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CAPÍTULO V: QUANDO OS ENCONTROS SÃO AFILIATIVOS

CONCLUSÃO: A PERSONAL VOICE

Talvez eu devesse começar pelo fim. O fim – que, para mim, é apenas o começo – são as últimas linhas deste trabalho, no capítulo 5: as palavras de Marienne Hirsch sobre encontrar um lar no movimento das mulheres [“feminism itself became a space of relation and relocation, a place from which I could think and speak and write, a home on the border” (1994: 88)] foi fundamental para que eu pudesse, de uma vez por todas, me olhar e me identificar como feminista. Esse trabalho é fruto de um encontro comigo mesma e com o meu olhar no mundo e sobre o mundo. Há alguns anos eu sofria da resistência de me ver como feminista. As perspectivas existiam, a “amizade” com as teorias, também. Mas, o que este trabalho deixou de legado e de mais importante foram os ensinamentos descritos no capítulo 5. A importância de um feminismo translocal, o diálogo intercultural, os sentimentos de coalizão, a política de recepção, a experiência de hospedar o outro em sua intraductibilidade.

Quando penso de onde vim e nos lugares por onde percorri na minha trajetória acadêmica, eu só posso pensar que não teria conseguido chegar aqui, agora, se não houvesse quem acreditasse na minha disposição para crescer – como pessoa e como estudante. Se Maryse Condé declara que ela e Tituba viveram na intimidade de longas conversas confidenciais por 1 ano, eu, muito presente no ato de escuta dessas conversas, queria dizer que me senti, tal como Tituba, me metamorfoseando em termos da consciência que partiu da alienação para uma busca política – uma consciência feminista.

Tituba foi para mim, assim como foi para Condé, essencial na construção de uma consciência em expansão. Não pronta, mas ávida por olhar para as diferenças na tentativa de se querer estabelecer diálogo. Foi preciso o começo de um pensamento que, a meu ver, foi um movimento bastante intenso: o descolonizar-se. Nelson Maldonado- Torres (2012: 205) fala sobre uma revolução epistêmica que, apesar de permanecer como um projeto ainda inacabado, procura por uma descolonização das mentes como ato transformador para inserir o outro. É assim que vejo a literatura descolonial: com o papel e o poder de contribuir para essa expansão epistêmica em nossas mentes e em nossos horizontes emocionais; como dispositivo inspirador de transformações na sociedade.

Lembro-me da primeira narrativa de escravo que li. Foi em 2010,

Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave.

conseguia estabelecer uma distância, porque entendia que, apesar das mediações autorais e questões de autenticidade, a narrativa não era ficcional. Eu sabia que se continuasse a ler slaves narratives, um mundo de angústias e questionamentos recairia sobre mim. Eu tinha uma ideia um tanto ‘embaçada’ de que essas narrativas pudessem servir de dispositivos transformadores para mim à medida que meus questionamentos só aumentavam, impelindo-me para fora da minha zona de conforto e desestabilizando as estruturas da minha zona de privilégio.

Em “Racism is not Intellectual”, Paula Moya (2012: 184) descreve como a literatura é rica em seu potencial descolonizador quando o/a leitor/a se compromete tanto epistemologicamente como emocionalmente na leitura. Quando me envolvi no projeto de ler Tituba cognitivamente e emocionalmente, me engajei num outro processo – de “world-traveling” (Lugones) – num mundo onde eu era a alien e me tranportava/translocava, literariamente, para Barbados e depois para a Salém do final do século XVII. Ou seja, eu percorria fronteiras temporais, espaciais, raciais e religiosas através do olhar de Tituba. Eu fui, assim, literariamente translocada para novas conceitualizações do mundo – o mundo do outro, o mundo de Tituba. Não fosse ela, talvez eu não atravessasse essas fronteiras que colaboraram para que, epistemologicamente, eu colocasse os meus pés nesses topoi, que são os lugares mais abrangentes para interagir com o outro. Essa forma de se engajar no romance e interagir com os diversos discursos sociais, bem como perceber a multivocalidade que traz consigo a visão de mundo das diferentes personagens (Tituba, Hester, Benjamin, John Indian, Christopher, Abigail, Samuel e Elyzabeth Parris, Iphigene, Judah White, etc) e que constituem a heteroglossia, (pensada por Bakhtin), colaborou para promover a expansão intelectual e emocional. Apenas quando há um deslocamento ético é que se pode falar de uma literatura e uma poética descolonial.

No início deste trabalho, mencionei o Caribe como um espaço geopolítico e social que permitia um estudo das subjetividades, das inter-relacionalidades, do desejo de abertura e de estar em contato com o outro. Na vida de Tituba, esse processo ocorreu diante do dinamismo existente na zona fronteiriça onde a personagem estava inserida. É no contexto da relacionalidade que Tituba figura como a nova mestiza. É, também, no contexto de uma investigação e escavação epistêmicas que ela renasce dando eco à voz de Sycorax e às vozes das muitas mulheres, negras, ameríndias, latinas, escravas, feiticeiras, curandeiras por mais de 3 séculos. É através de Tituba que as mortas começam a falar quando se

pensa na revisitação histórica, no exercício de estar mais próximo do passado, na atividade de escrever contra-histórias para que a memória da escravidão não seja esquecida. É assim que se articula o exercício da escrevivência – como ato descolonial. Lembremos que resistir à amnésia do passado por meio da imaginação é uma prática epistêmica descolonial. Hoje, há muitas mulheres cujas vozes ainda estão caladas pela colonialidade do poder e de gênero. Colonialidades estas que sobrevivem e se manifestam na sociedade de diversas maneiras. Por isso, é necessário pensar nas particularidades dos muitos feminismos a fim de colocá-los em diálogo para se pensar em termos das colaborações que uma perspectiva feminista transnacional proporciona.

Retomando o texto de Hirsch, eu gostaria, então, de falar um pouco mais sobre os deslocamentos. Os multi-deslocamentos. Os geográficos e os virtuais. Depois de vinte e oito anos vivendo no interior do Rio de Janeiro, achei que era tempo de partir. Embora fosse uma região litorânea, nunca me identifiquei, realmente, com a cidade onde nasci – Campos. A minha cidade por adoção, desde a infância, era o Rio. O apartamento na Barata Ribeiro, os “caldos” no mar de Copacabana, as infinitas tardes correndo atrás dos pombos e tomando mate gelado. Tudo bastante clichê para as férias de uma infância carioca nos anos 1980 (“[I] was at home with [m]yself, smiling self- confidently” (Hirsch, 1994: 76)). Essas memórias da infância me fizeram escolher a identidade com a qual eu mais me identifico: uma carioca deslocada. Movida pelo sentimento do “the-most-significant- other”, me mudei para Florianópolis, onde, na primeira etapa da jornada, fiquei cerca de seis meses. Outro deslocamento estava por vir. Foram quase dois anos em Portugal, onde o processo de learning e unlearning começou, efetivamente, a ocorrer. Por vezes, o exercício de resistir à assimilação, ou, não resistir, mas dar brechas a ela, como se resistência e assimilação fossem duas forças antagônicas que poderiam permanecer em paz, deu certo. Eu chorei durante toda aquela tarde fria em Coimbra antes de pegar o trem que me levasse a Lisboa para voltar para o Brasil em dezembro de 2011. Eu sabia que uma outra parte minha estava ficando ali. Eu sabia que estava começando a viver sentimentos fragmentados e a acumular sentidos de desterritorialização.

Florianópolis era um espaço de equilíbrio na fronteira da vida. Não era o Rio, mas era fácil ressignificar; não era Coimbra, mas tinha Santo Antonio de Lisboa, cultura açoriana, tainha e muitos, muitos amigos e amigas (“I fit, and my surroundings fit me.”, ênfases da autora (idem)). Era o bálsamo pra alma. E, tinha, obviamente, o mundo novo de estudos de um doutorado que queria falar sobre teoria feminista, mas

que andava tímido, resistente e, por vezes, ambivalente nas escolhas. Isso logo mudaria.

Na metade dos estudos do doutorado, a vida veio com suas surpresas. Algumas doces, outras, nem tanto. Algumas, suaves, outras, arrasadoras. Exatamente como é a vida: essa coisa que, às vezes, parece bipolar: ora ruim, ora perfeita. Ora morte, ora vida. E foi assim que vivi 10 anos só em 2013. Muitas, muitas mudanças estavam por vir. Uma dessas mudanças, ou melhor, dessas rupturas que a vida promove, foi sentida durante a jornada de Santa Catarina para o Rio Grande do Sul, no ano seguinte. Se eu pudesse, teria feito exatamente como Hirsch descreve:

I am almost thirteen and I am crossing the Atlantic, from Brussels to New York.[…] But I am not sitting by the window. I do not want to see the expanse of ocean that will separate me from the familiar world I am leaving behind forever […] all I remember is crying through what feels the entire flight […], crying with abandon in public, so that everyone can see that I do not want to go. (1994: 72, ênfases minha.)

Não podia me comportar como quem tivesse 13 anos. Mas eu não queria ir. Eu nunca quis vir. E mais uma vez, “the-most-significant- other” me fez ir para mais longe. Para o lugar que ainda não fui capaz de pensar numa outra forma de descrever, senão como exílio. Por amor, o exílio. Sim, é possível. Eu estava com uma gestação bastante avançada e estava sozinha. The most significant other, naquele momento, era a criaturinha que em breve chegaria. O exílio tinha que valer à pena.

Por muito tempo eu transitei entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Por muito tempo eu projetei a minha vida em outros lugares (Florianópolis, Rio e até Campos), mas eu não pertencia a Pelotas e Pelotas não pertencia a mim. Eu não estava cruzando fronteiras continentais. Eu, provavelmente, não sofreria tanto com as diferenças culturais. Mas, bastava eu abrir a boca… “De onde você é com esse sotaque estranho?”…

Eu havia me deslocado, simultaneamente, para dois lugares naquele ano. Eu cruzava fronteiras culturais e geográficas para o interior do Rio Grande do Sul e entrava, ao mesmo tempo, no espaço da maternidade. Eram dois espaços atuantes em minha vida e eu necessitava me re-localizar. Sabia que tudo aquilo era uma ruptura quase violenta se comparada ao que eu havia vivido até ali. Eu havia deixado

duas moradas: Floripa – que eu considerava um espaço de equilíbrio – e a vida da livre-jovem-doutoranda-que-vivia-longe-do-marido; era cercada de amigos/as e não planejava ter filhos.

Assim, uma outra parte minha ia se afastando mais e mais de Florianópolis – cidade que eu havia adotado para ressignificar a vida. Era difícil negociar o sense of dispossession com as estratégias de re- localização. Foi, então, que encontrei na maternidade, empoderamento. Percebi que maternar poderia ser algo realmente empoderador, que eu poderia criar e educar um ser humano, respeitando os seus limites com acolhimento e empatia desde os primeiros dias de vida se o educasse de forma em que ela fosse agente ativo nas decisões e nas escolhas. Sabia que podia mediar minha suposta aculturação no interior do RS virtualmente com redes de apoio de mães feministas que pensavam encarar a maternidade com outros olhos – sem romances, sem idealizações, mas como assunto na agenda feminista. Sabia que poderia ser capaz de educar uma criança fora do mundo dos estereótipos de gênero, de princesas e príncipes. A maternagem consciente se tornou dispositivo colaborativo para que eu pudesse, de verdade, me re- localizar nas políticas translocais.

Me identifico com Hirsch porque ela precisou de outras mulheres para mediar seu lugar na zona de fronteira até encontrar a sua própria voz. A sua história de múltiplos deslocamentos a preparou para conceber e aceitar a sua identidade fraturada e ambivalente. Eu me identifico com a sua história porque, através da minha experiência de deslocamentos e tentativas de me reinscrever nos espaços pelos quais eu percorria, foi que o processo de unlearning começou e, na maternagem, um novo olhar se consolidou. Foi nessa ‘fatia’ dos muitos feminismos que encontrei um lar onde pudesse me sentir livre para, definitivamente, ter a minha própria voz.

Portanto, considero que esse trabalho nasceu da união de várias forças e influências. Foram as vozes de Hirsch, de Tituba, de Condé, da minha orientadora, da professora Simone, das mães dos grupos de apoio que, aliadas a minha própria experiência de deslocamentos, fizeram com que meu barco rumasse a um bom porto.

E eu percebi, sobretudo, que não planejar viver algo não é sinônimo de desvio de rota. Foi exatamente isso que me aconteceu: quando não planejei o meu caminho, o encontrei. 243

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Esta última frase “ressoou” em minha mente por algum tempo desde que a li num blog sobre maternidade. (Ver: http://cientista4.rssing.com/chan-

7734246/all_p10.html ) Portanto, faço deste último pensamento o grande ensinamento para minha vida… até aqui.

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