• Nenhum resultado encontrado

Podemos sintetizar, agora, o argumento de Raz: se (a) o direito reivindica autoridade legítima, então, (b) ele deve ser capaz de guiar a conduta do sujeito e de ser identificado sem recurso à deliberação moral; (c) conceitos morais dependem de deliberação moral para sua aplicação; logo, (d) normas que incorporem conceitos morais exigem deliberação moral; (e) por (b & c), normas jurídicas não os incorporam. Isso fundamenta a adoção da concepção alternativa de direito, a tese das fontes, a qual pode ser lida como: (f) o direito tem por fundamento, exclusivamente, um conjunto de fatos (atitudes, crenças ou intenções – estados mentais ou disposições) relativos a uma autoridade.

Não faltam críticas a (f; mas a que ora formulamos é a seguinte: (g) para ser aplicada, uma norma deve ser compreendida, o que implica conhecer e interpretar a atitude proposicional em que se fundamenta; (h) essa interpretação leva em conta (ao menos em alguns casos) o que seria o caso se a respectiva autoridade fosse legítima – i.e., a própria compreensão dessa atitude pode demandar juízos normativos; (i) donde, ao menos em alguns casos, pode-se conhecer uma norma jurídica mediante deliberação moral; (j) então, ao menos em alguns casos (como quando não se dispõe de informação direta sobre a intenção da autoridade), é necessário deliberação moral para segui-la – o que contraria (b).

O leitor talvez nos acuse de injustiça para com Raz; afinal, como mencionado supra, ele poderia “morder a bala” e afirmar que, quando a interpretação depende de deliberação moral, mesmo que para descobrir a intenção da autoridade, estamos diante de uma lacuna jurídica – i.e., como não há critérios factuais com base nos quais decidir se a proposição jurídica é verdadeira ou falsa, o intérprete tem discricionariedade (Raz, 1979, 75). Dito isso, cabem quatro considerações.

Primeiro, o que atacamos supra foi apenas a refutação da tese da incorporação, a partir do argumento da autoridade; nosso raciocínio é agnóstico quanto à tricotomiatese das fontes, interpretativismo e incorporacionismo. Não estamos fazendo uma defesa da tese da incorporação.

44 Segundo, é preciso evitar usar uma dessas teorias como premissa para concluir pela refutação das demais, sob pena de petição de princípio. Isso implica que não se pode, pois, argumentar em prol da tese das fontes a partir da concepção raziana de lacuna, pois esta pressupõe a própria tese das fontes; da mesma forma, não podemos fundar o interpretativismo de Dworkin na teoria do direito como integridade pressupondo sua teoria da interpretação35.

Terceiro, deve-se evitar confundir a questão “o que o direito determina” com “como o caso deveria ser decidido, de acordo com o direito” – uma distinção frequentemente realçada por Raz (1995, 328). A primeira corresponderia ao debate sobre o conceito de direito, e a ela se aplicaria a tese das fontes; a segunda refere-se ao raciocínio jurídico, e Raz (1995, 340) deixa explícito que não vê qualquer problema em que este envolva argumentação moral. Não obstante, é precisamente essa distinção que é subestimada pelo argumento anti-incorporação de Raz. Pois, para chegar à conclusão (ontológica) de que conceitos morais não podem ser incorporados ao direito, o argumento da autoridade usa a premissa (prática e epistêmica) de que a teoria da autoridade proscreve a deliberação moral.

Se a teoria do direito é uma teoria ontológica sobre o significado e a validade de normas jurídicas (e de proposições derivadas da aplicação dessas normas), sem impor restrições epistêmicas ou metodológicas sobre como os agentes devem fazer inferências a partir dessas normas (e, portanto, sobre como as aplicam), então ela não acarreta qualquer restrição a priori quanto ao uso da deliberação moral – e, consequentemente, não pode servir para justificar o argumento anti-incorporação supra. Podemos imaginar, por exemplo, que os conceitos morais são passíveis de incorporação tanto quantonoções empíricas ou matemáticas, na medida em que a aplicação de uma norma jurídica depende da correção da proposição incorporada.

Nesse caso, a incorporação pode parecer assaz contingente e trivial; afinal, quando o direito demanda um raciocínio aritmético ou uma investigação empírica, não dizemos que a matemática e as ciências foram incorporadas ao direito. Contudo, dizemos, sim, que “X deve pagar mil reais”, “um testamento, com apenas duas testemunhas, é inválido” ou “a mortandade de peixes constitui crime ambiental” são proposições jurídicas; e, se, na aplicação do direito,

35 Dworkin (2011, 403) argumenta que o debate sobre o conceito de direito é irremediavelmente circular – mas

que sua teoria seria superior porque, no interpretativismo, esse pode ser um círculo virtuoso: “We construct a conception of law— an account of the grounds needed to support a claim of right enforceable on demand in that way— by finding a justification of those practices in a larger integrated network of political value. We construct a theory of law, that is, in the same way that we construct a theory of other political values— of equality, liberty, and democracy” (Dworkin, 2011, 405).

45 uma parte comete um erro de fato, dizemos que o direito foi violado. E tem de ser assim, se temos a pretensão de aplicar o direito à realidade (se existe tal coisa como o “suporte fático” de um fato jurídico), mormente para uma teoria que frisa que “o direito é uma questão de fato”. Mas, se o argumento anti-incorporação fosse correto, mesmo esse tipo de incorporação trivial seria vedado; para Raz (1979, 75), não deveríamos dizer “esse contrato é inválido, porque é injusto, e há uma norma que veda contratos injustos”, e sim “esse contrato é inválido porque um juiz decidiu que o é, autorizado por uma lei que veda contratos injustos”.

Por fim, mesmo que, no nível teórico, negássemos (em nosso contra-exemplo supra) haver incorporação de normas morais ao direito, essa negação não estaria acessível ao intérprete. Assim como a autoridade não pode afirmar que é ilegítima, nem que seus comandos não são justificados por razões dependentes (em virtude da tese da reivindicação e da tese da dependência36), o intérprete, em nosso contraexemplo supra, não poderia afirmar que está

criando novo direito – ao menos não quando tais fatos ocorressem37 (salvo hipocrisia, claro).

Afinal, se o intérprete reconhecesse que a norma é indeterminada, e não apenas incerta, e que a investigação moral lhe leva a criar, ao invés de descobrir, o direito, ele não poderia apresentar suas decisões como vinculantes por causa da autoridade original. Portanto, à tese anti-incorporação se aplicaria aqui uma condenação semelhante à que Bernard Williams (2005, 165) imputou ao utilitarismo: se verdadeira, é melhor não crer nela; se falsa, certamente é melhor não crer nela.

36 A reivindicação de legitimidade, nesse ponto, tem um efeito afim ao da “pretensão de correção” de Robert Alexy

(v. Gardner, 2012, 125).

46 Capítulo 3: O que Tartaruga dirá a Aquiles, ou “levando a sério a interpretação

tradicional do argumento da batalha naval”

Abstract: This dialogue between Achilles and the Tortoise – in the spirit of those of Carroll and Hofstadter – argues against the idea, identified with the “traditional” interpretation of Aristotle's “sea battle argument”, that future contingents are an exception to the Principle of Bivalence. It presents examples of correct everyday predictions, without which one wouldn't be able to decide and act; however, doing this is incompatible with the belief that the content of these predictions lacks a truth-value. In the end, it's suggested that the real problem of future contingents might be a limitation on what an agent can believe before a decision.

Resumo: Este diálogo entre Aquiles e Tartaruga – no espírito dos de Carroll e Hofstadter – argumenta contra a ideia, identificada com a interpretação "tradicional" do "argumento batalha naval" de Aristóteles, de que futuros contingentes são uma excepção ao princípio da bivalência. Apresentam-se exemplos de previsões cotidianas corretas, sem as quais não se seria capaz de decidir e agir; no entanto, isso é incompatível com a crença de que o conteúdo destas previsões não tem valor de verdade. No final, é sugerido que o verdadeiro problema de futuros contingentes pode ser uma limitação a respeito daquilo em que um agente pode acreditar antes de uma decisão.

Aquiles e Tartaruga estão discutindo e jogando Batalha Naval.

Aquiles: … então Aristóteles conclui que o infinito, nesse caso, só existiria em potência. Logo, como já sabia, alcançarei você. QED.

Tartaruga: Você, sem dúvida, está confiante. Mas note que isso é um non sequitur: você apenas teria provado que pode me alcançar, mas não que sabe que vai me alcançar, necessariamente. A menos que você haja sido convertido por Zeno ao determinismo. B5?

A.: Água! Bem, provar isso logicamente seria impossível. Afinal, como provará um

Documentos relacionados