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3.2 A interface sintaxe-enunciação em sentenças proverbiais

3.2.1 A configuração do lugar de sujeito

Sendo as expressões Quem e Aquele que, como já demonstramos, apenas passíveis de ocupar o lugar de sujeito gramatical, investiremos a nossa análise na possibilidade de revelar características que nos permitam delinear traços da identidade enunciativa desse lugar sintático. Tomemos (17) como exemplo.

(17) Quem curte reggae curte a paz!24

Segundo Pêcheux e Fuchs (1975)25 revisados por Possenti (2001:194), “toda atividade de linguagem necessita destes pontos de ancoragem [eu-aqui-agora]” e, na medida em que é a língua que oferece as possibilidades estruturais e as formas históricas do sentido (DIAS, 2004), reconhecemos na ocupação do lugar de sujeito por “Quem” uma estreita relação com a temporalidade e com o modo de enunciação em que se configura a sentença (17). Nessa compreensão, estamos aplicando um postulado fundamental na sintaxe de bases enunciativa, a saber, que a exterioridade enunciativa seria constitutiva do fato gramatical.

Travaglia (1993:52) afirma que “o presente do indicativo [...] pode exprimir tempo presente, futuro ou onitemporalidade”. Podemos admitir, porém, que a onitemporalidade da sentença em (17), além de estar marcada no tempo verbal, apresenta-se impressa também no pronome indefinido “Quem”. No que diz respeito ao modo de enunciação – que estabelece a abrangência do escopo de referência da sentença – o elemento ocupante do lugar de sujeito parece ser determinante para a inscrição dessa sentença em um modo de enunciação mais generalizador. Apontamos essa relação entre a ocupação do lugar de sujeito e a configuração dos elementos temporalidade e modo de enunciação da sentença (17) uma vez que tanto a

24Nome de uma comunidade virtual (http://04029a396ed8811306.comunidade.uolk.uol.com.br/) acessada em 02 de dezembro de 2007.

25 Cf. PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. (1975) A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. In: GADET, F. & HAK, T. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993, p.163-252.

temporalidade quanto o modo de enunciação da referida sentença seriam diferentes se o lugar de sujeito tivesse sido ocupado por outro elemento, como “Pedro”. Teríamos, nesse caso, “Pedro curte reggae, ele curte a paz”,26 sentença cuja temporalidade seria presente, descrevendo um modo de enunciação mais especificador.

A fim de sustentarmos a concepção de um modo de enunciação proverbial – cuja produtividade atestamos no capítulo anterior (vide página 35) com a apresentação de slogans publicitários construídos sobre a estrutura Quem x y ou Aquele que x y – e a hipótese de que o lugar de sujeito gramatical guarda um compromisso com o enquadramento enunciativo da sentença, consideremos a seguir alguns traços semântico-enunciativos que se imprimiriam em provérbios cujo sujeito gramatical é materializado por Quem ou Aquele que. Ou seja, consideremos traços que nos permitiriam distinguir as sentenças que estariam configuradas em um modo de enunciação proverbial.

Kleiber (2000:58), ao realizar um trabalho em que se propunha a explicitar o sentido próprio dos provérbios, reconhece-os enquanto denominações-frase de teor genérico.27 Vislumbremos essa característica denominativa na sentença abaixo.

(18) Quem/Aquele que semeia vento colhe tempestade.

A sentença em (18) apresenta uma situação em sua completude, apontando o seu movimento inicial, “semear vento”, e o seu desfecho, “colher tempestade”, uma conseqüência do movimento inicial. Contudo, essa sentença não apresenta uma situação particular, antes, ela descreve uma categoria de situação na qual várias ocorrências particulares podem ser pertinentes. Assim como a palavra cadeira serve para designar vários objetos específicos que pertençam à categoria das “cadeiras”, a sentença “Quem semeia vento colhe tempestade” designa diversas situações específicas de naturezas compatíveis, que pertençam a essa categoria de situação – iniciada por uma ação e finalizada pelo efeito conseqüente dessa ação. Nesse sentido, portanto, podemos dizer que as sentenças proverbiais configuram um índice referencial. Em contraste com a sentença “Pedro semeia e colhe os grãos de feijão”, que produz uma referência específica, a sentença em (18) produz um perfil de referência em que diversos eventos específicos podem se enquadrar.

O elemento “Quem” parece exercer um papel definitivo para a configuração do provérbio como índice de referência. Se novamente substituíssemos esse elemento por um

26 Em seção posterior, faremos uma discussão que contempla esta modificação de uma estrutura de período composto por subordinação, Quem/Aquele que x y, para uma estrutura de período composto por coordenação ao substituirmos os elementos “Quem” ou “Aquele que” por elementos que constituem uma referência pontual. 27 Parafraseamos aqui um tópico de resumo que Kleiber coloca na seção conclusiva de seu texto.

nome próprio, “José”, teríamos “José semeia vento e colhe tempestade”, uma sentença que descreve uma situação relativa a José e, em princípio, somente a ele. Ainda que o predicado “semeia vento e colhe tempestade” não tenha perdido o seu caráter de índice referencial, ele já está aplicado a ações realizadas e conseqüências sofridas por um referente específico, designado por “José”. Ou seja, a sentença “José semeia vento e colheu tempestade”, como um todo, não descreve um índice de referência constituindo um perfil, como o faz a sentença “Quem semeia vento colhe tempestade”. Outros provérbios, que não apresentam as expressões Quem e Aquele que no lugar de sujeito, como “Águas passadas não movem moinhos”, também constituem índices referenciais, pois estabelecem um perfil a que diversos eventos podem se ajustar. Contudo, devemos admitir que as expressões Quem ou Aquele que potencializam a indicialidade dos provérbios, pois são molduras que não apresentam o investimento restritivo representado pelo parâmetro “Águas passadas”.

As sentenças proverbiais constituírem índices de referência, delimitados por um perfil, nada mais é do que um aspecto componente da natureza genérica dessas sentenças. E a configuração dessa genericidade também está marcada na ocupação do lugar de sujeito gramatical. Comparemos as sentenças abaixo.

(18) Quem/Aquele que semeia vento colhe tempestade. (19) O governante que semeia vento colhe tempestade. (20) José semeia vento e colhe tempestade.

Observando os elementos ocupantes do lugar de sujeito, que estão em destaque nas sentenças (18), (19) e (20), podemos admitir que essas sentenças estão em uma escala decrescente no que diz respeito à abrangência referencial. A sentença (18), tendo na constituição do elemento ocupante do lugar de sujeito as expressões “Quem” ou “Aquele que”, configura um amplo escopo de referência, pois designa qualquer um que se enquadre no perfil apresentado no predicado. Já a sentença (19), na medida em que “O governante” delimita um recorte de significação, constitui um escopo de referência menos abrangente, não servindo, portanto, para designar qualquer um, mas apenas os membros de uma classe. Por fim, a sentença (20) descreve um escopo de referência ainda mais restrito, já que o elemento ocupante do lugar de sujeito, “José”, designa um referente pontual.

Assim, podemos atestar que a estrutura proverbial perde a sua natureza na medida em que o elemento ocupante do lugar de sujeito e, por conseguinte, a sentença como um todo, descreve um escopo de referência mais restrito. A sentença (18), sendo ocupada pelas

expressões “Quem” ou “Aquele que”, consiste em um provérbio. A sentença (19), por sua vez, ainda possui um caráter proverbial, mesmo que ele seja atenuado devido ao fato de essa sentença se construir sobre uma tipificação mais delimitada – “O governante que semeia vento” – e não propriamente sobre um parâmetro, como “Águas passadas” no provérbio “Águas passadas não movem moinhos”. Em contrapartida, a sentença (20) não pode, de forma alguma, ser considerada um provérbio.