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2 ANÁLISE DE POLÍTICA EXTERNA E O CONGRESSO BRASILEIRO

2.2 O CONGRESSO NA POLITICA EXTERNA

Compreender a atuação do Legislativo e a relação Executivo- Legislativo na política externa não era uma preocupação inicial da APE (ALEXANDRE, 2006). Isso se deve principalmente às décadas de produções que consideravam (e por vezes ainda consideram) baixa ou irrelevante a capacidade de atuação parlamentar em questões internacionais. Tal compreensão deriva, em grande medida, da divisão de competências constitucionais, que nas democracias atribui ao Legislativo o poder de propor leis e supervisionar o Executivo nas suas diversas atribuições — entre as quais encontra-se o monopólio das iniciativas de negociações diplomáticas.

Nos últimos anos, porém, esse entendimento vem sendo revisto tanto nas pesquisas estrangeiras quanto nas brasileiras. Nesse caminho, e seguindo os passos de Putnam, dois trabalhos que marcaram os estudos do campo por investigarem a influência do poder Legislativo (e de outras variáveis domésticas) nas negociações de acordos internacionais foram o de Helen Milner (1997) e o de Lisa Martin (2000). Ambas identificam-se com a produção liberal e institucionalista das Relações Internacionais, mas apesar desta semelhança e do objetivo comum de analisar fatores que incidem sobre a credibilidade na cooperação internacional os resultados a que chegam são distintos, sendo Milner mais pessimista do que Martin com relação à participação do Legislativo nas negociações diplomáticas. Helen Milner, na obra Interests, Institutions and Information (1997), tem como preocupação central compreender o porquê e sob quais condições os Estados cooperam, propondo-se para isso aprofundar e sofisticar o modelo de Putnam. Da mesma forma que seu antecessor, trabalha com a associação entre os níveis doméstico e internacional. Ao contrário das abordagens do ator unitário, que pressupõem um sistema internacional anárquico e um ordenamento doméstico hierárquico, Milner

percebe ambos os sistemas como poliárquicos16, ou seja, compostos por diversos atores com preferências distintas e que compartilham a capacidade de moldar as decisões. A poliarquia, segundo a autora conceitua, estaria inserida dentro de um continuum de possíveis arranjos de distribuição de poder que vai da hierarquia à anarquia, e o seu grau é definido por três variáveis: as preferências dos atores domésticos, as instituições e a distribuição de informações entre os atores. Em suma, as preferências dos atores diferem umas das outras, as instituições que participam do processo político compartilham poder decisório e o nível de informação que cada ator detém influencia a distribuição de poder. Quanto mais as preferências forem homogêneas, ou um único ator concentrar poder de decisão, ou ainda um ator deter as informações mais importantes sobre o assunto, mais o sistema se aproximará do de um ator unitário e menos de uma poliarquia, e vice-versa (MILNER, 1997).

O argumento central é de que a cooperação entre nações é menos influenciada por fatores sistêmicos e mais pelas consequências distributivas doméstica da política externa. Ou seja, a alteração do status quo resultante de acordos de cooperação internacional gera custos internos, o que produz ganhadores e perdedores. Com isso, consequentemente, criam-se também apoiadores e opositores com capacidade de influenciar diretamente as políticas ou os agentes políticos (idem).

A luta interna entre esses grupos molda a possibilidade e a natureza dos acordos de cooperação internacional. As negociações internacionais para realizá-los muitas vezes falham por causa da política interna, e tais negociações são, também por diversas vezes, iniciadas por causa da política doméstica. Todos os aspectos da cooperação são afetados por considerações domésticas porque a cooperação é uma continuação da política interna por outros meios (MILNER, 1997, p. 10, tradução nossa).

Quando olha para o nível doméstico, Milner concentra-se em três atores: o Executivo e o Legislativo, que são atores políticos, e os grupos

16 Milner (1997) esclarece que utiliza o conceito de forma diferente do

preconizado por Dahl (1984): enquanto para ele o termo refere-se ao grau de democracia que existe em um país, para ela remete aos “arranjos de distribuição de poder entre grupos domésticos” (MILNER, 1997, p. 11, tradução nossa).

de interesse, que são atores sociais/societais. Os dois Poderes (tratados para fins de simplificação teórica como atores unitários) têm interesses similares enquanto atores políticos, ou seja, buscam constantemente maximizar a sua utilidade e os seus interesses, mais especificamente mantendo-se no poder (stay in office). Para tal, ambos necessitam preocupar-se com questões econômicas e com os grupos de interesse que os apoiam. Apesar de apresentarem estas preocupações semelhantes, Executivo e Legislativo podem optar por políticas distintas para alcançarem seus objetivos. Outra diferença importante ressaltada pela autora é que enquanto o eleitorado do Executivo é nacional, o do Legislativo é distrital/local. Os grupos de interesse também são considerados atores racionais, por buscarem maximizar seus interesses, e entre os diversos grupos que se manifestam em uma sociedade, cada grupo é tido como um ator unitário, cujas preferências refletem a preferência média de seus membros. O objetivo principal destes grupos seria maximizar ganhos, sejam eles lucro, salário, entre outros. Milner teoriza que se a preferência destes três grupos de atores é divergente em relação a um assunto, e se eles compartilham o controle sobre o poder de decisão, isso quer dizer que a política doméstica terá relevância para a cooperação internacional, e que os arranjos de divisão de poder entre os grupos domésticos serão poliárquicos.

O modelo de análise de Milner é desenvolvido a partir da configuração política dos Estados Unidos (EUA), necessitando de adaptações para ser utilizado em outras realidades sociopolíticas. Segundo Lopes, isso se dá principalmente por não ser capaz de “apreender as nuances do processo democrático em uma sociedade complexa e extremamente segmentada, permeada pelo conflito de interesses entre os mais diversos grupos e pela incidência, cada vez mais violenta, dos efeitos da internacionalização da gestão pública” (LOPES, 2013, p. 20), como é a brasileira e tantas outras dos chamados países em desenvolvimento.

Da mesma forma que Milner, Lisa Martin (2000) tem por objetivo compreender a cooperação internacional. Porém, no seu estudo Democratic Commitments: Legislatures and International Cooperation (2000) trabalha com variáveis distintas e menos atores, focando-se apenas no Executivo e no Legislativo. A autora faz uma crítica à abordagem do ator dominante (actor dominance) que busca identificar quem tem capacidade de determinar a política externa, se um Poder ou o outro, sendo sua proposta substituir esse modelo por outro construído na interação ou na relação entre o Executivo e o Legislativo (idem).

Identificada com a produção institucionalista e liberal, a autora parte do pressuposto da racionalidade instrumental dos agentes e objetiva

identificar os fatores que incentivam a cooperação internacional entre os Estados, tornando-a mais crível e estável em um ambiente internacional anárquico e tendente ao conflito. Sua hipótese central é de que a participação dos parlamentares na política externa aumenta a credibilidade dos compromissos estatais, elevando assim as chances da cooperação internacional — embora também assuma que o envolvimento do Legislativo torna o processo de negociação mais complexo. Martin propõe então quatro hipóteses principais para investigar o padrão de variação da influência legislativa, quais sejam, a hipótese da delegação, a hipótese da influência, a hipótese da credibilidade e a hipótese da cooperação, sendo as duas primeiras referentes à influência legislativa (e por isso especialmente interessantes para o estudo de caso proposto neste trabalho) e as duas últimas referentes à credibilidade de compromissos internacionais.

A partir da hipótese da credibilidade e da hipótese da cooperação, sugere que a institucionalização da participação parlamentar em política externa aumenta a credibilidade dos compromissos internacionais e que esta mesma participação, se institucionalizada, intensifica os processos de cooperação regional. Para Neves, é neste ponto que reside a principal inovação da proposta de Martin, pois se até então o “Legislativo era visto como ausente nas negociações internacionais (teoria realista), como um possível obstáculo doméstico à cooperação internacional (Milner, 1997) ou como mero ratificador de tratados ex post facto (Oliveira, 2001), agora o papel do legislativo é mais relevante” (NEVES, 2003, p. 109).

No tocante às duas hipóteses sobre influência, dar-se-á mais detalhes devido a sua importância para o presente trabalho, uma vez que constituem argumentos recorrentes nos estudos brasileiros. De acordo com a hipótese da delegação, “os legisladores irão se mobilizar para institucionalizar a sua participação nos esforços cooperativos internacionais quando houver maior conflito de interesses entre o Executivo e o Legislativo” (MARTIN, 2000, p. 48, tradução nossa). Em suma, o que se aponta aqui é que em casos de convergência de interesses entre os dois poderes, o Legislativo irá delegar poder para o Executivo, ao passo que em casos de divergência, o primeiro irá reivindicar sua atuação.

Este argumento difere-se das teses ou hipótese de abdicação, que pressupõe um modelo de predomínio do Executivo, no qual o Legislativo mesmo que desejoso não tem poder e capacidade de influenciar. Em suma, a diferença entre delegação e abdicação é que enquanto no segundo caso os legisladores não têm mecanismos para reivindicar participação, no primeiro eles concedem poderes para o Executivo, pretendendo obter

ganhos de alguma natureza com tal ação, porém, resguardam mecanismos de controle que os permitam agir caso assim desejem. Martin (idem) discorda que o Legislativo dos Estados Unidos seja um caso de abdicação, e para fundamentar sua opinião cita alguns mecanismos de controle, pelos quais os congressistas, caso queiram, podem exercer influência sobre o processo decisório: o poder de implementação e o poder de apropriação orçamentária. O primeiro relembra que para viabilizar a implementação de alguns acordos internacionais, muitas vezes devem ser feitas mudanças no direito interno, “de modo que a implementação envolve o processo legislativo normal” (MARTIN, 2000, p. 60, tradução nossa). Ou seja, quando a entrada em vigor e adoção de um acordo internacional demandar mudanças na legislação doméstica de um país, a fim de que os termos negociados possam ser executados, nestes casos o Legislativo torna-se o responsável pela alteração no âmbito interno e adquire poder sobre esta agenda. Este é um mecanismo importante para o estudo do Protocolo de Nagoya, e será retomado no quarto capítulo. Já a apropriação orçamentária diz respeito à competência parlamentar para autorizar ou vetar a transferência e utilização de fundos nacionais para ações internacionais, como por exemplo no caso de ajuda externa (MARTIN, 2000). Apesar de constituir um eficiente mecanismo nos Estados Unidos, o controle orçamentário não tem a mesma força e expressão como mecanismo de controle legislativo sobre a política externa brasileira.

Já a hipótese da influência sugere que “os poderes executivos são incapazes de manipular as estruturas de participação legislativa para fugir da influência legislativa em matéria de cooperação internacional” (MARTIN, 2000, p. 49, tradução nossa). Nesse ponto, a autora coloca uma ênfase especial para diferenciar ação legislativa e influência legislativa, ressaltando que pouca atividade parlamentar não quer dizer que o Congresso não tenha influenciado os resultados. Boa parte dos estudos que atribuem baixo poder de influência parlamentar na política externa baseiam-se, segundo Martin (2000), nas ações ou resultados, ou seja, quando e de que forma efetivamente o Congresso mudou a formulação ou a implementação de uma política. Como os números de vetos ou emendas são baixos, acaba-se atribuindo ou pouco interesse ou pouca capacidade ao Legislativo. Por isto, Martin baseia-se na lei de reações antecipadas para lembrar que muitas vezes os legisladores não se manifestam e chancelam os acordos internacionais porque suas demandas já foram contempladas na negociação. É claro que mensurar isso representa um obstáculo metodológico, pois corre-se o risco de acabar atribuindo influência legislativa quando e somente porque os

resultados condizem com as preferências parlamentares, o que pode ser na verdade mera coincidência (OLIVEIRA LIMA, 2013).

Martin (2000) ainda apresenta dois mecanismos para avaliar a assertividade parlamentar, quais sejam, o de patrulha policial e o alarme de incêndio. O mecanismo de patrulha policial reflete uma atuação mais constante do Legislativo de acompanhar e fiscalizar o poder Executivo. Já o mecanismo do alarme de incêndio remete a ação parlamentar apenas para os casos mais polêmicos, em contexto de discordância entre os dois poderes. Ou seja, neste segundo exemplo o Legislativo não influencia todo o tempo, mas somente naqueles momentos em que um tema conflitivo está em debate.

Recuperados dois dos principais trabalhos da literatura internacional para compreender o papel e a influência do Poder Legislativo nas Relações Internacionais, e que estimularam diversos estudos empíricos no Brasil, seguimos então para uma revisão deste campo no âmbito da política externa brasileira, no intuito de levantar as principais teses e pesquisas com as quais este trabalho dialoga.