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3. A TEORIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL ENQUANTO SALVAGUARDA DOS

3.1. Condições preliminares

Centralizar a reperspectivação dos direitos humanos a partir da teoria do mínimo existencial significa fazer gravitar inúmeros assuntos afeitos diretamente ao tema, como a dignidade da pessoa humana, o direito ao desenvolvimento, a democracia e a força de suas instituições, a ética, a justiça, o princípio da solidariedade, a vida, a liberdade, e os valores humanos de uma maneira geral. No entanto, preliminarmente, três ressalvas devem ser feitas para melhor orientar a linha metodológica adotada nesta pesquisa.

A primeira de que não se pretende com o presente trabalho estudar a teoria do mínimo existencial à luz da dogmática jurídica, nem do positivismo jurídico clássico, nem como forma de interpretar os direitos fundamentais, nem os direitos sociais previstos constitucionalmente. A intenção deste estudo é analisar a teoria do mínimo existencial sob uma perspectiva mais profunda, ou seja, sob um prisma mais essencial à própria racionalidade dos direitos humanos, o qual, por natureza, não se insere numa categoria necessariamente positivista. Por isso, opta-se por estudar essa teoria à luz da filosofia política desenvolvida por John Rawls, que bem direcionou essa incursão, principalmente depois que migrou de suas elucubrações a respeito da filosofia moral em torno da justiça.

A segunda, consequente da primeira, é de que ao se adotar a diretriz apontada por Rawls, tem-se que a expressão “mínimo existencial” deve ser visualizada enquanto sinônimo de “mínimo social”, cujo termo é empregado por ele nessa acepção139. A ideia

de Rawls sobre o mínimo social, como se verá adiante, em muito se distancia das condições necessárias à mera sobrevivência do ser humano, porquanto engloba os requisitos imprescindíveis à formação do cidadão em sociedade. Ademais, ater-se à mera sobrevivência do ser humano seria, de certa forma, endossar a atual ideologia da globalização econômica, que determina os direitos humanos a partir de um corte de miserabilidade, e não por um espectro que efetivamente prestigia a dignidade da pessoa humana.

Em resumo, o mínimo social, aqui colocado sob a terminologia do “mínimo existencial” – por ser essa a nomenclatura mais utilizada pelos estudiosos brasileiros140

139 Cf. RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Trad. Claudia Berliner. São Paulo:

Martins Fontes, 2003, p. 60.

140 Além dos autores que se mencionará abaixo, ver SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana

Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. 2ª. edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. BALERA, Wagner. A dignidade da

pessoa e o mínimo existencial. In MIRANDA, Jorge; SILVA, M. A. Marques da (Coord.). Tratado Luso-

Brasileiro da dignidade humana. São Paulo: Quartier Latin, 2009. Ver também WATANABE, Kazuo.

Controle jurisdicional das políticas públicas: mínimo existencial e demais direitos fundamentais imediatamente judicializáveis. In Revista de Processo, RePro 193/13, março de 2011; CLÉVE,

, é o constructo que melhor encampa a dignidade da pessoa humana, sem deixa-la ser amesquinhada, pois, o papel dos direitos humanos, em seu núcleo indissociável, não é o de preservar a simples sobrevivência, mas sim o de garantir uma vida digna.

A terceira é de que não se cotejará com a teoria do mínimo existencial, as formulações acerca da reserva do possível, fática ou jurídica, as quais, em tese, servi-la- iam de contraponto, principalmente porque seria uma transposição deslocada de conceitos. A justificativa é de que a reserva do possível foi concebida no âmbito do direito alemão, especificamente no Tribunal Constitucional Alemão e, portanto, consentâneo, estritamente, à realidade daquele contexto, não servindo, assim, como referencial à análise geral dos direitos humanos aqui desenvolvida.

Para melhor ilustrar, a proposição da reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen) tem sua origem na Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts (BVerfGE - decisões do Tribunal Constitucional Federal) 33, 303, proferida em 18 de julho de 1972, que analisava, especificamente, a constitucionalidade de normas de direito estadual que limitavam a admissão aos cursos superiores de medicina, nas universidades de Hamburgo e da Baviera, nos anos de 1969 e 1970, em razão do exaurimento da capacidade delas. Logo, bastante diferente do enfoque que está se dando, porquanto relativo, estritamente, ao mínimo existencial.

Além disso, o mínimo existencial, apesar de depender, obviamente, de disponibilidade orçamentária para sua implementação, não é passível de quaisquer ponderações em relação à reserva do possível, conforme relativo consenso doutrinário141.

Além disso, se se for ponderar sobre a possibilidade de efetivar o mínimo existencial, a raison d’être do Estado, no caso o Democrático de Direito, perder-se-á, pois se terá tão somente o caos e a anomia social instaurados, precisamente como era antes da instituição do Estado Moderno. Depois, porque já está se tratando de mínimo, ou seja, o piso, o fundo, aquilo cuja própria natureza de ser impede a ultrapassagem. E ainda, porque

Internacional, RDCI 54/28, jan-mar de 2006, p. 239-252; GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. Direitos

fundamentais sociais. In Revista de Direito Constitucional e Internacional, RDCI 53/40, out-dez de 2005.

Os três últimos em PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria, Doutrinas Essenciais: Direitos Humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 583-589 (vol. I); 239-252 e 278 (vol. III), respectivamente.

141 Além dos autores já mencionados, ver também NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A Cidadania Social

na Constituição de 1988 – Estratégias de Positivação e Exigibilidade Judicial dos Direitos Sociais. São

Paulo: Verbatim, 2009, p. 173-176. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da

Constituição. 7ª edição. Coimbra: Edições Almedina, 2004, p. 481. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 3ª edição.

Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 287-288. LOBO TORRES, Ricardo. O mínimo existencial e os direitos

segundo a voz da Comissão de Juristas Internacionais, expressa nos Princípios de Limburgo e nos Maastricht Guidelines142, o mínimo existencial é impassível de análise à

luz da reserva do possível.

Feitas essas considerações, e tendo-se em vista a miríade de conceitos acima suscitada, é preciso verificar quais são os pressupostos capazes de estruturar racionalmente a teoria do mínimo existencial, ou seja, as premissas aptas a dar os fundamentos necessários à construção de um referencial teórico que estipule as condições básicas e indispensáveis à vida humana numa sociedade economicamente globalizada.

Dessa forma, o primeiro passo no sentido de estruturar o mínimo existencial, enquanto salvaguarda dos direitos humanos frente a economia globalizada, é a retomada da ética na racionalidade econômica.