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Capítulo IV: Da “cerdeira” à cereja: um processo de patrimonialização

IV.2. A Confraria da Cereja de Portugal

Atrás afirmámos que um dos mecanismos que se propõe divulgar a cereja da Cova da Beira é a sua confraria. Como tivemos oportunidade de referir no capítulo anterior, as confrarias gastronómicas são associações recentes em Portugal e o seu número reflecte o fenómeno social da divulgação de produtos alimentares associados a uma região. Tal como também já afirmámos no capítulo anterior, as confrarias possuem sede, obrigam ao pagamento de uma jóia, têm um padrinho, um patrono e os confrades. Estes, em cerimónias de representação, envergam trajo específico.

No vasto conjunto de confrarias, insere-se a da Cereja de Portugal, criada em 2006. A sua sede é a cooperativa dos fruticultores da Cova da Beira, situada na Ponte Pedrinha, vila do Ferro, concelho da Covilhã. “A joia, no valor de 200 euros, inclui o traje e a quota do primeiro ano, sendo a anuidade anual no valor de 35 euros. O compromisso Entidade Protectora é a quota paga no início do ano civil por todas as entidades protectoras da cereja e nunca é inferior a 1000 euros anuais. A este montante acresce uma jóia de inscrição de 300 euros”(Boletim da Confraria da Cereja de Portugal, s.d.: 14).

Os objectivos desta confraria são: “desenvolver e apoiar alguns trabalhos de investigação sobre o fruto e dinamizar a sua promoção no país e no estrangeiro. Uma das vantagens desta confraria é poder vir a contar com figuras conhecidas como confrades e para os eventos promocionais. Chamar ainda a atenção para o fruto, para a defesa dos interesses ligados à cereja, tendo em vista a sua valorização comercial e cultural” (Boletim da Confraria da Cereja de Portugal, Id.: Ibid.).

174 Segundo o Boletim da Confraria: “A confraria da Cereja de Portugal é uma instituição laica que admite membros de todos os credos. Não obstante e devido a uma preocupação em preservar a identidade cultural de regiões com fortes raízes cristãs, a confraria poderá promover algumas cerimónias religiosas; porém, insigniações e capítulos terão sempre lugar em espaço laico” (Id.: Ibid.).

A escolha de um padrinho e de um patrono religioso deve-se, sobretudo, às razões já apontadas. “Mas para além desse aspecto, houve a preocupação de encontrar um patrono que pudesse simultaneamente simbolizar a região e o seu povo. Assim, escolheu-se para padrinho a Confraria da Pera Rocha e para patrono Nossa Senhora da Serra da Gardunha. O culto em torno desta imagem uniu durante séculos algumas das freguesias que mais cereja produzem de uma forma mais directa, Alcongosta e Souto da Casa, e de forma indirecta todas as outras que se situam nesta região. É esse factor de união que queremos manter, estabelecendo um projecto comum para todas as regiões que produzem cereja, pensamos por isso que escolhemos o patrono que melhor simboliza essa causa.

O trajo é composto por capa de cor cerise (simboliza a cor da cereja), tem na frente, bordado à mão com o ponto de Castelo Branco, 12 ramos de cereja compostos cada um por duas cerejas e três folhas. A capa é debruada por fita castanha que simboliza o tronco de uma cerejeira, e a gola composta por uma fita verde que simboliza o verde das folhas e uma outra castanha. O gorro é baseado em modelos do século XV/XVI, de cor cerise para as confreiras e castanho para os confrades” (Boletim da Confraria da Cereja de Portugal, Id.: 16) (Figura 29). Quanto às insígnias sigamos o Boletim: “a fita do colar que sustenta a insígnia, de cor branca que simboliza a flor da cerejeira. Aquela “é uma medalha formada por brazão canopiado com duas cerejas em fundo dourado, finalizado por filactera com a inscrição Confraria da Cereja de Portugal … O Pergaminho é entregue a todos os Confrades e entidades Protectoras no momento da Insigniação e deve conter o grau, bem como a data e o local” (Boletim da Confraria da Cereja de Portugal, Id.: 15)

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Figura 29 - Trajos de Confrarias Gastronómicas

Fonte: Fotografia da autora

Em 17 de Outubro de 2009, assistimos na Covilhã a um evento protagonizado pela Confraria da Cereja de Portugal que fez parte das comemorações dos 139 anos daquela cidade (Figura 30).

176 As cerimónias, que decorreram das 10 às 21 horas, começaram com a abertura que se realizou no salão nobre dos paços do concelho, estando presentes as confrarias da Castanha, da Água, do Ribatejo, da Maçã, da Ortiga, do Azeite e da ainda não constituída confraria da Cherovia. A mesa é formada por um vereador, pelo grão- mestre da Confraria da cereja e por uma confreira.

O vereador abriu a sessão, em nome do presidente da Câmara, dando as boas vindas aos presentes. Chamou a atenção para o papel das confrarias enquanto defensoras dos produtos locais “ao contrário dos grupos que dizem mal de tudo e de todos. A Câmara quer promover o sector primário e os terrenos que estão abandonados, intenção para os próximos quatro anos”. Salientou ainda o papel da confraria da Cherovia que promoveu um festival por onde passaram 1800 pessoas na aldeia do Ferro. Felicitou a confraria da Cereja que “tem desempenhado um papel digno e tem ajudado a economia da região”. Terminou o discurso dizendo que a Câmara tem sempre a porta aberta para as confrarias.

A confreira que apresentava a confraria da Cereja agradeceu à Câmara e referiu a importância da Conferência de Etno-Botânica bem como as produções locais como o o chícharo, a cherovia, a castanha e a cereja (Figura 31).

Figura 31 - Folheto de divulgação da Conferência de Etnobotânica promovida pela Confraria da Cereja

177 No final da cerimónia, a Câmara ofereceu lembranças a cada confraria140 ao som de um grupo de música. Seguiu-se um desfile a pé, da praça do município até à capela de Santa Cruz do Calvário, que demorou cerca de meia hora. A acompanhar os grupos de confrades actuou um conjunto de bombos e uma banda de música, ambos da região.

Chegados ao adro da capela, um confrade da cereja proferiu uma palestra acerca do local onde, segundo ele, era hábito as confrarias religiosas fazerem uma pausa e, já dentro da igreja, um sacerdote abençoou a Confraria da Cereja.

Durante este acto, o sacerdote aspergiu os confrades, utilizando um raminho de uma árvore em substituição da cerejeira, pois “houve dificuldade em arranjar uma”. Seguiu-se um almoço oferecido pela autarquia e uma mostra dos produtos representados pelas confrarias presentes. Às 14 horas decorreu a Conferência de Etno- Botânica cujos temas versados foram o azeite, a urtiga, a maçã, a cherovia, a castanha e a cereja. Por volta das seis horas, a Confraria da Cereja ofereceu uma merenda cuja mesa foi posta com alguns dos produtos representados pelas confrarias presentes (cherovias fritas, alheira de ortiga, maçãs). (Figura 32).

Figura 32 - Aspecto da mesa numa cerimónia da Confraria da Cereja

Fonte: Fotografia cedida pelo Dr. Alberto Correia

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178 Gostaríamos de realçar o papel das confrarias que, no discurso do autarca, se distingue do de outros grupos: “contrariamente a outros grupos que dizem mal de tudo e de todos”. No entanto, ficamos sem saber quais são estes grupos e qual o objecto da sua maledicência. Neste mesmo discurso, as confrarias “têm ajudado a economia da região” e “a porta da Câmara está aberta para as receber”.

Outro aspecto que queremos destacar desta cerimónia é a presença da Igreja. Como se sabe, as confrarias surgem na Idade Média como associações religiosas de leigos cujo objectivo é a promoção do culto a um santo. Fazem-se representar por uma relíquia ou uma imagem. Também as irmandades e as misericórdias associavam gente com o mesmo ofício, os mesmos valores, o mesmo modo de vida.

Como já afirmámos, as designações dos cargos que hoje distinguem os confrades gastronómicos remetem para esse universo medievo. As suas designações diferem conforme as confrarias. Veja-se alguns exemplos destas designações: Mestre de Cúria, Chanceler, Almoxarife, Fiel das Usanças, Grão-Mestre. Encontrámos também o Borunário-mor (Confraria da Broa de Avintes). No caso da Confraria da Cereja, existe o Grão-Mestre, o Confrade e a Confreira.

Durante o evento, foi possível observar que foram dois os poderes a apoiar as confrarias: a Câmara, proporcionando o encontro no salão nobre e oferecendo o almoço e a Igreja, institucionalizando o agrupamento no templo e cumprindo o ritual da bênção feita pelo sacerdote, ele próprio confrade e natural de Castelo Novo141. De facto, em muitas confrarias, os capítulos e as bênçãos dos estandartes, entre outras cerimónias, contam com a participação da Igreja142. O facto de as confrarias terem um padroeiro sublinha ainda mais esta presença eclesiástica. Veja-se, a título de exemplo, os casos da Confraria da Cereja, cujo orago é a Nossa Senhora da Gardunha143, e a da

141Castelo Novo é uma freguesia do Fundão. 142

Comentário de um presidente de uma Confraria presente: “se por um lado, o espaço (igreja, catedral, capela, ermida) oferece dignidade à cerimónia, por outro, o próprio ritual da bênção do estandarte aproxima-se das confrarias religiosas medievas”.

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As lendas coligidas em várias publicações associam a Nossa Senhora da Gardunha à defesa de um inimigo que ora aparece referenciado como sendo um grupo de mouros contra os cristãos, ora de árabes contra os visigodos. Todavia, também está no centro de lutas entre a povoação de Castelo Novo e a de Souto da casa, ambas reivindicando para si a posse da imagem cuja ermida se encontra entre ambas.

Leite de Vasconcelos justifica o topónimo Gardunha através da semelhança com um animal parecido com o furão que teria existido nesta serra.

179 Castanha, a Nossa Senhora da Lapa, em cujo santuário se realizam as cerimónias.

O papel da Igreja é pois assumido junto da confraria, autorizando e protagonizando cerimónias dentro do templo.

Segundo palavras de uma confreira, a designação Cereja de Portugal, assumida pela confraria, deve-se ao facto de os confrades pretenderem que não haja mais nenhuma associação representativa deste fruto já que consideram a Cova da Beira o seu “berço”. Se a designação da associação é Cereja de Portugal, pretende-se assim abranger todos os núcleos nacionais que produzem cereja, Trás-os-Montes, Beira Interior e Entre o Douro e Minho. No entanto, já a escolha do patrono (Nossa Senhora da Gardunha), ao identificar uma zona estrita que é a Cova da Beira, reivindica esta zona, o seu “berço”, como a representante de toda a cereja do país.

Conforme afirmámos anteriormente, as confrarias são vulneráveis às dinâmicas locais. Um exemplo disso mesmo é o facto de a Confraria da Cereja não ter feito o capítulo relativo a 2010, tendo o seu site desaparecido da Internet. Procurámos informarmo-nos das causas de tal facto junto de uma confreira. Pelo tipo de resposta que tivemos, concluímos que teria havido tensões internas provocadas por disfunções administrativas, mas que, no entanto, a confraria iria continuar logo que os conflitos estivessem sanados. De facto, já em 2011 são duas as listas que se candidatam à Direcção. Uma delas, formada pelo Presidente da Câmara, desiste, ficando desta forma a outra na presidência. Um dos objectivos da nova lista é reformular os estatutos e continuar a divulgar a cereja144.

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