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Um confronto entre as duas discussões

No documento MUSEOLOGIA PATRIMÓNIO (páginas 175-185)

Carlos Alberto Ávila Araújo Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

4. Um confronto entre as duas discussões

O conjunto de teorias museológicas apresentadas acima permite perceber como os modelos contemporâneos representam principalmente um grau maior de abstração na compreensão do fenômeno museal. Se o desenho das reflexões que vão do Renascimento ao século XIX ancora-se na extrema concretude dos objetos (a instituição museu, os acervos, as técnicas), as perspectivas desenvolvidas no século XX foram importantes para deslocar e ampliar o eixo de preocupações (para as funções sociais dos museus, seu papel nos tensionamentos sociais, as apropriações dos sujeitos, os efeitos de sentido gerados por seus acervos e pelas técnicas aplicadas). É o aprofundamento desse processo que acaba por conduzir às perspectivas contemporâneas, mais atentas à complexidade dos fenômenos e à interrelação de seus elementos constituintes.

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Mas, além das questões propriamente conceituais, há também um conjunto de questões da própria realidade empírica que se apresentam como um desafio para a museologia contemporânea. O cenário de ampla circulação de informações falsas e de mecanismos de deslegitimação das instituições, incluindo os museus, coloca o desafio do desenvolvimento de novas práticas e novas mediações.

A longa tradição de pesquisa em museologia fornece vários elementos para se pensar no momento atual. A perspectiva funcionalista permite identificar determinados fenômenos como disfunções e os museus como instrumentos para a correção de tais disfunções, por meio da certificação de conhecimentos científicos, da promoção de espaços e acessos a fontes variadas de informação, de forma a se romper com as bolhas e os isolamentos cognitivos das pessoas. A perspectiva crítica permite o estudo dos interesses ideológicos por detrás dos atores que promovem desinformação, bem como a própria identificação de tais atores, de forma a se promoverem espaços de críticas, de desmascaramento e de emancipação dos sujeitos. A perspectiva de estudo dos públicos permite identificar aqueles valores, presentes na chamada cultura da pós-verdade, que predispõem os sujeitos para comportamentos de propagação da desinformação. E os estudos desde a perspectiva da representação podem ser muito úteis na verificação das várias estratégias de produção de sentido científico e jornalístico, e falsamente científico e jornalístico, por meio da linguagem. Mas é no âmbito das perspectivas contemporâneas que se encontram mais elementos para entender, de uma maneira complexa, como os museus podem ser compreendidos e inseridos nas dinâmicas de relação das pessoas com a informação e o conhecimento na contemporaneidade.

Uma das dimensões dos problemas informacionais contemporâneos vincula-se à dimensão tecnológica e relaciona-se, sobretudo, com o fato de motores de busca e redes sociais serem, hoje, os principais meios pelos quais as pessoas buscam, recebem e compartilham informações sobre tudo – desde a própria família, o próprio condomínio, como também de sua cidade, estado, país e o mundo. E ambos, redes sociais e motores de busca, são estruturados por determinados algoritmos que seguem uma lógica de relevância, hierarquização, visibilidade. Entre os critérios usados para isso, e operando numa lógica da otimização, as empresas desenvolvedoras

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destas plataformas e serviços apostaram na ideia da customização, da disseminação seletiva, do conforto. Isso acabou por produzir o chamado “efeito bolha” ou “câmaras de eco”: pessoas isoladas em seus próprios pontos de vista, sem contato com o contraditório, com informações provenientes de outros pontos de vista, de outras perspectivas.

Outra dimensão vincula-se ao nível individual dos sujeitos. Tal percepção se relaciona com o que vem sendo chamado de “viés cognitivo”. Trata-se de uma tendência do ser humano a formar suas crenças e visões de mundo sem se basear na razão e nas evidências, isto é, nos fatos, num esforço para evitar descontentamento psíquico. McIntyre (2018) aponta três estudos clássicos em psicologia social conduzidos nos Estados Unidos, nas décadas de 1950 e 1960, que demonstraram essa questão. O primeiro deles é a teoria da dissonância cognitiva de Festinger, segundo a qual buscamos harmonia entre nossas crenças e ações. O segundo é a teoria da conformidade social de Asch, que postula que temos tendência a ceder à pressão social por nosso desejo de estar em harmonia com os outros. O terceiro é o estudo do viés de confirmação conduzido por Watson, que identificou nossa tendência a dar mais peso às informações que confirmam nossas crenças pré-existentes. O autor apresenta também estudos recentes sobre a questão, expressos em dois conceitos: efeito contraproducente (fenômeno em que a apresentação de uma informação verdadeira para uma pessoa, que entra em conflito com suas crenças em fatos falsos, faz com que a pessoa creia nesses fatos com mais força ainda) e o efeito Dunning-Kruger (fenômeno no qual nossa falta de capacidade para fazer algo faz com que superestimemos nossas habilidades reais). Tais elementos do viés cognitivo fazem com que as pessoas sejam propensas a formar suas crenças sem ter em conta a razão e as evidências. Esse isolamento das pessoas em relação às evidências do mundo atua de modo complementar ao isolamento promovido pelo efeito bolha.

Há, ainda, um nível sociocultural, marcado pelo desinteresse pela verdade - desinteresse esse que é aceito, naturalizado, estimulado, reproduzido. Existe um processo de aceitação e replicação de conceitos que normalizam o desdém pela verdade. E é essa dimensão que significa que os problemas informacionais contemporâneos são um problema no plano individual e no plano coletivo – estão relacionados

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com mentalidades, atitudes, um ethos, uma cultura. A infodemia e a pós-verdade estão envolvidas com um imaginário, um conjunto de representações sociais ou sentidos já incorporados pelos públicos e desde os quais passam a se produzir as fake news, os testemunhais falsos e o discurso de ódio (Murolo, 2019). Essa visão amplia o problema da questão do nível individual – não são apenas decisões individuais, escolhas idiossincráticas, mas há, também, um conjunto de práticas, hábitos, situações e falas que promove, direta ou indiretamente, uma determinada relação das pessoas com a informação e com a verdade.

Assim se constituem as possibilidades de atuação de museus e da própria museologia. Além de diagnosticar o problema, é preciso também desenvolver estratégias de intervenção e de combate a seus efeitos perversos. Diversas ações vêm sendo apontadas por pesquisadores de várias áreas: a promoção de competência crítica junto aos públicos, a criação de mecanismos de certificação da veracidade e qualidade da informação, das coleções e das exposições, o aumento da visibilidade e circulação dos serviços de checagem, e a mobilização de estratégias para o esclarecimento quanto às bolhas e para sua “perfuração” (Dalkir e Katz, 2020; Ferrari, 2018; Noble, 2018). A efetiva implementação de tais ações é fundamental sobretudo para a manutenção de determinados valores construídos nos últimos séculos, com os quais a museologia encontra-se profundamente imbricada: a democracia, a inclusão, a defesa da diversidade e o estímulo a uma cultura da paz.

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