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A inserção de uma figura com natureza consensual no âmbito tributário sugere um paradoxo, pelo confronto entre a cogente imposição dos tributos e a possibilidade de acordo para solução do respectivo impasse que se estabeleça com a resistência (processual) do sujeito passivo.

No campo jurídico, um acordo é resultado de cessão ou renúncia a direito, o que pressupõe autonomia da vontade dos sujeitos e a disponibilidade sobre o objeto litigioso. Contraposto, um sistema tributário está delineado a partir de princípios e normas que, à primeira vista, excluem a autonomia da vontade, tanto do sujeito passivo – que está obrigado a pagar o tributo, mesmo quando discorde da exação legal – quanto do sujeito ativo, cuja atividade de arrecadação da exação implantada é instituída como obrigatória e estritamente

82 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 172: “A Constituição não cria tributos; define competências. A lei complementar também, em regra, não cria tributos; ela complementa a Constituição; em alguns casos, vimos que ela se presta à criação de tributos, afastando a atuação de lei ordinária. A regra, portanto, é a lei ordinária exercer a tarefa de criar, in abstrato, o tributo que, in concreto, nascerá com a ocorrência do fato gerador nela previsto”, grifo do autor. Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema..., p. 120-121; CARRAZZA, Roque Antonio. Curso... , p. 185-186.

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vinculada às hipóteses e formas dispostas no Código Tributário Nacional (Arts. 141 e 142).

Nesse contexto, a solução do litígio tributário por autocomposição deve ser fórmula de uso incomum83 porque exige do ente competente expressa

renúncia a direito (controvertido). Como, no âmbito do direito público, a “vontade” do administrador é convertida em competência84 legal, o estatuto da transação

atribui ao legislador (além da decisão de permitir a renúncia de receitas) a delimitação do espaço para conformação de um ajuste na seara do direito tributário. Nesse estágio, o motivo para a transação – disputa sobre crédito tributário – e a finalidade a ser alcançada através do acordo – determinação de litígio e extinção do crédito tributário – estão fixados pela norma geral da espécie (Art. 171, CTN), restando ao legislador competente delinear as “condições” para as “concessões mútuas” pelo gestor fazendário em interação com o sujeito passivo. “A lei pode facultar, nas condições que estabeleça” expressa que o legislador, além de permitir, deve condicionar a atividade para a solução autocompositiva. Estabelecer condição é “determinar a natureza ou a existência de”85 algo, “regular, controlar o comportamento de”86 alguém. Nesse segmento, o

83 Cf. ROCA, Juan Antonio Garde. Presentación. In: PISARIK, Gabriel Elorriaga (Coord.).

Convención…, p. 11: “No obstante, los arts. 39 de la Ley General Presupuestaria y 40 de la Ley

de Patrimonio del Estado permiten concluir que no existe una prohibición radical de transacción sobre los derechos del Estado en nuestras normas, aunque sea preciso para hacer uso de ella el respetar las estrictas reglas competenciales establecidas al respecto”. [Não obstante, os arts. 39 da Lei Geral Orçamentária e 40 da Lei de Patrimônio do Estado permitem concluir que não existe uma proibição radical de transação sobre os direitos do Estado em nossas normas, ainda que para fazer uso dela, seja preciso o respeito estrito às regras de competência estabelecidas.]. (Tradução nossa)

84 Cf. TORRES, Heleno Taveira. Transação..., p. 42: “[...] a vontade da Administração não é representação de ordem, mas cumprimento da legalidade, sob a égide do consentimento expedido pela representação da vontade do povo”.

85 HOUAISS, Antonio (Dir.). Dicionário... .

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legislador deve atentar para o motivo e a finalidade especificados na norma geral, de modo a não estabelecer condições que se mostrem incompatíveis ou desviantes desse ângulo visado, para não descaracterizar a figura visada. Assim, por exemplo, a permissão para uma renúncia ao valor total do crédito tributário configura uma remissão, nos moldes do Art. 172, CTN; a autorização para pagamento parcelado da quantia ajustada reflete o dispositivo do Art. 155-A, CTN.

A lei de permissão deve apontar à transação um modo de ser, prescrevendo condições para esse procedimento.

A palavra condição é empregada em direito em três sentidos. No primeiro, técnico próprio ou específico, traduz a determinação acessória, que se origina da vontade dos interessados [...] Numa segunda acepção, é tomada como requisito do ato, e é neste sentido que aparece em expressões como estas: condição de validade do negócio jurídico, condição

de capacidade para contratar, condição de forma do testamento. Não há

em qualquer desses casos, em verdade, uma condição, mas um requisito do ato jurídico. Numa terceira variação de significado, alia-se a palavra

condição a um pressuposto do ato, ou uma cláusula que ao direito acede

naturalmente, e que é dele inseparável. É o que os autores denominam de condição legal (conditio iuris), a que se dá também o nome de condição

imprópria, porque ainda que aposta ao ato sob a forma condicional,

implica em repetir apenas a exigência da lei, não passando a declaração de vontade de pura e simples.87

O significado correspondente à cláusula acessória de negócio jurídico é de incompossível utilização junto à obrigação tributária porque trata da autonomia da vontade regulando a eficácia de atividade subjetiva88.

87 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1992, (V. I: Introdução ao direito civil; Teoria geral de direito civil), p. 383-384, grifo do autor.

88 Cf. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 470: “A condição não é negócio acessório do principal, mas parte incindível de um único negócio. Na declaração negocial, a manifestação de vontade já nasce sujeita à condição, dela inseparável. Pontes de Miranda denomina a condição e o termo de manifestações inexas, não anexas nem conexas. O qualificativo “inexo”, na opinião do mestre, evita o sentido da acessoriedade, pois não há relação de acessório principal entre o ato jurídico e a condição ou o termo. Há um todo inseparável, a inexão é integração. Não se deve por isso caracterizar a condição como “autolimitação de vontade”, ou como “disposição ou determinação acessória”. A limitação não é da vontade, mas dos seus efeitos. Por outro lado, a condição não é acessória, mas elemento integrante do negócio.”

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O sentido de requisito pode ser admitido para consideração das determinações legais como critérios para materialização e controle jurídico de tal atividade: o ajuste é válido quando respeita as condições estabelecidas pelo legislador; a transação deve ser construída de acordo com as condições pré- estabelecidas pelo legislador.

A acepção de condição legal mostra-se como a mais adequada à significação pretendida no emprego do termo na transação em direito tributário. O estabelecimento de condições para a transação pelo legislador corresponde à especificação dos limites entre a indisponibilidade e a renúncia ao crédito tributário, para obrigatória observância pelo administrador.

A lei de permissão deve identificar os tributos e os respectivos benefícios, com seus limites (quando isso não resulte da simples caracterização legal)89: o enunciado legal deve delimitar os contornos da (in)disponibilidade –

permitindo reduções percentuais sobre o crédito ou de valores monetários então discriminados – e expressar os modos admissíveis e o marco temporal para materialização das concessões, cuja escolha pode ser atribuída ao administrador para avaliação em face das circunstâncias reais. [Dentre os meios de extinção de crédito tributário, a transação pode acomodar pagamento, conversão de depósito em renda, dação em pagamento, remissão parcial, compensação. Nesse quadro, um exemplo de positivação da delimitação legal das condições correspondente a este modelo para a transação é visto na Lei nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002, Arts. 13, 14 e 66, no qual são fixados: a) os limites da indisponibilidade do crédito tributário: renúncia parcial aos juros e remissão dos créditos oriundos de multas;

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b) o tipo de litígio a ser solucionado: ações judiciais propostas pelo sujeito passivo contra exigência de imposto ou contribuição instituído após 1º de janeiro de 1999 ou contra majoração, após aquela data, de tributo ou contribuição anteriormente instituído; c) a modalidade de extinção do crédito: pagamento em parcela única até o último dia útil de janeiro de 2003 com remissão parcial; c) concessões mútuas: remissão parcial dos créditos (pela Fazenda Pública) e a desistência das ações judiciais, com renúncia ao direito sobre as quais se fundam as referidas ações, que tenham por objeto os tributos em discussão (pelo contribuinte ou responsável); e) o acordo em cada caso decorre do requerimento do sujeito passivo que comprove, perante o sujeito ativo, o preenchimento das condições estabelecidas na lei.].

As razões extrafiscais do legislador para permitir uma derrogação parcial da regra comum pela especial estão enquadradas por princípios constitucionais estruturantes do sistema tributário, de modo que, nesse domínio, as condições para a transação não podem afrontar direitos ou garantias fundamentais, nem operacionalizar privilégios odiosos90.