• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3: AS FAMÍLIAS DAS CRIANÇAS DO PROGRAMA ESCOLA

3.2 Configurações de famílias no contexto contemporâneo

É difícil identificar um único fator que levou às novas configurações das famílias na atualidade: casal heterossexual com ou sem filhos/as (filhos/as que podem ser biológicos do casal, filho/a de um dos cônjuges de outros relacionamentos, adotivos ou gerados por uma técnica de inseminação artificial, com doador do material genético, barriga de aluguel, etc.), casal homossexual com ou sem filhos (filhos/as de um dos cônjuges de outros relacionamentos, adotivos, gerados por uma técnica de inseminação artificial com doador do material genético, barriga de aluguel etc.), monoparental com filhos, casal com ou sem filhos e parentes e monoparental com filhos e com parentes. Ainda se questiona a possibilidade de considerar família o/a solteiro/a adulto/a que vive sozinho/a.

Consideramos possível dizer que a diversidade de composições e organizações das famílias se deve, entre outros motivos, às mudanças sociais, com destaque para as relações de gênero, intensificação da presença de mulheres no mercado de trabalho, autonomia para o controle da natalidade, envelhecimento da população, entre outros. A intervenção do Estado nas relações familiares com a legalização do divórcio e a criação de leis em prol da criança e da mulher também são elementos a serem considerados ao falarmos das configurações de famílias. (BERQUÓ, 1999; BRUSCHINI, 1998; KAMERS, 2006.

Os estudos na área da psicologia trazem elementos que colaboram para a reflexão da configuração da família na contemporaneidade. Kamers (2006) reflete a respeito das novas configurações das funções parentais. A autora aponta que, atrelada à ideia de família como uma instituição pertencente ao mundo privado e da importância destinada à boa criação dos filhos, nasce o papel da mãe ligado à figura da mulher. Mas para a mãe cumprir seu papel é necessária a figura do pai, com a função de manter essa família. Assim, temos as funções parentais ligadas diretamente ao ser homem e ao ser mulher. Segundo Kamers (2006), a problematização dessa condição acontece quando, por exemplo, a mulher sai do universo doméstico e se insere no mercado de trabalho e o homem fica em casa cuidando dos filhos; dessa forma homens e mulheres realizam diferentes tarefas sem separação do que se espera ser do universo masculino e do feminino. Para a autora, na atualidade é inadequado vincular funções parentais a “papeis” a serem desempenhados por homens e mulheres.

A nosso ver, essa nostalgia é o fundamento de todos os “psicologismos” de plantão que visam justificar as atuais problemáticas da educação, familiar ou escolar, como relativas a uma suposta inadequação da família em relação às “necessidades” da criança. Portanto, não se trata de pensar uma função do adulto junto à criança – o que pressupõe que haveria uma “natureza” infantil que deveria ser posta em funcionamento –, mas de pensar as funções parentais como relativas à estrutura; portanto, uma função simbólica como dimensão estruturante. A questão consiste em saber quais as configurações que essas funções podem assumir na atualidade. (KAMERS, 2006, p.115).

Ao falar de estruturas familiares na contemporaneidade, Kamers (2006) recorre aos estudos de Lacan (1985 apud KAMERS, 2006) que “compreende a família como uma instituição social de estrutura complexa, que não pode ser reduzida nem a um fato biológico e nem a um elemento teórico da sociedade, mas uma instituição social

privilegiada na transmissão da cultura.” (KAMERS, 2006, p. 115). A família como uma estrutura subjetivamente organizada não é fácil de ser conceituada, uma vez que devemos analisar os elementos históricos, culturais, sociais que contextualizam a composição familiar.

Dessa forma, para a autora:

A estrutura familiar não pode ser confundida com o modelo da família conjugal e nuclear, já que esta é uma construção histórica e social. Sobre esse aspecto, constatamos que, se por um lado há um inflacionamento imaginário em torno do que seriam as “funções parentais”, por outro, pensamos que atualmente assistimos a uma espécie de relativização do lugar do outro tutelar junto à criança. (KAMERS, 2006, p. 116).

Os estudos sociológicos também buscam uma forma de conceitualizar a família na atualidade. Singly (2007) realizou seus estudos buscando compreender as modificações no interior da família moderna e sua influência na formação do indivíduo. O autor também questiona alguns trabalhos antropológicos ou de demografia histórica que conceituam a família moderna como família nuclear:

Afirmar que a família nuclear – quer dizer, uma família composta de um homem, uma mulher e seus filhos e que vivem na mesma moradia – sempre existiu não significa, entretanto, dizer que esta sempre preenche funções idênticas, ou que a regulação das relações entre sexos e gerações seja a mesma (SINGLY, 2007, p.31).

O autor retoma os estudos de Durkheim (1921 apud SINGLY, 2007) para começar a “pintar um retrato” do que seria a família moderna. Para Durkheim a família seria relacional: “Nós só estamos ligados à nossa família porque somos ligados à pessoa do nosso pai e da nossa mãe, da nossa mulher, dos nossos filhos” (DURKHEIM, 1921, apud SINGLY, 2007, p. 32.). Dessa forma, a configuração da família dependerá, principalmente, das relações entre as pessoas, do sentimento de pertencer àquela família, aspecto esse definido por Singly como “espírito de família”.

Mas se por um lado a família apresentada por Émile Durkheim estabelece suas relações no interior da vida privada, por outro lado o Estado se fará presente por meio de regras e leis impostas às famílias. “Por exemplo, foram criadas no século XIX, regras jurídicas para limitar o direito da punição paternal. O pai não é mais o chefe incontestável da família, a família não é mais ‘patriarcal’.” (SINGLY, 2007, p.33). Segundo o autor, o interesse do Estado pela criança, preocupações sanitárias e

educacionais, serviram e servem para legitimar o olhar regulador sobre as condutas dos pais.

A configuração da família na atualidade não segue um modelo único, ela se organiza e reorganiza de várias formas, em diferentes classes sociais. Conforme Singly (2007), o sentimento de pertencimento à família é o elemento central para se caracterizar/delimitar o que é a família contemporânea.

A família moderna se define como a primeira instituição que servirá de referencial para a construção da identidade da criança e que proporcionará a ela oportunidades de desenvolvimento que poderão possivelmente ampliar suas oportunidades de sucesso. Mas suas funções junto às crianças serão vigiadas e reguladas pela presença, muitas vezes imponente, do Estado. O Estado se fará presente no interior das famílias através de diversas instituições: vigilância sanitária, defensoria pública, educação púbica. Talvez a instituição que mais regule a família seja a Escola.

Para Talcott Parsons (1955, apud SINGLY, 2007), as instituições tiram da família parte de suas responsabilidades com as crianças, uma vez que diminuem o tempo de convivência entre estes. Por exemplo, as horas da criança na escola são maiores que o tempo que os pais têm de convivência com seus filhos. (SINGLY, 2007 p. 43). Como vimos anteriormente, atualmente é necessário que os filhos fiquem mais tempo sob os cuidados de outra instituição para que os pais, com destaque para as mães, possam trabalhar fora de casa. Além de resolver as questões cotidianas, a organização do tempo de seus/suas filhos/as pode fazer parte das estratégias educativas da família.

A dificuldade de se pesquisar a família contemporânea, segundo Singly (2007), está na escolha de métodos que permitam mensurar o funcionamento de uma família levando em conta que esta instituição se dá na união de pessoas, nas relações entre elas e delas com o mundo, sendo que essas relações devem ser contextualizadas nos aspectos histórico, cultural e social.