimento de que a Assembleia Constituinte Brasileira de 1987-1988 não pode ser considerada poder constituinte tipicamente originário, mas possui natureza jurídica de reforma à Constituição Brasileira de 1967, por meio da Emenda Constitucional nº 26/85, a qual delimitou os moldes e limites dos trabalhos constituintes, inclusive em relação à composição da assembleia, a qual, de fato, foi a transformação do Congresso Nacional ordinário (sob a égide da Constituição de 1967) com atribuições de Assembleia Nacional Constituinte, bem como recepcionou a Lei de Anistia de 1979 à nova ordem constitucional erigida a partir da Constituição da República Federativa de 1988. A previsão de limites a assembleia constitui violações a teoria clássica do Poder Constituinte.

105Así, democracia -como cuestión de procedimiento- queda conectada con la idea de que no hay otro titular del

poder constituyente más que el pueblo, porque democracia es gobierno ejercido en nombre del pueblo. Desde esta perspectiva, la soberanía viene de abajo, de los individuos que, en tanto ciudadanos, componen el pueblo. Segundo, postular que la Constitución Nacional es el cauce de un poder democrático renovado intergeneracionalmente, no constituye una cuestión lingüística ni de buenos modales. El concepto de poder constituyente tiene una vital relevancia práctica. Dentro de este contexto, si la democracia necesita ser protegida por la Constitución, se analiza desde el punto de vista estructural cómo resuelve el propio sistema constitucional argentino sus pretensiones de inmanencia y trascendencia por intermedio de las garantías, elementos previstos para el respaldo de sus reglas. Tercero, si el análisis de la colección de partes de la Constitución evidencia que la interpretación -vía control judicial de constitucionalidad- y la reforma son piezas insustituibles para su mantenimiento y/o cambio, es pertinente describir los mecanismos que hacen funcionar estos elementos.”

FERREYRA, Raúl Gustavo. Poder, democracia y configuración constitucional. Cuestiones Constitucionales Revista Mexicana de Derecho Constitucional, [S.l.], jan. 2004. ISSN 2448-4881. Disponible en:

Além disso, não houve referendo popular para aprovação do texto, para lhe conceder legitimidade democrática e viabilidade política.

Por outro lado, diferente foram os processos constituintes inseridos na doutrina do nuevo

constitucionalismo latino-americano, a qual pretende demonstrar que há dois evidentes

objetivos nas assembleias constituintes da Colômbia, Venezuela, Equador e Bolívia, quais sejam: recuperar e adequar o conceito de poder constituinte democrático e solucionar os problemas de legitimidade do sistema constitucional social. Para tanto, entendem que a supremacia da constituição em dado ordenamento jurídico só pode ser consagrada quando a origem do processo constituinte for democrática, através de iniciativa popular de ativação, o exercício desse poder fundante por meio de uma assembleia constituinte participativa e plural, bem como pela aprovação direta do texto constitucional pelo povo sob consulta popular. A preocupação desse novo paradigma é a recuperação da legitimidade democrática da constituição, contrapondo-se ao neoconstitucionalismo, como vertente teórica obstinada a valorar a constituição, cuja análise limita-se a dimensão positiva da constituição, sem a necessidade de averiguar as condições de legitimidade democrática e como a vontade constituinte foi transladada à vontade constituída.

As constituições inseridas nesse marco teórico apostam no fortalecimento da organização popular com instituições paralelas de controle do poder público para que a legitimidade política seja mantida e, consequentemente, a vontade soberana do povo, por isso promulgaram constituições rígidas e preveem mecanismos de participação popular como forma de controlar o poder delegado aos representantes, assentados no modelo de democracia representativa participativa, pelo qual, o povo é chamado por diversas vezes a legitimar as decisões durante os mandatos. Em contrapartida, o caso brasileira destoa dessa sistemática, em que pese todos os países sob análise, tenham adotado a forma de governo presidencialista. Pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, os mecanismos de controle foram delegados ao Congresso Nacional, inclusive a iniciativa para consultas populares, o que subverte a participação popular, consagrou-se a democracia representativa em detrimento da participativa. É forçoso concluir que o Brasil, em comparação com essas constituições, está mais próximo do que a doutrina nomeia de neoconstitucionalismo, tendo em vista a resistência hostil à participação popular no seu texto constitucional de 1988.

O Brasil, como elucidado por Paulo Bonavides, padece de crise constituinte106, quando o Poder Constituinte, com manifestação insuficiente, tanto de reforma, como de elaboração, não prestou a resolver as mazelas sociais e reorganizar as instituições. No mesmo sentido, Gilberto Bercovici entende que a crise constituinte brasileira está estritamente ligada aos bloqueios à manifestação da soberania popular plena107, desde os trabalhos constituintes até a consolidação da democracia constitucional.

Por fim, é forçoso concluir que a ausência de mecanismos de participação popular direta e semi-direta é um problema no sistema constitucional brasileiro em comparação com os textos constitucionais no marco do “nuevo constitucionalismo latino americano”, mas é possível justificar um diálogo institucional entre os países. O método comparativo e descritivo utilizado é um meio para perceber as experiências e dilemas constitucionais comuns. É preciso estimular as reflexões para materialização de um projeto constituinte que busque tutelar a vontade soberana do povo e processo democrático legítimo.

106 “A crise constituinte tem sido aliás desde as origens do Estado brasileiro a crise que ainda não se resolveu.” BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2008. Pág. 383-384. 107 “O problema central, ignorado pela maior parte de nossos doutrinadores, é o fato de que a soberania brasileira, como soberania de um Estado periférico, é uma soberania bloqueada, ou seja, enfrenta severas restrições externas e internas que a impedem de se manifestar em toda sua plenitude. (...) em verdade, jamais tivemos uma Assembleia Nacional Constituinte, dotada de liberdade, exclusividade e plenitude de poderes, pelo menos daqueles com que a teoria revolucionária do século XVIII sempre armara esses parlamentos, a fim de que, providos da suprema vontade da Nação, pudessem refazer as instituições desde os seus fundamentos.” BERCOVICI, Gilberto. O Poder

Constituinte do Povo no Brasil: Um Roteiro de Pesquisa sobre a Crise Constituinte. Lua Nova, São Paulo,