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3.1 RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA

3.1.2 Conduta Culposa

Consoante exposto, a culpa lato sensu engloba a culpa stricto sensu e o dolo. As melhores doutrinas reconhecem a dificuldade de atribuição de uma definição única e global para culpa. Perante essa imprecisão conceitual, é salutar trazer à baila diferentes elaborações sobre o significado e abrangência deste termo:

Segundo Arnaldo Rizzardo, a culpa é o elemento anímico do ato ilícito:

Sabe-se que a culpa no sentido estrito equivale à ação ou omissão involuntária que causa danos, e que se dá por negligência ou imprudência, no que se expande em sentidos equivalentes, com descuido, imperícia, distração, indolência, desatenção e leviandade. No sentido lato, abrange o dolo, isto é a ação ou omissão voluntária, pretendida, procurada, almejada, que também traz danos.63

Consequentemente, a conduta humana eivada destas máculas é classificada como um ato ilícito, em razão de seu caráter de afronta a ordem jurídica, ou desrespeito ao que é imposto por lei.

No Tratado de Responsabilidade Civil, Rui Stoco apresenta o conceito de diversos autores consagrados, e sintetiza:

A culpa, em sentido amplo, tanto pode ser a expressão da consciência e vontade dirigidas a um fim perseguido e querido, embora ilícito, como o descumprimento de um dever de cuidado ou de diligência em razão de açodamento, de desídia ou de imperfeição técnica, ainda que sem intenção de prejudicar. Evidentemente que a ação intencional e voltada para uma finalidade que o Direito repudia traduz o dolo, enquanto a inobservância do dever de cuidado, como esclarecido, torna a conduta culposa, posto que na culpa o fim colimado pelo agente é descumprindo, assumindo relevância a forma imprópria com que atuou.64

A partir dessa perspectiva é possível inferir que o abandono material ou imaterial do genitor de forma dolosa ocorre quando o agente tem a intenção de causar dano ao ascendente abandonado.

A título elucidativo, destaca-se que, no julgamento da Apelação Cível nº 511.903- 4/7-00, em um caso em que o genitor abandonou o filho, considerou-se a existência de “dolo, inclusive eventual, ao assumir o resultado”65. Quanto ao tema, Flávio Tartuce observou que:

Apesar do conceito de dolo eventual ser tratado pelo Direito Civil como hipótese de um dolo puro, a ensejar a aplicação do princípio da reparação integral do dano, o caminho percorrido foi interessante, uma vez que são sempre salutares os diálogos interdisciplinares entra a própria ciência jurídica. 66

63

RIZZARDO, op. cit., 28 p., grifo nosso.

64 STOCO, op. cit., 157 p.

65 TJSP - Oitava Câmara de Direito Privado. Apelação com Revisão 511.903-4/7-00. Marília-SP, Data do

Julgamento: 12/03/2008, Relator: Desembargador Caetano Lagrasta.

66TARTUCE, Flávio. Abandono Afetivo (Indenização): Comentários a Julgado do Tribunal de Justiça de São

Paulo. Danos Morais por Abandono Moral. In: LAGRASTA NETO, Caetano; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito de Família. São Paulo: Atlas, 2011, 237 p.

Nesse compasso, é possível utilizar a mesma argumentação para as situações em que o filho abandona o pai, e considerar que o descendente abandonante incorre em dolo eventual, por assumir o risco de causar dano ao abandonado.

Destaca-se que o dolo eventual é previsto na segunda parte do artigo 18, I do CP/40. É verificado quando o agente “prevê o resultado como possível, e o admite como consequência de sua conduta, embora não queira propriamente atingi-lo”67.

Contudo, considerando que na seara da responsabilidade civil, o dolo eventual e o dolo direto geram a mesma consequência jurídica quando ocasionam algum dano (que é o dever jurídico de indenizar o lesado), não há necessidade de diferenciar o descumprimento do dever de ajuda e amparo advindo de conduta eventualmente dolosa ou diretamente dolosa.

Noutro giro, o descumprimento dos deveres filiais de forma culposa (culpa stricto sensu), sobrevém de uma conduta negligente ou imprudente do abandonante, que não almeja causar o dano, mas, mesmo assim, o causa.

A conduta culposa tem três elementos: “a) conduta voluntária com resultado involuntário; b) previsão ou previsibilidade; e c) falta de cuidado, cautela, diligência ou atenção”68.

O primeiro componente foi aprofundado na seção anterior (seção 3.1.1 Ato ilícito). Já a previsão ou previsibilidade do resultado, que é o dano, será examinada na seção seguinte (seção 3.1.3 Dano extrapatrimonial e patrimonial). Resta abordar o terceiro elemento, que é justamente, a negligência e a imprudência.

Arnaldo Rizzardo esclarece tais conceitos:

A negligência consiste na ausência de diligência e prevenção, do cuidado necessário às normas que regem a conduta humana. [...] Omitem-se as precauções exigidas pela salvaguarda do dever que o agente está obrigado; é o descuido do comportamento, por displicência, por ignorância inaceitável e impossível de justificar. A imprudência revela-se na precipitação de uma atitude, no comportamento inconsiderado, na insensatez e no desprezo das cautelas necessárias em certos momentos. Os atos praticados trazem consequências ilícitas previsíveis, embora não pretendidas.69

De outro modo, Sérgio Cavalieri Filho classifica a imprudência como a “falta de cautela ou cuidado por conduta comissiva” e a negligência como “a mesma falta de cuidado por conduta omissiva”. 70

67 STOCO, op. cit., 174 p.

68 CAVALIERI FILHO, op. cit., 35 p. 69 RIZZARDO, op. cit., 4 p., grifo nosso. 70 CAVALIERI FILHO, op. cit., 36 p.

Não obstante a pequena diferença conceitual transcrita, quanto à inexecução dos deveres filiais, a conduta culposa será constatada quando for apurada qualquer uma das atitudes descritas pelos autores mencionados.

Ressalta-se que a doutrina também contempla a imperícia como uma forma de exteriorização da conduta culposa. Porém, tendo em vista que ela se relaciona a uma habilidade técnica, não é compatível com o núcleo jurídico obrigacional de ajuda e amparo, pois esse não exige esta espécie de habilidade. Por conseguinte, não é aplicável aos deveres filiais.

Outrossim, Sérgio Cavalieri Filho, ao abordar o pressuposto da conduta culposa, cita o dever de cuidado e deslinda que:

O padrão que se toma para apreciar a conduta do agente não é só a do homem diligente, cuidadoso e zeloso, mas também do homem medianamente sensato, avisado razoável e capaz. Quem não tem capacidade física, intelectual ou técnica para exercer determinada atividade deve se abster da prática dos atos que escapam de todo o círculo de suas aptidões naturais, ou reforçar a diligência para suprir suas deficiências. [...] A inobservância desse dever de cuidado torna a conduta culposa – o que evidencia que a culpa é, na verdade uma conduta deficiente, quer decorrente de um deficiência da vontade, quer de inaptidões ou deficiências próprias ou naturais.71

Deveras, o filho que não é naturalmente zeloso e sensato quanto aos seus deveres filiais, isto é, aquele que não tem uma inclinação espontânea para cumprir tais deveres, terá que reforçar a diligência para suprir a deficiência de vontade, para que não seja configurada uma conduta culposa em seu agir.

Na prática, como o descendente não pode se abster da condição de filho, terá que agir com a “cautela necessária para que seu atuar não resulte lesão”72 aos bens jurídicos dos seus

pais.

Nesse sentido, o magistrado Flávio Calheiros do Nascimento afirma que:

Quando se diz que os pais devem cuidar dos filhos porque o cuidado é um interesse juridicamente tutelável, o que está a dizer aos pais, nas estrelinhas, é o seguinte: se não cuida dos seus filhos porque não os ama, então faça parecer que os ama e cuide deles, porque, do contrário, serão responsabilizados civilmente. É precisamente por conta disso que parece preferível deixar de chamar esse dano de afetivo para se passar a chamá-lo de dano por falta de cuidado adequado.73

Assim também deve ocorrer quanto ao dever filial de cuidado, diante da ausência de um impulso amoroso para cuidar dos ascendentes, o filho deve fazê-lo, pelo menos, porque não deseja ser responsabilizado civilmente por sua conduta.

71 CAVALIERI FILHO, op. cit., 33 p., grifo nosso. 72 CAVALIERI FILHO, op. cit., 32 p.

73 NASCIMENTO, Flávio Calheiros do. Responsabilidade civil pelo abandono afetivo. In: GUERRA, Alexandre

Dartanhan de Mello; BENACCHIO, Marcelo (Coords.). Responsabilidade Civil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2015, 404 p.

É imprescindível observar que o dever de cuidado apresentado por Cavalieri é amplo, e se refere a um agir cauteloso, para que toda e qualquer conduta não lesione algum bem jurídico alheio. Noutro giro, o dever de cuidado intrínseco aos deveres filiais (explanado na seção 2.5) é específico do direito das famílias, e se refere ao zelo que deve ser dispensado diretamente aos membros familiares.

No ordenamento jurídico brasileiro, aquele que cometeu o ato ilícito, doloso ou culposo (culpa stricto sensu), ficará igualmente obrigado a reparar o dano causado. A indenização não será menor se o filho abandonante não tiver agido com dolo, mas somente com culpa.

Perante todo o exposto, conclui-se que, o abandonante não precisa ter agido de forma deliberada para causar o dano ao genitor, vale dizer, não precisa haver dolo. Basta que seja verificada uma conduta culposa, negligente ou imprudente, em relação ao cumprimento do núcleo jurídico obrigacional de ajuda e amparo.