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H. A CRÍTICA WEBERIANA DA RACIONALIDADE

I. CONDIÇÕES INTERNAS

1. ÉTICA: RELIGIOSIDADE E RACIONALIZAÇÃO É durante o século VI a.C. que muitas transformações sociais, políticas, econômicas e religiosas ocorrem na Grécia. No campo da religião uma das transformações é a gradativa substituição das religiões aristocráticas homéricas que veneravam os heróis e tinham na arete seu código moral pelas religiões populares ctônicas em suas mais variadas roupagens, como o orfismo, as religiões de mistério e o culto a Dioniso. Esta mudança na religiosidade grega caminha pari passu com as mudanças sociais e políticas. Assim neste capítulo pretende-se relacionar estes dois campos distintos com vistas à compreensão do “milagre grego” da passagem do mythos ao logos.

Comparado ao judaísmo, o processo de racionalização na religião grega foi tardio. Esta racionalização, no caso judeu, se mostrou na gradativa concepção de uma divindade invisível, una e desantropomorfizada em torno da qual um povo e um único território se reuniam. A noção de unidade divina é o caso mais explícito da racionalização religiosa: um só deus, um só povo, um só território, uma só fé. Caso completamente contrário ocorreu na Grécia: vários deuses, vários povos, vários territórios, várias crenças. O pluralismo grego tardou o nascimento da racionalização grega, que, na crítica tradicional, teria começado somente com Heródoto, ao tentar fazer uma filosofia da história, motivado pela fragmentação de opiniões na democracia.

É impossível falar do mundo antigo e não falar de religião; principalmente em uma perspectiva weberiana, onde, para usar um vocabulário marxista, a superestrutura também age sobre a infraestrutura. Assim, nesta perspectiva, a política e a religião, como manifestações culturais, e portanto superestruturais, tem incidência sobre a matéria. A política e a religião na antiguidade se imbricavam completamente. Como diz Sourvinou-Inwood (p.295):

a polis proveu uma moldura fundamental na qual a religião grega operou. Cada polis era um sistema religioso que formava parte de um sistema mundo-da-polis mais complexo, interagindo com os sistemas religiosos de outras poleis e com a dimensão religiosa Panelênica.

Esta relação entre política e religião na verdade se deu durante toda a história, até seu primeiro crítico explícito escrever o Tractatus

theologico-politicus, Benedictus Spinoza, no XVII. Durante o XVIII tal relação é posta em cheque e vem à cabo em 1789 como bem sabido. Assim “toda a existência civíl dos helenos e as relações recíprocas das várias cidades-estados gregas eram fundadas quase por inteiro sobre a religião (NESTLÈ, 1973, p.54).”

Portanto na Grécia arcaica do século VI a.C., a religião estava completamente penetrada em todos os aspectos da vida política e econômica, sendo muito difícil separar uma da outra. Mesmo dentro da religião grega havia uma pluralidade imensa de práticas religiosas. Na verdade é até mesmo difícil, se não impossível, falar em uma “religião grega”. O que havia eram múltiplos cultos em torno de forças naturais divinizadas, simbolizadas e, posteriormente, antropomorfizadas – uma “rede de sistemas religiosos a intereagir um com o outro (SOURVINOU-INWOOD, p.300)” – que eram o cerne da moral grega e se extravazavam para todos os campos da vida: sexualidade, política, cosmologia etc. Mas, a título de simplificação, seguimos a classificação de Nestlè (p.57), que elenca três tipos básicos de devoções gregas durante o medioevo grego que se imbricam e relacionam-se mutuamente, a saber, cultual, mística e racional.

O século VI é o século da formação da burguesia nobiliar grega, do nascimento das poleis, da lírica arcaica, da emergência da subjetividade, da expansão marítima, do aumento demográfico, das colonias gregas na Ásia menor , das reformas de Sólon, dos pisistrátidas e de Clístenes. Todas estas mudanças no campo político se refletem na religiosidade grega como passaremos a ver nas próximas linhas.

Na religiosidade grega tínhamos a veneração das divindades nas forças naturais mesmas. Antes animais, árvores e pedras eram venerados. Agora temos uma mudança: eles são venerados somente como símbolos das divindades próprias. É o caminho em direção à simbolização das deidades: a quércia é símbolo de Zeus, o loureiro de Apolo, o pinus de Poseidon, a vaca de Era, a coruja de Atenas, a videira de Dioniso, a ursa de Artemis etc. Houve uma associação entre as forças naturais e as divindades por seus símbolos míticos.

Ademais ao processo de simbolização houve o processo de antropomorfização das deidades, quando os deuses assumiram forma humana junto ao seu animal ou vegetal arquetípico. As imagens antropomorfizadas das divindades só surgiram a partir da metade do século VII. A ingenuidade grega na crença em deuses

antropomorfizados, que assumiam forma humana, é bem documentada na epopeia. Para o grego os deuses eram próximos aos homens porque para ele “toda a natureza era efeito e manifestação (NESTLÈ, p.60).” Esta ingenuidade é atestada no famoso caso de Pisístrato e seu disfarce de Atenas.18 Vários cultos mostram que os deuses tomavam forma humana, como o próprio culto a Dioniso: o deus literalmente tomava a pessoa e a tornava divina, o que os gregos chamavam de entheosiasmos, ter o deus dentro de si. Esta crença ingênua na manifestação dos deuses na natureza se atesta também pela constante tentativa de prever acontecimentos, de aconselhar-se e interpretar sonhos e sinais da natureza pela prática da adivinhação pelos famosos oráculos de Delfo e Apolo.

Como dito, havia três espécies de religiosidades gregas. Estas três classes de religiosidades são expressões de basicamente duas classes de cultos antitéticos mutuamente. Os cultos ctônicos e os cultos olímpicos. Alguns helenistas, seguindo Nietzsche, os chamariam de dionisíacos e apolíneos, porém tal classificação deixa a desejar em vários quesitos. Os primeiros rementiam à terra, à Gaia, às forças anímicas e subterrâneas do cosmos. À esta classe juntavam-se Deméter, Dionísio, Perséfone, Hades, Górgonas, Mormo, Lâmia, Empusa, Efialtes, Eumênides etc., eram deuses populares, por assim dizer, democráticos. Os segundos rementendo à ordem, aos deuses da segunda geração dos Titãs e aos heróis. Assim a antiga religião popular dos cultos ctônicos se misturava com a antiga religião homérica aristocrática olímpica.