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Antes de partir para a perspectiva teórica central desta dissertação, é necessário tentar encaixá-la numa agenda de pesquisa da área, com propósitos definidos para contribuir com os avanços da literatura da sociologia do crime em relação aos estudos sobre homicídios. Segundo Smith (apud RATTON, 2011), a despeito dos avanços alcançados em diversas áreas da sociologia do crime, há uma lacuna central no que se refere à compreensão dos homicídios como um fenômeno social. Sendo assim, uma agenda de pesquisa sobre o assunto poderia ser resumida às seguintes perguntas: a) o que não se sabe sobre homicídio que com pesquisas apropriadas poderia ser apreendido? b) o que não se sabe sobre homicídios que, caso pudesse ser apreendido, poderia sofisticar consideravelmente nossa compreensão sobre a criminalidade violenta?

Na tentativa de contribuir para algumas destas lacunas, e apresentadas as teorias acerca da criminalidade violenta no Brasil, dentro de suas limitações, a perspectiva teórica que orienta esta pesquisa, elege como unidade de análise a configuração do homicídio, investigando a estrutura e o processo subjacentes a este evento. É uma

38 perspectiva diferenciada de análise, holística, pois vê a situação do homicídio como um todo, com uma unidade de análise situacional e configuracional. Reforça-se, como apresentado no início da dissertação, que configuração do homicídio se refere à convergência entre o agressor e a vítima em um contexto sócio-espacialmente estruturado, em que a agressão se realiza, bem como a situação em que o evento transcorre (Miethe & Regoeczi, 2004). Trata-se de uma análise da combinação entre ofensor, vítima e situação, através da articulação e integração desses elementos. Busca- se, desta maneira, superar abordagens centradas exclusivamente no agressor ou na vítima, investigando o que distinguiria qualitativamente as situações de homicídio que envolvem jovens na cidade do Recife. Pode se traduzir tal perspectiva, também, em uma visão dos eventos criminosos letais intencionais como fenômenos sociais complexos, que envolvem interação entre lugar, pessoa, momento e ação. Assinaturas únicas se referem às situações particulares de cada homicídio, em que determinados fatores (características do agressor, da vítima e da situação) culminaram em um homicídio.

Desta maneira, fica claro que o objetivo dos autores, que também é um desta dissertação, é o de identificar as situações de homicídio prevalentes e as diferentes combinações de atributos (variáveis) que formam distintas e específicas situações. Em outras palavras, por um lado, observa-se os padrões das situações, as configurações de homicídio mais comuns; e por outro, as assinaturas únicas dos homicídios. A pesquisa por eles realizada também envolve um estudo da mudança e estabilidade na natureza dessas estruturas particulares ao longo do tempo. No caso, tal estudo com análise através do tempo não será possível, pois esta pesquisa se refere apenas aos homicídios que ocorreram no ano de 2009.

Miethe & Regoeczi (2004), para chegar nessa perspectiva inovadora em relação aos homicídios, reconheceram alguns fatores que caracterizam o homicídio. Inicialmente, para eles, a situação do homicídio é um aspecto que não foi estudado sistematicamente e adequadamente. Então, reconhecem a existência de qualidades de homicídios que os diferenciam, portanto, qualitativamente. Parte-se também do pressuposto que crimes violentos são distintos de outros crimes, como por exemplo, crimes de propriedade, porque consistem obrigatoriamente em interação de no mínimo duas partes, dois atores sociais, que se dão por situações dinâmicas de troca de palavras e de ações. Por isso, atos violentos são vistos como transações e são explicáveis ou

39 compreendidos por uma abordagem situacional, imerso em uma sociologia do interacionismo.

Tais teorias podem contribuir para a análise situacional do crime do homicídio inicialmente porque segundo seus pressupostos, permitem analisar um evento prestando atenção aos significados da ação para os atores sociais envolvidos. Logo, tal abordagem teórica permite que analise o crime focando atenção no significado da situação para os atores, buscando relação entre a motivação do ofensor e a oportunidade para cometer o ato em tal situação; e considerando crime e desvio como resultados precários de uma situação.

A justificativa para tal abordagem interacionista dos homicídios é que a confiança e a aposta em um tratamento separado destes elementos essenciais que formam um homicídio produziu um corpo fragmentado de literatura sobre o assunto que falha em desenvolver uma compreensão adequada do evento do homicídio como um todo. Tais estudos geralmente focavam nos diversos efeitos de variáveis individualmente, ao invés de nos efeitos interativos da combinação destas variáveis nas situações. Ou seja, costumavam ignorar a importância do contexto da situação e consequentemente não capturam a complexidade do evento do homicídio. Só como os autores propõem é que se pode analisar de que maneira tais elementos que compõem um homicídio, interativamente, combinam/resultam em uma ação violenta, a partir do reconhecimento dessa culminação em configurações prevalentes de homicídios e assinaturas únicas destes.

Essa abordagem permitiu que os autores fizessem uma abordagem integrada para estudar o homicídio, ainda que se focando nos diferentes tipos existentes de homicídio. Tomaram uma perspectiva de que o contexto situacional do homicídio pode ser examinado por dois aspectos distintos, mas interligados: estruturas e processos. Para tal, realizaram primeiramente um método comparativo (o QCA, Qualitative Comparative Analysis, a ser explicado a seguir) para identificar os contextos estruturais comuns e os únicos, dos homicídios ocorridos nos Estados Unidos (onde se deu o estudo) nas últimas três décadas, o que faz do estudo também uma análise temporal e comparativa. Para dar conta dos elementos processuais dos homicídios, realizaram uma análise qualitativa das narrativas de homicídios em cidades americanas.

Transportando tal metodologia para esta dissertação, as estruturas dos homicídios (que envolvem vítima, agressor e contexto situacional) serão analisadas a

40 partir do banco de dados construído com os dados obtidos em inquéritos policiais de homicídios; e os elementos processuais serão analisados pelo discurso dos homicidas, conteúdo analisado a partir das entrevistas realizadas com estes. Desta maneira, esta dissertação terá limitações ao não realizar um estudo temporal, que permita analisar as mudanças qualitativas na natureza da tendência dos homicídios, assim como os autores propõem, pois tratará apenas dos homicídios ocorridos na cidade do Recife no ano de 2009.

Para a configuração do homicídio, que é a unidade de análise, definida pela combinação entre ofensor, vítima e contexto situacional, os autores consideram essenciais: gênero, raça e idade, para os atores envolvidos; motivo e/ou circunstância na qual o homicídio ocorreu, a relação entre vítima e ofensor, o número de ofensores, a arma utilizada e o contexto físico do crime, para a situação. Combinados, revelam a natureza das dinâmicas interpessoais que resultaram em um homicídio. Tais variáveis/atributos, e ainda mais, estão sendo utilizados nesta dissertação, pois foram objetivamente coletados nos inquéritos policiais, o que será demonstrado em capítulo posterior.

O QCA, método utilizado por Miethe & Regoeczi, que será a inspiração para a lógica geral da análise das variáveis obtidas no trabalho da dissertação, reconhece que determinados resultados (do evento criminoso) são produzidos por variáveis atuando juntos, ou seja, a partir da interação destes – e este será o princípio teórico que orientará a análise dos dados. O QCA permite uma análise das configurações dos homicídios, através da combinação dos atributos que geram o homicídio. Variação no QCA se refere à diversidade de condições únicas, medidas caso por caso pelas diferentes combinações existentes. Dessa maneira, o QCA, ao reconhecer que um homicídio ocorre por variáveis atuando juntas, está afirmando que qualquer variável em específico pode produzir efeito diferente em diferentes situações, ou seja, que seu efeito varia em cada caso, por causa das outras variáveis que devem e são levadas em consideração. Tanto o QCA não quer individualizar as variáveis, que não há variável dependente e variável independente, ao contrário de demais estudos quantitativos que são orientados por uma espécie de hierarquia das variáveis.

O QCA, desta maneira, se diferencia das abordagens tradicionais que se baseiam na premissa de que eventos podem ser descritos por uma explicação simples ao contrário de uma explicação via vários caminhos que dão no mesmo resultado. O QCA

41 demonstra que tais eventos são, na verdade, multicausais e multidimensionais, com vários fatores e caminhos, que integrados, culminam em um resultado específico em cada caso. Ou seja, não simplifica o evento criminoso em questão, e sim, preserva a complexidade de tais situações. Segundo os autores, basicamente, tal método leva em consideração dois aspectos sociais de tal fenômeno social: suas causas são uma conjuntura típica, que devem culminar juntas em determinado tempo e espaço pra gerar o fenômeno; e que o mesmo resultado pode ser gerado por diversas combinações de causas (no caso, variáveis e seus atributos). São estes os princípios básicos do QCA que serão utilizados na metodologia de análise dos dados obtidos na dissertação.

Realizadas as caracterizações dos objetos pesquisados e uma revisão bibliográfica breve acerca da literatura sobre criminalidade violenta no país fica claro porque esta literatura não é suficiente para os propósitos desta dissertação. Desta maneira, a apresentação do arcabouço teórico central desta dissertação deixa claro que a perspectiva desta dissertação toma o homicídio como um fenômeno social, resultante de uma configuração que se forma pelo encontro e tríade entre os elementos agressor, vítima e contexto situacional. Cada elemento com seus próprios atributos, que podem ser os mais variados, reforçando a multidimensionalidade do homicídio, e mais especificamente do homicídio jovem, e reconhecendo que tal fenômeno é também multicausal. Desta maneira, pode-se avançar para a análise dos dados obtidos, nos capítulos seguintes.

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2º CAPÍTULO: CONFIGURAÇÕES DE HOMICÍDIOS SEGUNDO DADOS DOS INQUÉRITOS POLICIAIS

Relembrando que esta dissertação busca utilizar um modelo teórico que tem como premissa que para compreender o fenômeno do homicídio é necessário o reconhecimento de que este é formado pela tríade homicida, vítima e contexto situacional do homicídio, este capítulo se dedica a caracterizar os três objetos desta tríade a partir dos dados coletados nos inquéritos policiais, concentrados no Departamento de Homicídios e Proteção a Pessoa (DHPP)7, de homicídios cometidos e sofridos por jovens no Recife em 2009. Primeiramente, será explicado como foi definido o universo de inquéritos a ter uma amostra pesquisada; no item seguinte, o percurso da pesquisa até o trabalho de campo, e como este foi realizado; e também a definição do universo da pesquisa desta dissertação, que é mais restrito do que a pesquisa do NEPS, para a qual a pesquisa de campo foi inicialmente realizada. Finalmente, a análise dos dados obtidos em relação ao contexto situacional do homicídio, aos homicidas e às vítimas – dividida por categorias e atributos que compõem cada elemento da tríade da configuração do homicídio.

Após a coleta de dados no âmbito da pesquisa do NEPS, se deu a organização destes dados em uma matriz do SPSS (que distribuiu todas as variáveis em relação aos homicidas, às vítimas e aos contextos situacionais) e a geração de tabelas com tais dados. Desta maneira, este capítulo realiza a devida descrição destas tabelas e destes dados; bem como uma análise destes achados, que permitirão identificar as características sociais de agressores, vítimas e contextos situacionais de homicídio que envolvem jovens (primeiro objetivo específico desta dissertação) e identificar as configurações prevalentes de homicídios sofridos praticados e sofridos por jovens, ou seja, os padrões de interação envolvendo jovens que produzem a morte violenta, assim

7 O DHPP foi criado em 2006, integrando-se à estrutura da Polícia Civil de Pernambuco. Atualmente é formado por uma delegacia de proteção à pessoa, seis delegacias de polícia de homicídios, uma delegacia de polícia que atua em regime de plantão e um grupo de operações táticas (GOT). Às delegacias de homicídio compete proceder à apuração e à investigação de todos os homicídios dolosos de autoria não imediatamente identificada ocorridos nas áreas de segurança definidas pela SDS, que abrange atualmente toda a cidade do Recife, cabendo o mesmo, em casos especiais, à delegacia de proteção à pessoa e ao GOT, que atua em casos de homicídios múltiplos e chacinas.

43 como as assinaturas únicas destes homicídios (segundo objetivo específico desta dissertação); objetivos estes que serão complementados pelas falas dos homicidas, analisadas no capítulo seguinte.

Antes de partir para a descrição e posterior análise dos dados encontrados, é necessário, entretanto, relembrar o referencial teórico a ser utilizado para análise dos dados e fazer um breve relato do trabalho de campo de coleta dos dados.

A análise dos dados quantitativos coletados em inquéritos policiais será inspirada no QCA, método já caracterizado no quarto item do primeiro capítulo (1.4

Configurações de Homicídios). Miethe & Regoeczi (2004) aplicam o método QCA

sobre o grupo social dos jovens, em relação aos homicídios sofridos por estes nos Estados Unidos, usando dados de 1976 a 1998. As conclusões tiradas referem-se ao fato de que homicídios praticados por jovens podem ser especificamente diferentes dos cometidos por adultos, envolvendo geralmente homens ofensores, utilizando armas de fogo, com vários ofensores envolvidos em cada caso e com condições sócio-econômicas urbanas. Os autores concluíram que os processos por trás desse fenômeno envolvem a competitividade masculina, honra, respeito e o desejo de vingança ou de resolver pessoalmente ofensas cometidas contra si, contra membros de suas gangues, contra familiares ou contra amigos. Isso acontece pela constatação feita de que os crimes acontecem geralmente entre conhecidos, da mesma vizinhança, em comunidades com altos índices de violência.

A seguir, a descrição dos passos para a coleta e organização dos dados encontrados nos inquéritos policiais, para finalmente se partir para a análise destes, dentro dos objetivos da dissertação.

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