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75condição antagônica comum A identidade real existente

entre os indivíduos, aquela que faz deles membros de uma comunidade de produtores, dissolve-se em uma identidade aparente que faz deles cidadãos de uma comunidade de indivíduos. As regras do jogo preconizadas por Bobbio e aceitas por Cerroni não fazem senão limitar a participação política aos indivíduos isolados, aos cidadãos de uma comu- nidade ilusória. Uma participação que é cada vez menor e mais inefi caz, como alertou recentemente Losurdo (2004).

A superação da comunidade aparente e a realização de uma comunidade real, o comunismo, só podem ocorrer por meio da superação da igualdade aparente que se manifesta na esfera do mercado e da desigualdade real que se afi rma na esfera da produção. A emancipação social tem início como emancipação política, mas a emancipação política só se realiza plenamente com a emancipação social. O fi m da dominação capitalista só pode ocorrer com o fi m do despotis- mo fabril e das relações sociais capitalistas. Era esta unidade dialética entre o político e o social que escapava a Bobbio.

Conclusão

Se repetíssemos a pergunta feita por Bobbio trinta anos atrás, mas tendo por alvo os participantes do debate, seria forçoso reconhecer que não possuíam uma teoria marxis- ta da política e que se moviam livremente no campo teóri- co da democracia liberal. Ou seja, eram incapazes, em sua maioria, de construir uma teoria “diversa e antagonista com relação à teoria constitucionalista do Estado capitalista”, como apontava Negri na ocasião (1976: 35)16. O aparente

consenso da maioria dos autores que escreviam nas páginas de Mondoperaio e Rinascita a respeito da “inexistência, ou insufi ciência, ou defi ciência, ou irrelevância” de uma teoria

16 Justiça seja feita: a exceção, reconhecida até mesmo por Negri, era Pietro Ingrao (1976).

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marxista da política, como afi rmava Bobbio, permitia que se afastassem da obra de Marx sem abrir mão da autoridade deste. O vazio criado pela suposta inexistência de uma teo- ria marxista da política era preenchido, assim, pela teoria liberal do Estado capitalista.

Protestando contra o uso escolástico e repetitivo dos tex- tos de Marx, Bobbio havia criado o pretexto necessário para tal. Não seria de bom tom responder-lhe por meio de Marx. Nas páginas de Mondoperaio, Macchioro protestou na ocasião: “a fi lípica bobbiana contra os escolásticos e os repetidores procede sem dar nomes” (1976: 65). E com razão, porque a fi lípica bobbiana chegava tarde demais e condenava aquilo que estava sendo superado. Em sua pesquisa sobre o marx- ismo ocidental, Perry Anderson (2004) havia constado de modo consternado o lugar subalterno que a política ocu- pava na pesquisa marxista após a década de 1930. Os tem- pos, entretanto, eram outros. Poulantzas (1968) e Miliband (1969) haviam antecipado uma vigorosa retomada dos estu- dos marxistas críticos que superavam a condição subalterna da teoria política no programa de pesquisa marxista17. O

marxismo acompanhava, assim, um movimento de renovação da própria teoria política – e não apenas daquela de inspira- ção marxista – que procurava respostas para a crise do fi nal dos anos 1960 e início dos 1970 (cf. Ball, 2004).

Marx não desenvolveu de modo completo esse pro- grama de pesquisa crítica da política. Ao contrário da críti- ca da economia política, que tem sua sede em O capital, sua crítica da política é dispersa e fragmentada. Mas deixou claramente as indicações para o desenvolvimento dessa pesquisa em vários de seus escritos de juventude e, prin- cipalmente, no Manifesto comunista, em A luta de classes na

França, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, em A guerra civil

17 Tentativas de mapear esse esforço podem ser encontradas em Gold, Lo e Wright (1975 e 1976); Jessop (1982); Barrow (1993); e Carnoy (1984).

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na França, dentre outros textos, além, é claro, das passagens

de O capital nas quais discute a relação entre a política e o processo de acumulação capitalista. A renovação da teoria marxista da política a partir do fi nal dos anos 1960 revelou que o estudo dessas obras ainda era insufi ciente. Os limites do debate italiano, notadamente a incapacidade dos intelec- tuais do PCI de pensar uma teoria política antagônica à teoria constitucional-liberal, e, portanto, de desenvolver a própria teoria marxista que diziam representar, mostrava, por outro lado, que mais uma volta a Marx e aos clássicos do marxismo não seria tempo perdido.

Os acontecimentos do fi nal do século XX e o início do XXI mandaram pelos ares certezas políticas e teóricas. E, se por um breve período de tempo foi celebrada a enési- ma morte de Marx, o vigor da tradição marxista no presen- te permite afi rmar que as notícias sobre seu falecimento haviam sido algo exageradas. Uma nova situação política e um novo nexo teoria – movimento têm permitido um importante desenvolvimento do marxismo crítico, adog- mático e antidogmático. É que nos momentos de crise o marxismo revela sua capacidade de constituir uma crítica da política que se afi rma como o programa teórico da supe- ração da teoria política de sua época e o programa prático da superação da própria política.

Para dar conta desses desafi os, que são defi nidos não pelo marxismo, e sim postos pelo próprio processo históri- co, o programa de pesquisa da teoria marxista da política deveria desenvolver-se de modo unitário sobre três eixos complementares: uma crítica da política e do Estado bur- guês, uma teoria da revolução e uma teoria da transição. Essa separação é meramente analítica e diz respeito a três momentos diferentes, mas articulados da realidade políti- ca: o Estado capitalista, a revolução socialista e as formas estatais da transição (dentre elas o Estado socialista). A teo- ria do Estado capitalista e a teoria do Estado socialista são

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diferentes desenvolvimentos de uma mesma teoria, a teo- ria marxista do Estado. Mantidas as condições sociais sobre as quais esse programa de pesquisa foi construído, ou seja, enquanto o poder mantiver sua forma política, enquanto ele for o poder de uma classe para a opressão de outra, essa teoria preservará sua capacidade crítica.

A crítica da política iniciada, mas não completada, por Marx, é, assim, uma crítica da teoria política liberal e uma explicação alternativa dos fundamentos e das formas do poder político. A oposição se estabelece, desse modo, entre a teoria marxista da política e a teoria liberal ou constitucio- nalista da política e não, como parece pretender Bobbio, entre a teoria do Estado socialista e da democracia socialis- ta e a teoria do Estado burguês e da democracia burguesa. Ora, o Estado e a democracia socialistas são opostos ao Esta- do e à democracia burguesa e a teoria socialista (ou marxis- ta) é oposta (ou deveria ser) à teoria burguesa. Mas dessas antíteses não se pode passar a uma cisão entre a teoria que permite pensar o Estado burguês e a teoria que tem por objeto o Estado socialista.

A diferenciação entre teoria do Estado capitalista e teo- ria do Estado socialista não faria sentido sequer no interior do argumento de Bobbio que procura, a todo o momento, preencher o suposto vazio de uma teoria das instituições socialistas com uma teoria das instituições democráticas váli- da tanto para o capitalismo como para o socialismo. Aqui, entretanto, revela-se uma diferença fundamental. Para o fi lósofo italiano, a unidade da teoria é defi nida por aquilo que ele quer afi rmar, a permanência das regras do jogo, as formas institucionais da democracia contemporânea. Sua teoria é, assim, uma teoria positiva da política. Para o mar- xismo, a unidade da teoria é dada por aquilo que ele quer negar, o poder político. O marxismo é, assim, uma teoria negativa da política. É essa negatividade a condição para a existência de uma teoria marxista da política.

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