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Conclusões: Um Espaço para a autonomia

No documento A autonomia do servidor público no Brasil (páginas 75-81)

Mesmo na literatura em inglês, a questão da autonomia pessoal é pouco abordada. Os trabalhos de Ciências da Administração citados nestas páginas constituem uma amostra de material raro. Não seria a questão da autonomia um assunto relevante para quem se ocupa em investigar as organizações humanas? É verdade que, há décadas, a academia norte-americana debruça-se sobre a questão da accountability, da transparência e da legitimidade da ação dos agentes públicos, mas quase sempre sob uma perspectiva restrita, de controle sobre a ação daqueles investidos na função pública. Teria sido esquecido esse assunto no mainstream acadêmico? Uma salutar humildade obriga-nos a responder negativamente. Não: tal questão, colocada da forma com que foi posta neste trabalho, jamais teria sido negligenciada, considerando-se sua importância. A razão que explica esse silêncio deve ser buscada em outra instância, e nós acreditamos que ela deva estar em aspectos da matriz cultural norte- americana, em que a autonomia do funcionário é um pressuposto, algo com que já se conta. Colocada a questão dessa maneira, a autonomia não seria um problema a ser investigado pelos pesquisadores de Administração norte-americanos. Entretanto, autonomia dos funcionários, sejam eles públicos ou particulares, não pode ser pressuposta em terras brasileiras.

Tendo essa realidade cultural brasileira em vista, na qual prevalece uma visão de que o funcionário deve fazer apenas aquilo que lhe for permitido fazer, pela lei e pelo arbítrio de seus superiores hierárquicos, percebemos que as duas dimensões da autonomia que Lotte Bailyn (1984) evidenciou seriam mais apropriadamente compreendidas como sendo três: autonomia objetiva, técnica e substantiva. O diagrama que apresentamos na Figura 2 mostra que elas estão articuladas em três planos distintos, em uma abordagem que se aproxima do gráfico proposto pela professora norte-americana. Para ela, a autonomia técnica e a substantiva podem ser encaradas como duas dimensões independentes do mesmo fenômeno. Entretanto, uma dimensão nada desprezível para nossa análise, sobretudo em um contexto de burocracia patrimonialista, é a objetividade da autonomia, aqui compreendida como a liberdade que a pessoa tem para tomar sua tarefa e cumpri-la.

A forma como posicionamos os planos da autonomia no diagrama não é casual. Trata-se de três dimensões de um fenômeno que é único e que se articulam com certa interdependência, ou seja, não podem ser pensadas como parâmetros independentes entre si. Em outras palavras, entendemos que, para um dado funcionário público no exercício de sua função, uma variação no grau de uma das dimensões da autonomia, seja ela objetiva, substantiva ou técnica, sempre repercutirá de alguma forma nas demais. Das três, podemos

considerar a dimensão objetiva como basilar, pois sem ela a pessoa não é capaz de realizar seu trabalho.

Figura 2 – Dimensões da autonomia pessoal em relação ao trabalho.

E por que nossa ênfase nessa dimensão objetiva da autonomia? Não poderíamos seguir o exemplo da literatura existente e abordar simplesmente as outras manifestações do fenômeno? Parece-nos que não. Relações de lealdade e de apropriação privada são fartamente documentadas na burocracia estatal brasileira, formando um sistema afastado do modelo ideal

weberiano que tem sido recorrentemente chamado de “burocracia patrimonialista”. Nesse

sistema, em linhas gerais, o dirigente enxerga-se como “dono” da burocracia sob seu comando, em uma apropriação que se manifesta concretamente em diversas intensidades, mas sempre propensa a controlar a ação de seus subordinados, funcionários públicos indicados ou de carreira. Associado a esse fenômeno, assistimos também a comportamentos arbitrários na condução dos órgãos governamentais que resultam em mudanças intempestivas de rumo, cancelamentos de projetos ou programas e a consequente paralisação dos trabalhos envidados pelo funcionalismo. Todos esses fatos bloqueiam a autonomia em sentido objetivo do servidor público, impedindo-o de levar a cabo a tarefa que a ele fora incumbida.

Assim, presenciamos um acirramento do controle da corrupção na Administração Pública. De tal modo que Arantes et al. (2010) mostram que, muitas vezes, as diversas instituições e instrumentos brasileiros para o controle sobre a Administração fazem prevalecer o combate à corrupção. Tal fenômeno tem origens complexas, mas queremos chamar a atenção do leitor para duas de suas fontes: um pressuposto a respeito do homem e um jogo de poder. A primeira tem relação com a instrumentalização do servidor público, na medida em que considera tão somente a dimensão objetiva de seu trabalho e negligencia a subjetiva, e

com uma visão antropológica reducionista da pessoa que trabalha no setor público (“a ocasião faz o ladrão”); uma fonte cultural, portanto. Por sua vez, a segunda fonte que gostaríamos de

destacar para o recrudescimento da campanha contra a corrupção é a ampliação de um controle pessoal (ou de um grupo) sobre determinada parcela do funcionalismo: um jogo de poder que, por meio da sujeição dos funcionários a um estado de temor e ameaça, busca aumentar a influência de quem o promove. Uma fonte política, enfim (naturalmente, estamos a falar de política em sentido latíssimo, muito distante do conceito clássico dessa nobre palavra). Fato é que o recrudescimento dos mecanismos de controle pode chegar a um grau que atrapalhe a ação administrativa, colocando os servidores em um estado de temor paralisante (ARANTES, LOUREIRO et al., 2010, p. 135). Nesses casos, a própria capacidade de realização das tarefas cotidianas pode ficar prejudicada.

Os fenômenos que acabamos de delinear parecem-nos ameaçar decisivamente a manifestação e o desenvolvimento da autonomia dos servidores públicos no Brasil, justamente em sua dimensão basilar, qual seja a objetiva. E não apenas a arbitrariedade dos dirigentes ou patrimonialismo, mas todos aqueles outros detidamente desenvolvidos neste trabalho. Enfim, são muitos os obstáculos que se apresentam a um saudável desenvolvimento da autonomia dos servidores públicos no Brasil. Há ainda restrições legítimas e necessárias para impedir que esse desenvolvimento seja excessivo. Para organizar o pensamento e resumir os aspectos mais relevantes deste trabalho, elaboramos a tabela a seguir, que delineia os elementos que restringem o desenvolvimento da autonomia dos servidores públicos no Brasil. Ressalte-se que nem todos eles são indesejáveis: elencamos também aqueles saudáveis limites à liberdade dos servidores.

Tabela 1 – Restrições ao desenvolvimento da autonomia dos servidores públicos no Brasil.

Administrativos

Disfunções burocráticas (patrimonialismo, arbitrariedade dos dirigentes, impessoalização das relações humanas, ambiente hostil).

Políticos

Pressupostos do Estado Democrático de Direito (controle, accountability). Disfunção do combate à corrupção (jogos de poder).

Jurídicos

Falta de legitimação da autonomia no direito positivo e na doutrina. Interpretação contemporânea dos conceitos jurídicos indeterminados de

impessoalidade e interesse público.

Culturais

Jaula de ferro, síndrome comportamentalista.

Disfunção do combate à corrupção (pressupostos sobre o homem). Instrumentalização do servidor.

Para tornar mais claro o elenco de elementos levantados, nós os enquadramos em quatro classes: elementos administrativos, ou seja, aqueles relacionados ao fazer administrativo; políticos, quais sejam, os relacionados às relações democráticas e de poder; jurídicos, grupo em que estão aqueles relacionados à aplicação da lei positiva; e culturais. É preciso ter presente, contudo, que esses compartimentos não são estanques, e podemos vislumbrar diversas interrelações que atravessam as classes apresentadas.

O diagnóstico precede o tratamento. Observando o panorama traçado na tabela 1 podemos identificar fenômenos que podem ser trabalhados, mitigados. Outros que não devem ser mexidos, ou mesmo devem ser reforçados, como aqueles relacionados aos pressupostos do Estado Democrático de Direito. Alguns deles, como a falta de legitimação da autonomia no Direito pátrio, exigiriam uma discussão legislativa e jurídica de alto nível muito válida e desejável, mas inalcançável para o administrador prático. Quanto aos elementos culturais, alguns podem ser, e já são, abordados por pesquisadores de Administração. Mas, entre eles, há alguns tão arraigados no pensamento hegemônico e nos compromissos de vida moderna,

como a síndrome comportamentalista e a “jaula de ferro”, que sua transformação não passa

simplesmente pelo interior das organizações públicas, mas por toda a sociedade contemporânea.

A análise sobre os elementos contidos na tabela 1 permite-nos identificar alguns importantes espaços para o desenvolvimento da autonomia do servidor público. Em primeiro lugar, desamarrar os nós que bloqueiam o exercício da autonomia objetiva, ou seja, a simples capacidade que se dá à pessoa de levar a cabo seu trabalho. Essas ações concentram- se, principalmente, sobre as restrições de natureza administrativa:

a) desenvolver a liberdade positiva dos servidores, no sentido em que tratamos no capítulo quarto, por meio da ruptura de laços patrimonialistas

na burocracia. Para tanto, reforça-se a liberdade negativa do modelo ideal weberiano, libertando o funcionário de compromissos de lealdade que o conduzem à parcialidade no agir;

b) promover o controle social sobre a atividade do órgão público, seja por meio de mecanismos de transparência, seja por meio da ação articulada com organismos da sociedade civil. Esse olhar atento da sociedade tem potencial para inibir ações irresponsáveis de dirigentes que coloquem em risco a prestação do serviço público. Rompe-se, assim, a arbitrariedade dos dirigentes;

c) restituir ao servidor a soberania e a responsabilidade sobre seu próprio serviço, em uma meritocracia que não descambe em competição egoísta. É

reconhecer que o serviço público deve permitir que seu agente “empenhe a

sua responsabilidade e aperfeiçoe o seu próprio ser”. Enfim, mitigar os efeitos da impessoalização das relações humanas, sobretudo no âmbito da burocracia; e

d) por fim, o necessário combate à corrupção, perpetrado pelas múltiplas instâncias de controle, deve encontrar parâmetros para seu limite. Entendemos que esse limite, de difícil, mas necessária determinação, deva levar em conta o atraso e a frustração do serviço público controlado.

Encontrando condições para o florescimento da autonomia objetiva, é preciso também encontrar espaços para que frutifiquem suas outras dimensões. Para tanto, parece-nos necessário atacar a falta de legitimidade que goza sua autonomia pessoal em face do arcabouço legal e, sobretudo, à doutrina administrativista hegemônica. Essa seria uma instigante matéria para pesquisa na seara jurídica, com promissores resultados. Mecanismos que defendessem o trabalho realizado pelo serviço público de iniciativas arbitrárias, por exemplo, seriam importante pauta para a atividade legislativa. Ainda, uma reinterpretação do dilema Estado-cidadão, à luz da primazia do homem e de seu trabalho, poderia iluminar diversas discussões do Direito Público.

Por fim, a fortaleza cultural. Como apresentamos no capítulo sexto, questões culturais de fundo permeiam o entendimento cotidiano em relação ao homem, em relação ao trabalho e a respeito da relação homem-trabalho. Apresentamos como elas acabam por perverter as relações humanas e a perverter o próprio trabalho, retirando do homem sua autonomia, sua responsabilidade e sua personalidade. Visões e práticas administrativas que

instrumentalizam o homem. Não faltaram profetas para indicar esse fenômeno, dos quais citamos os padres conciliares do Vaticano II, Max Weber, Jacques Maritain, Alberto Guerreiro-Ramos, entre outros. Em última análise, uma superação definitiva da “jaula de

ferro”, ou da “síndrome comportamentalista”, passaria por contornar alguns dilemas que se

colocam hoje como paradoxos: organização de mercado versus organização planificada, individualidade versus coletividade, cidadão versus Estado, entre outros. Enfim, estamos a lidar justamente com os dilemas dos tempos modernos, que podem e devem ser enfrentados, mas com humildade e paciência.

No documento A autonomia do servidor público no Brasil (páginas 75-81)

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