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CONCLUSÕES — O ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁ TICO E AS LEIS DE VALOR REFORÇADO

A normação no Estado Constitucional, Representativo e de Direito, e mormente num Estado de Direito Democrático, há-de necessariamente

(412) Leia-se Jorge MIRANDA, em A CRP de 1997 — Sistema de actos legislativos, ob. cit., p. 92, e Manual de Direito Constitucional, Tomo V, ob. cit., p. 352.

(413) Jorge Miranda é claro ao acentuar que uma lei ordinária comum só poderá

violar, fora destes caos, uma lei orgânica nos casos de desrespeito dos artigos 168.º e 136.º/3 caso em que se verificará uma inconstitucionalidade formal.

(414) Jorge MIRANDA, Perspectivas Constitucionais, Vol. II, ob. cit., p. 942.

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desenvolver-se no quadro de uma traçada separação de poderes. Esta doutrina — entendida simultaneamente enquanto princípio jurídico de actuação e de limitação — visa, de acordo com a lição dos mais reputados autores, a prossecução de um objectivo de racionalidade que se verte no próprio conceito de lei. De facto, o conceito de lei incorpora, desde o está- dio liberal, uma ideia de racionalidade a que não está alheia a ínsita gene- ralidade — expressão da vontade popular — que até hoje — e ao contrá- rio da característica da abstracção — é herança rousseniana no cenário legiferante.

É que esta generalidade pressupõe e implica uma igualdade posicio- nal dos sujeitos-cidadãos que são emissores — por via do princípio demo- crático — e destinatários das normas. Sob esta perspectiva, parecerá claro que a legitimidade democrática é hoje bastante mais exigente do que uma estéril consagração de um formal parlamentarismo.

Mais do que mera representatividade exige-se hoje verdadeira repre- sentação. Ora, neste âmbito, foi a função legislativa aquela que inquestio- navelmente desde sempre — e mormente no seio do constitucionalismo moderno de matriz liberal e revolucionária — maior necessidade de defi- nição suscitou e continua a suscitar. De facto, isto é assim não apenas no que respeita aos respectivos traços caracteriológicos identificativos, como no que tange à necessidade de confronto vis a vis com as restantes funções admitidas.

O princípio da legalidade, afirmado inequivocamente no dealbar do Século XVIII, mas almejado desde a Antiguidade Clássica, tem merecido atenção da doutrina, nas suas formas e funções mais variadas. O con- ceito de lei — formal e material — associado a este princípio recorre ine- vitavelmente àquele outro de força de lei. Ora, neste âmbito, surge como provável que a consideração das chamadas “leis de valor reforçado” impli- que uma redefinição da caracterização da função legislativa e, portanto, do critério utilizado para a individualização das funções do Estado.

De facto, esta categoria ou subespécie de leis de valor reforçado vem tumultuar, por uma banda, o princípio da legalidade e, por outra banda, a consagração do princípio democrático.

Quanto ao primeiro, falar-se-á eventualmente de uma autovinculação pelo legislador ou de uma vinculação de segundo grau, apesar da vertente funcional e não hierárquica que se costuma assinalar às leis de valor refor- çado. Podemos pois aqui dizer que aquele princípio da legalidade deixa apenas de ser entendido enquanto face externa da função legislativa e limite e parâmetro de controlo e fiscalização da Administração. Ou seja,

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a lei de valor reforçado implica que o princípio da legalidade autoregula a própria função legislativa e não ordena apenas exteriormente as restantes funções do Estado. Ou seja, pelo menos, implica que este princípio da lega- lidade se aplique curiosamente, enquanto autovinculação também ao órgão legislativo que o é por excelência, e não apenas ao Governo enquanto órgão não primacialmente legislativo (415).

Ou seja, o controlo é feito, pelas leis de valor reforçado, dentro do âmbito da própria função legislativa e, dentro desta, intraorganicamente e não apenas no seio de uma relação interórgãos. Esta susceptibilidade de controlo interno consubstancia-se no retemperamento do sistema de con- trolo da legalidade, entre nós também a cargo do Tribunal Constitucional por expressa determinação da Constituição, mas sempre entendido enquanto parente pobre — quando não mesmo rejeitado — do sistema do fiscalização da constitucionalidade.

Enquanto escalão intermédio da normação, a verdade é que as leis de valor reforçado, da Assembleia da República, se ancoram também no princípio democrático. Quer porque implicam uma relação de parametri- cidade genérica substancial, quer porque directamente vinculam actos legis- lativos que se encontram em relação de estrita dependência, quer porque resultam de um procedimento formal agravado, traduzem uma composição de interesses reforçadamente legitimada.

Repare-se que à relação Constituição — Lei — Regulamento, o sistema ora em causa antepõe a sequência Constituição — Lei Reforçada — Lei — Regulamento. Não têm assim razão os que descortinam nesta nova categoria uma preocupante redução dos níveis de garantia propiciados pelo princípio da legalidade e pelo princípio democrático. Muito pelo contrá- rio, as leis de valor reforçado antes consolidam esta concatenação. O que parece no entanto incontornável é que esta intermediação faz restringir o leque da oportunidade política de conformação que se concede ao legislador. Mas esta certeza não nos coloca ao lado dos que vêm aqui résteas de peri- goso “funcionalismo”, nem podemos concordar que “Semelhante politici- dade acaba por transportar consigo o risco da conversão do momento con- cretizador do estádio teleológico, numa “carta em branco” colocada à mercê do subjectivismo inerente à matriz política do intérprete” (416). (415) Como no caso das leis de autorização e das leis de bases em relação, respec-

tivamente, aos decretos leis autorizados e os decretos leis de desenvolvimento. É aqui de todo relevante a matéria de controlo de legalidade.

(416) Carlos BLANCO DEMORAIS, As leis reforçadas, ob. cit., p. 618.

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Mas repare-se que a preocupação do legislador constituinte foi a de que esta categoria — com implicações sérias de regime, v. g. maxime no caso das leis orgânicas — pudesse corporizar valores que alguns autores designarão de “paraconstitucionais” (417). Por isso mesmo não concordamos com BLANCO DEMORAIS, quando se refere à transformação do intérprete “numa Câmara de Revisão Constitucional, num oráculo supostamente mais apto do que o legis- lador constituinte para predizer o futuro e para “contradizer a maioria legis- lativa de hoje com os valores da maioria de amanhã. A existirem “valores constituintes” de alcance estruturante, estes prender-se-ão intrinsecamente à ple- nitude da própria soberania, inerente à decisão constituinte originária e ao princípio democrático que rege uma sociedade aberta.

É essa mesma soberania e estrutura democrática que impõe que qual- quer mutação no sentido das normas constitucionais deva ser decidida por via de um itinerário de revisão e não por um intérprete que pretenda impor consensos e a sua noção subjectiva de valores, ao resto da colectividade, ou que intente descobrir os seus próprios valores em nome desta” (418).

É que, parece-nos, esta crítica não procede por olvidar uma essencial distinção de natureza — que não é meramente de grau — entre o que seja legiferação ordinária e legislação fundamental. Não queremos com isto dizer que não seja desconcertante e criticável a desconexão que nomea- damente o legislador constituinte de 1997 entendeu introduzir na nossa carta fundamental. Aqui sim, partilhamos das críticas contundentes da doutrina e aceitamos mesmo que aqui estejam latentes “problemas inter- pretativos de um conceito normativo indeterminado” que seja o de lei reforçada ou de valor reforçado (419).

Mas firmemente cremos que não podemos correr o risco, enquanto queiramos proceder a uma análise racional deste instituto, de prescindir de conceitos úteis em virtude de críticas menores. É que a relação de respeito pelas leis de valor reforçado justamente implica:

— Solenização e estabilização normativa com rigidez propiciadora de durabilidade temporal;

(417) Veja-se a referência feita em 8.

(418) Carlos BLANCO DEMORAIS, As leis reforçadas, ob. cit., p. 597.

(419) Idem, ob. cit., p. 602.

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— Excepção à incidência do critério maioritário como método básico de decisão política tangente;

— Inserção da legislação assim produzida numa área de consenso ou compromisso que a retira do campo normativo próprio da con- flitualidade política (420).

Assim sendo, o “escopo das leis reforçadas acaba por obter um fun- damento justificante em princípios fundamentais que integram a unidade material da ordem constitucional vigente. — modelo democrático de Estado, em que se assumem como uma norma de origem representativa e se inte- gram no quadro das manifestações normativas de vocação consensual, pró- prias dos estados sociais de direito” (421). Daqui resulta que, ao invés

do que injustamente se retiraria de uma primeira e apressada análise, as leis de valor reforçado parecem traduzir-se não em limitações, mas em ver- dadeiro corolário e real sequência dos princípios tipicizados que concre- tizam o Estado de Direito Democrático — contexto em que se desenvolve a actividade política de legiferação.

(420) O elenco é de BLANCO DEMORAIS, As leis reforçadas, ob. cit., p. 621.

(421) Ainda Carlos BLANCO DEMORAIS, As leis reforçadas, ob. cit., p. 623.

No mesmo sentido, veja-se a sua obra Reinventar a Democracia, Cadernos Demo- cráticos, Gradiva, 1998.

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