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O confronto com diferentes correntes do pensamento ético, da Antiguidade

6 A CONFRONTAÇÃO ENTRE A POLÍTICA BRASILEIRA E A ÉTICA

6.1 O confronto com diferentes correntes do pensamento ético, da Antiguidade

Postas, frente a frente, as teorias filosóficas sobre ética e política compreendidas no lapso que vai do período socrático até a Modernidade, mencionadas nos três primeiros capítulos do presente estudo, e as práticas políticas brasileiras descritas nos capítulos subseqüentes, fica evidente o descompasso que existe entre estas e a quase totalidade daquelas. Com efeito, os desvios de conduta presentes no agir dos nossos políticos são de tal ordem que não encontram inteiro respaldo nem mesmo na mais concessiva das doutrinas analisadas. Se não, vejamos.

Platão, em A República, idealizava uma pólis onde todos pudessem ser felizes. Uma cidade erigida e governada sob a égide da justiça. Uma cidade justa, habitada por cidadãos justos. Não é esse, certamente, o modelo de Estado que se constrói por aqui. Aliás, no que tange à igualdade perante a justiça, nosso país está mais para a definição que o sofista Trasímaco, faz no livro I, da obra que acabamos de citar e da qual Sócrates discorda: “[...] o justo não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte”.143

O distanciamento em relação à ética de Aristóteles é abissal. Nossos políticos, em grande parte corruptos e patrimonialistas, agem visando ao interesse próprio ou de pessoas físicas e jurídicas com as quais mantêm algum tipo de vinculação. Falta-lhes, portanto, não só o compromisso com a promoção do bem-estar da coletividade como um todo, mas a posse integral das virtudes que o estagirita considera indispensável nos homens públicos.

Não se vislumbram, igualmente, nas ações dos nossos governantes e legisladores, pontos de convergência com a filosofia epicurista, que preconizava a organização de uma sociedade sem exclusões, marcada pelo espírito comunitário e pela amizade entre os seus membros. Tampouco se vê, nos atos dessas autoridades, algo que se assemelhe às preocupações com as futuras gerações, presentes entre os seguidores de Epicuro, tal como atestam as inscrições deixadas por um deles nas muralhas de Enoanda.

Não se percebe, também, aproximação entre o que ensinavam os estóicos e o modo de agir dos políticos brasileiros. Ao contrário daqueles, estes privilegiam a acumulação de bens materiais, promovem a desigualdade, não valorizam a força do caráter, nem parecem

adeptos do cosmopolitismo. Entenda-se por cosmopolitismo o desejo de construir uma sociedade inclusiva, onde a universalização da cidadania aconteça de fato e de direito.

Em relação à ética cristã, há divergências marcantes. A política do Brasil não segue o preceito natural, racional e divino de fazer o bem e evitar o mal. Ao invés de priorizar valores como a solidariedade e a caridade, a conduta dos agentes políticos visa, preponderantemente, à satisfação dos interesses pessoais, dissociando-se, com isso, do mandamento bíblico que Agostinho aponta como fundamental para se gozar de Deus: “amar ao próximo como a si mesmo”.

Também os procedimentos corruptos, desonestos, fraudulentos, hipócritas, patrimonialistas, etc., que nos habituamos a presenciar no cotidiano da vida pública, estão fora da ordem moral do cristianismo, encaixando-se, com muito mais propriedade, de acordo com os ensinamentos de Tomás de Aquino, na doutrina de vícios preconizada por esse filósofo.

Colidem, frontalmente, a forma de se fazer política em solo pátrio e a moralidade kantiana. Não existe boa vontade na ação dos nossos agentes políticos, nem mesmo arremedos daquilo que Kant definiu como vontade boa em si mesma. Por trás dos atos que praticam, há, quase sempre, interesses inconfessáveis em jogo, muitos dos quais ilícitos, lesivos ao Estado e à sociedade brasileira, conforme, aliás, já tivemos oportunidade de nos reportar a respeito.

Se fosse o caso de aplicar sobre essas ações a fórmula do imperativo categórico nenhuma delas passaria pelo teste da moralidade. Com efeito, suponhamos que um dos políticos em atividade resolvesse indagar a si próprio: - posso eu querer que a máxima da minha ação de abusar do poder (ou de locupletar-me, de mentir, de agir com desonestidade, de praticar injustiça, etc.) se converta em lei universal? - Acreditamos que ninguém tem dúvidas quanto à negatividade da resposta.

Na esfera do poder público, não está fora de questão, apenas, agir por dever, em sintonia com a lei moral ditada pela razão pura prática. Descarta-se, também, a possibilidade de esse agir enquadrar-se no outro modelo, comum no cotidiano da vida humana, que Kant classifica como ações conformes ao dever. A rigor, age-se, irresponsavelmente, contra o dever.

No caso do utilitarismo a dissintonia é visível. Começa com a distorção semântica do que seja de utilidade. A interpretação equivocada que a classe política dá ao termo é a de cuidar do próprio bem-estar e não de promover a felicidade para a maioria das pessoas. Posto de outra forma, o princípio utilitarista do “maior bem para o maior número” funciona,

politicamente, por aqui, de forma invertida. Nossa política promove a felicidade de poucos, em detrimento do sofrimento da grande maioria do povo brasileiro.

Alguém poderia contra-argumentar dizendo que medidas assistenciais de largo alcance adotadas pelo governo estariam em conformidade com a ética utilitarista. Isso não é totalmente verdadeiro. Ressentem-se tais iniciativas da falta do aspecto qualitativo exigido por Stuart Mill, ou seja, elas precisariam trazer, junto, oportunidades de crescimento para os beneficiários, proporcionando-lhes a felicidade de prover o próprio sustento, livrando-os da dependência dos favores do Estado.

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