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Esta tese é uma vontade de leitura que habita o lugar do tensionamento e contigência. Sem sombra de dúvida, muitas poderiam ser as outras trajetórias deste trabalho, porém, as circunstâncias levaram-no a este lugar, tornando-se elas mesmas essenciais para construir e pensar uma perspectiva para os estudos comparativos de Adília Lopes em relação à Sylvia Plath. Processo aberto de construção teórica, crítica e literária, anseio com essa tese ter trilhado um pouco mais um importante caminho que joga luz ao papel fundamental da circunstancialidade da condição feminina na escrita das respectivas autoras.

Na primeira seção do primeiro capítulo, quando propus pensar sobre o que se poderia entender como mulher e o feminino em discurso, cheguei ao entendimento do gênero feminino enquanto uma temporalidade social constituída por uma realização performativa instituída através de atos internamente descontínuos que gerariam uma aparência de substância (BUTLER, 2014, p. 200). Se, ao longo do texto, fui pouco a pouco desconstruindo as bases pelas quais se poderia ancorar um sujeito para a substância mulher, até chegar à ideia do gênero enquanto atos performativos, a possibilidade de reconhecimento de um discurso essencialmente feminino ou uniformemente feminino em literatura teve de ser necessariamente questionada. Como recurso, postulei a noção de práticas textuais performativas de gênero. As práticas textuais performativas de gênero feminino seriam práticas discursivas ligadas a posições e atividades socialmente relacionadas à performance do gênero feminino, performances essas que, apesar de fabricadas por palavras, gestos, atuações e desejos que são produzidos na superfície corporal a fim de produzir um efeito de núcleo ou substância

180 interna da ficção reguladora da coerência heterossexual, em prática, não seriam de todo fidedignamente consoantes com a imagem modelar que se propõem seguir, uma vez que os modelos são abstrações não integralmente realizáveis que são confrontados, apropriados e reconstruídos a partir de forças intra- e extralinguísticas a fim de serem incorporados.

Já na segunda seção do primeiro capítulo, ao confrontar alguns pressupostos críticos apresentados no artigo “Produção acadêmica sobre Hilda Hilst cresce e privilegia ótica de gênero” de Alcir Pécora, procurei combater a ideia de necessária artificialidade e falha de rigor nas análises literárias que optaram por uma abordagem pautada nos estudos de gênero na leitura de autoras mulheres, evidenciando uma série de fobias que guiam critérios valorativos assimétricos. Ao apontar a parcialidade do conceito de qualidade e do emprego desse conceito na avaliação do trabalho de escritoras e/ou sobre escritoras, intencionei demonstrar como as críticas ao “politicamente correto” erravam ao creditar o maior número de autoras mulheres sendo publicadas ou estudadas comparativamente a um movimento sócio-político de natureza compensatória, o qual ameaçaria a relevância dos estudos acadêmicos e à própria arte. A crítica literária feminista exige uma mudança crítica e teórica na própria produção/recepção dos objetos artísticos, sendo a instauração de outras genealogias um modo de realizar produtivamente um outro agenciamento de sentidos que leva em consideração problemas antes não contabilizados.

O segundo capítulo, que se subdivide em três seções, partiu da análise do uso em verso de um fragmento pertencente à novela A redoma de vidro de Sylvia Plath e de uma citação atribuída à mesma autora por Adília Lopes para pensar como o uso dos recursos intertextuais que comprometem barreiras usuais de segurança autoral constitui-

181 se como procedimento capital para a instauração de um projeto genealógico como também de edificação de uma persona lírica em gênero declinadas na poética de Adília Lopes – procedimento esse que em sua formulação muito comunga com certos dispositivos presentes na encenação de subjetividades femininas na lírica de Sylvia Plath.

A fim de exemplificar melhor o funcionamento deste dispositivo genealógico e de construção da persona lírica em gênero declinados, estudou-se a intensa construção intertextual de O marquês de Chamilly de Adília Lopes e o enquadramento subjetivo feminino do livro. Na leitura de O regresso de Chamilly, a análise anterior da manifestação do sofrimento feminino dentro de uma dinâmica de instabilidade da voz lírica e do procedimento que cunhei como “indecibilidade irônica” foi mantida, sendo acrescida uma reflexão acerca da questão sexual e reprodutiva feminina. A partir da abordagem do problema da sexualidade e da reprodução para a mulher, iniciou-se o trabalho com as remissões intertextuais presentes no livro de Adília Lopes à obra de Sylvia Plath, sendo o capítulo finalizado com a abordagem do poema “Mary’s song”, cujo fragmento fecha o livro A mulher-a-dias de Adília Lopes.

A análise do poema “Mary’s song” de Sylvia Plath, ao mesmo tempo que foi um caminho para pensar os diálogos entre a materialidade e o doméstico nas respectivas autoras – em especial naquilo que tange às práticas religiosas e caseiras abordadas em “Cristo-osga” –, reorganizou as características antes apontadas em O marquês de Chamilly e O regresso de Chamilly sob a luz do trabalho comparativo com Sylvia Plath. Desse modo, a zona de instabilidade na encenação de subjetividades femininas encontrada em ambas as autoras, a qual é profundamente vinculada à perspectiva representacional do corpo sexuado feminino na dicotomia entre espaço

182 público/universal e privado/pessoal, tornou-se uma ponte para pensar no último capítulo o lugar do corpo na instabilidade da formulação subjetiva.

Desse modo, no último capítulo, a tese discutiu as relações entre corpo, percepção e escrita, a partir da teoria de Henri Bergson, Gilbert Simondon e Sigmund Freud, sendo todas essas abordagens teóricas na tese sensibilizadas pela perspectiva dos estudos de gênero. Pela leitura comparativa de “A domadora de crocodilos” com “Lady Lazarus”, o estudo explorou a dinâmica de alterização/personificação na linguagem poética de Adília Lopes e Sylvia Plath, com especial enfoque dentro dessa dinâmica do papel simbólico desempenhado pelo corpo na constituição da subjetividade em literatura, apontando-se o corpo como um topos densamente habitado em seus usos por práticas sexuadas.

Por fim, ao identificar nos poemas de Adília Lopes e Sylvia Plath uma dinâmica transacional de formulação subjetiva, a tese mostrou a interpelação como uma dimensão constitutiva crucial do processo de construção da subjetividade feminina nas obras das autoras. A encenação de subjetividades em feminino na poética de Sylvia Plath, em que a instabilidade/duplicidade dos predicados na construção discursiva do corpo sexuado e o “eu” feminino é constantemente explorada, demonstrou-se um procedimento de intensa ressonância na poética de Adília Lopes. Assim, pôde-se observar como a linguagem de Sylvia Plath representa para Adília Lopes, poeta para quem a textualidade significa um lugar chave para a formulação da voz e persona poética, um “outro” profundamente constitutivo do eu-lírico adiliano.

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