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Acredito ter deixado claro que as disputas que ocorrem em torno do discurso e das ações do desenvolvimento no litoral sul do Espírito Santo evidenciam uma forte relação entre o social e o natural, conferindo agência a humanos e não humanos, podendo, desta maneira, serem interpretadas como conflitos ambientais, nos termos propostos por Fleury (2013).

A autora conclui que apenas é possível falar em conflito ambiental se a separação entre as câmaras sociedade e natureza, característica da moderna epistemologia, conforme Latour (1994), for colocada em causa. Isto porque, epistemologicamente, o termo conflito diz respeito à câmara do social, os conflitos são sociais, e o termo ambiental diz respeito à natureza. Então, apenas se se rompe com a primazia do social sobre o natural, é possível a junção dos dois termos

constitutivos da categoria “conflitos ambientais”.

Fleury (2013) propõe, então, o conceito de conflito ambiental interpretando-o como categoria híbrida, com o objetivo de reforçar sua carga cosmopolítica. “Os conflitos são parte crucial do encontro de perspectivas e estão no centro das relações sociais, isto é, o mundo é um espaço de conflitos que depende de agenciamentos e do encontro entre pontos de vista. (FLEURY, 2013, p. 298).

Não foi sem razão que deixei a noção de cosmopolítica para ser tratada em um item à parte. Se proponho interpretar as disputas em torno dos investimentos portuários no litoral sul do Espírito Santo como conflitos ambientais, é porque em minhas incursões a campo percebi, não apenas a ocorrência de agenciamentos de não humanos, ou outros que humanos, no que tange à questão do desenvolvimento, mas também que estes agenciamentos promovem encontros e desencontros de pontos de vistas, principalmente em relação à questão da “luta por justiça” que motivou a realização desta pesquisa.

Proponho, então, iniciar o debate pelas proposições de Latour (2007) acerca de sua concepção de “cosmos” e de “cosmopolítica”. No referido artigo o autor dialoga com Ulrich Beck apontando limites na abordagem deste último, principalmente no que tange às proposições de paz. Segundo Latour (2007, p. 69), a cosmopolítica de Beck “não comporta nenhum cosmos além da política”. Para propor a paz a questão do “outro” torna-se fundamental para que não se incorra em etnocentrismo. “É um risco, e sem dúvida etnocentrismo, assumir que os inimigos se entendem sobre seus princípios fundamentais”. (LATOUR, 2007, p. 72 , tradução nossa). A crítica do autor recai sobre o que ele denomina “mononaturalismo”, ou seja, na visão de “cosmos” como “único”, como uma cidade-mundo da qual todos queremos ser cidadãos. Desta maneira, Latour (2007) propõe a distinção entre “cosmopolitismo” e “cosmopolítica”.

O “cosmopolita” é o cidadão do mundo e não apenas de um Estado em particular. Na visão cosmopolita o mundo significa “a cultura”, uma visão global que se estende além do Estado Nacional. A paz, segundo essa visão (mononaturalista), é possível porque considera que as disputas ocorrem apenas em torno das qualidades humanas e as visões diferentes de mundo. Se as visões de mundo se conciliam, então a paz ocorre automaticamente. Entretanto, e essa é a crítica de Latour (2007), esta visão de “cosmos” e de “cosmopolítica” é reduzida porque ela considera apenas humanos no processo de negociação pela paz. Para este autor, ao contrário, o “cosmos” é composto também pelo conjunto de entidades não humanas que participam das ações humanas. Neste sentido, o “cosmos” é “pluriverso” e evoca multiplicidades. Latour afirma que, “[...] por guerra eu entendo um conflito no qual não pode haver uma arbitragem reconhecida, um conflito onde o que está em jogo é precisamente constituído pelo comum de

um mundo comum a ser construído”. (LATOUR, 2007, p. 74, tradução nossa

Não existe, portanto, um mundo comum a priori. Ele não é algo dado. Ele deve ser construído e este processo de construção deve ser interpretado como um processo que não abrange apenas as agências humanas. Entretanto, Latour (2007) faz uma ressalva quanto ao construtivismo que, segundo ele, deve considerar que as realidades às quais os seres humanos estão atados dependem de uma série de mediações compostas de elementos heterogêneos, humanos e não-humanos, construídos por sua própria história. Deve-se levar em conta também que as realidades dependem de diversas interpretações, são falíveis e devem ser atualizadas constantemente.

Se Latour (2007) tece críticas à visão de “cosmopolitismo”, como “universo” regido por leis comuns, por um princípio de ordem que rege a cidade-mundo, assim como apregoavam os estóicos, Stengers (2007) propõe abandonar a perspectiva kantiana do “bem comum”. A principal diferença que marca o pensamento desta autora em relação às proposições kantianas se encontra na noção de “cosmos”. Baseada na crença do “bem comum”, a noção kantiana de “cosmos” relaciona-se à tentativa de construir um único modo bom para se viver constituindo um “Estado cosmopolítico universal”, onde a democracia permitiria a unificação política total do espaço humano. Todas as controvérsias, ameaças, ou espaços de hesitação se tornam “questões planetárias”. A ideia de “bem comum”, de acordo com Stengers (2007) universaliza e despolitiza. Segundo ela, o “cosmos” não designa mundos ou tradições particulares, nem tampouco pode ser designado por um projeto que visa englobar tudo:

O cosmos que figura no termo cosmopolítica designa o incomum que constitui esses mundos múltiplos, divergentes, de articulações que poderiam se tornar possíveis, contra a tentação de uma paz ecumênica onde um poder transcendente demandaria àquele que diverge de se reconhecer como uma única expressão particular que constitui o ponto de convergência de todos. (STENGERS, 2007, p. 49 , tradução nossa).

A autora retomará um personagem conceitual de Deleuze, o “idiota”, para demonstrar a concepção de “cosmos” que, de seu ponto de vista está relacionada aos espaços de hesitação, aos interstícios. O idiota, no sentido grego, é aquele que não fala o mesmo idioma e que, portanto, está excluído da civilização. Ele possui uma linguagem própria e, por isso, a comunicação com ele torna-se difícil. Para Deleuze, entretanto, o “idiota” é aquele ser mais lento que os outros, que resiste à maneira como a situação se lhe apresenta porque para ele parece haver “qualquer coisa mais importante”. “O idiota não responde e não discute. O “idiota” se faz presente onde, como disse Whitehead, se faz um interstício”. (STENGERS, 2007, p. 47

– tradução livre). Assim, a palavra cosmopolítica está relacionada aos momentos de inquietude, de apreensão, onde é preciso desacelerar face à qualquer possibilidade de “boa vontade”.

Feitas tais considerações, a autora afirma que a palavra cosmos não se refere à criação de um “bom mundo comum”, ou um único mundo bom para todos, ao contrário, se refere à criação de um espaço de hesitação sobre o que se considera bom.

O “cosmos” é, portanto, o desconhecido que constitui estes mundos múltiplos, divergentes e as articulações que poderão ocorrer. Não se trata de uma paz definitiva e ecumênica, que a todos engloba, mas de reconhecer aquele que diverge como uma expressão particular que se constituirá em um ponto de convergência de todos.

Stengers (2007) chama a atenção para o cuidado que se deve ter em relação às vontades individuais. Apesar da manifestação do “idiota”, a dimensão cosmopolítica requer que as questões se coloquem de maneira coletiva:

Ao termo “cosmopolítica” corresponde aquilo que não é nem uma atividade, nem uma negociação, nem uma prática, mas o modo pelo qual se atualiza a copresença problemática de práticas: a experiência, sempre no presente, daquele em que atravessa o sonho do outro. Entrecaptura não simétrica que não garante nada, não autoriza a nada e não pode ser estabilizada por nenhuma restrição, mas por onde aquele que atravessa e aquele que é atravessado se submetem um ao outro ao exame que constitui a efração desse terceiro termo “assustador”, não apropriável por nenhuma medida: “Nós não estamos sozinhos no mundo.” (STENGERS, 2003, p. 355 , tradução nossa - grifos acrescidos).

O pensamento coletivo, portanto, se constrói “em presença”, no espaço do encontro de hesitações, que se constitui em uma instância, denominada por Stengers (2007) de “cosmos”. Neste espaço de heterogeneidades, caracterizado pela “copresença problemática de práticas”, neste “pluriverso”, a paz se funda sobre o que “deve ser aceito por todos” e não sobre um interesse geral comum a todos, porque, do ponto de vista da proposição cosmopolítica, não existe a possibilidade da participação, em situação de igualdade, de representantes, diplomatas, capazes de negociarem a paz de maneira simétrica.

Não há, segundo Stengers (2007) uma chave universal capaz de solucionar todos os problemas do mundo. Para a construção da paz é necessário conhecer do que o mundo do outro é feito. Não existe um único mundo a ser colocado em ordem, mas sim diversos mundos que se atualizam “em presença”.

Aqui se verifica um ponto convergente entre os pensamentos de Latour e Stengers em torno da proposição cosmopolítica. Trata-se de uma visão ampliada de democracia em que, para a construção de um “novo mundo comum” é necessário recusar o modelo ocidental de justificação política que deprecia, invalida e destrói as tradições não modernas que não são

configuradas por ela. Sendo assim, o “cosmos” deve-se fazer com os “outros”, os não modernos, os não humanos, os sobrenaturais. Para os autores, então, o “cosmos” é um operador que desestabiliza, coloca em causa, a política dos modernos. A cosmopolítica supõe, então, a existência de uma pluralidade de seres humanos e de múltiplas maneiras de se definir como se vive como ser humano que não podem ser reduzidas a um único “bom mundo comum”. (LOLIVE; SOUBEYRAN, 2007).

Ao olhar para os conflitos que ocorrem em torno da chegada dos grandes empreendimentos para o desenvolvimento, em especial os investimentos portuários do litoral sul do Espírito Santo, verifico exatamente a presença de heterogeneidades, de múltiplos divergentes que se constituem em diferentes perspectivas, visões de mundo, em diferentes mundos. Assim, são criados vários espaços de hesitação sobre o que se considera “bom”, constituindo-se espaços de “copresença problemática de práticas” e momentos de “entrecapturas não simétricas”.

Sendo assim, é exatamente a “copresença problemática de práticas” ou os momentos de “entrecapturas não simétricas” que colocarei em evidência na seção seguinte, com a finalidade de tornar evidente as assimetrias existentes entre as comunidades locais e os grupos que dirigem os grandes empreendimentos para o desenvolvimento no litoral sul do Espírito Santo, principalmente no que tange às disputas entre os investimentos portuários e as comunidades de pescadores artesanais.

4.5 DESENVOLVIMENTO, EMPREENDIMENTO E PESCA: DE QUE O “COSMOS” É