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CAPÍTULO 2 CRÍTICA AO SENSUALISMO, DESCOBERTA DO COGITO E

2.1. Conhecer a alma e não conhecer o corpo: um problema fundamental

No título da “Segunda meditação” são anunciados dois de seus objetos fundamentais de investigação: 1) Da natureza do espírito

humano e; 2) de como Ele é mais fácil de conhecer do que o corpo.27

Os dois estão ligados e visam fundar uma descrição da natureza da alma a partir da descoberta da res cogitans. Isso porquê, quanto ao segundo objetivo, Descartes por ora não prova que os corpos existem, mas prova a existência da alma e examina sua natureza, já mostrando que o conhecimento de si como res cogitans não depende do corpo (independentemente do fato de o corpo existir ou não). Nos Princípios da filosofia, I, VIII, essa questão é explicitada. Nas palavras de Descartes:

[…] examinando o que somos, enquanto supomos, como agora fazemos, que não há nada realmente existente para além de nosso pensamento, percebemos claramente que nem a extensão, nem a figura, nem o movimento local, nem de outra coisa que se possa atribuir ao corpo, pertence à nossa natureza, e nada senão e apenas o pensamento; e, por conseguinte, a noção que temos de espírito precede a que temos de qualquer coisa corpórea, e é mais certo, visto que ainda duvidamos que existam corpos, mas já sentimos que pensamos. (AT, IX-2, p. 28; Princípios, 2007, p. 27)

Na “Segunda meditação” não há prova alguma de que a alma é distinta do corpo, mas sim que é possível dar início ao conhecimento da alma e concebê-la sem ele, até mesmo porque a

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27 A questão da imortalidade da alma constitui um terceiro objeto que poderá ser explicitado após os dois primeiros serem suficientemente investigados. Como explica o filósofo no “Resumo das meditações”, “a primeira e principal coisa requerida, antes de conhecer a imortalidade da alma, é formar dela uma concepção clara e nítida, e inteiramente distinta de todas as concepções que se possam ter do corpo: o que foi feito nesse lugar” (AT, IX-1, p. 09-10; Obras escolhidas, 2010, p. 131). Este capítulo pretende apresentar as bases da teoria da alma racional, tendo como foco a crítica ao sensualismo. Não iremos nos ater à questão da imortalidade da alma, pois, para tanto, teríamos que adentrar em questões de fé e da vida após a morte do corpo, o que nos levaria a fugir da proposta delimitada inicialmente.

realidade corpórea se mantém suspensa pela dúvida metódica. E no exemplo da cera, como discutiremos em detalhes na sequência, Descartes considera que, a “Segunda meditação”, não realiza a distinção real entre res cogitans e res extensa, ainda que ali ocorra uma problematização do conceito de corpo, porém, sem haver como saber se as coisas corpóreas corresponderiam ou não à realidade exterior. Como a discussão será restrita ao âmbito de uma única coisa, o pensamento, é apenas mais adiante, na “Terceira meditação”, após as provas da existência do Deus veraz e da validação das ideias claras e distintas pela regra da verdade, que na “Sexta meditação” é realizada a distinção real, no §17, antes mesmo da prova da existência dos corpos feita no §20.

De início, o exame da alma racional faz da crítica ao sensualismo sua aliada mais próxima, esforçando-se, agora na “Segunda meditação”, em superar de alguma forma a esfera totalizante da dúvida metafísica que está imperando. Parece que Descartes simula um inimigo sensualista indeterminado ou velado, tal que ele fosse muito próximo e íntimo de uma espécie de empirismo que, para o filósofo, seria grosseiro. Note-se que o ataque a esse inimigo oculto acontece como um modus operandi que causa estranheza. Ora, se desde os filósofos pré-socráticos há uma longa tradição de crítica à postura de se fiar imediatamente no que seria a “veracidade dos sentidos”, qual a novidade de prosseguir nessa crítica?

A suposição de um “grande sensualista” a ser combatido, como veremos, será um ponto de apoio valioso no horizonte amplo da teoria da subjetividade defendida pelo filósofo. Essa teoria se remete a uma constatação que atravessa a filosofia cartesiana e faz resplandecer uma antropologia complexa, que talvez fosse nova para a história da filosofia naquela época. Ao contrário do que possa parecer, a originalidade do cartesianismo não esteve jamais posta sob uma possível desfiliação dessa tradição de crítica ao sensualismo. Com efeito, sua inovação está no fato de preparar o tratamento da alma e do corpo em âmbitos diferenciados, nos quais cada substância é totalmente distinta uma da outra. Porém, ainda assim, essa separação, que é absolutamente radical sob uma determinada visada, ela mesma é uma repartição ou complementação da verdadeira noção de homem. Assim, se é fundamental para a antropologia cartesiana, essa dissociação decorre da exigência de desconstruir a base da confusão substancial que parecia inabalável. Por “confusão substancial” devemos entender uma noção metafórica dada pela história da existência humana, na qual os homens, na cotidianidade, vivem sob o amparo de uma “infância filosófica” que

só é passível de ser superada pela crítica metafísica. Conforme afirma o filósofo nas “Sextas respostas”:

[…] desde minha mais tenra juventude, tenho concebido o espírito e o corpo (do que via confusamente que me compunha), como uma só e mesma coisa; e é o vício quase ordinário de todos os conhecimentos imperfeitos, reunir em uma muitas coisas, e de tomá-las todas por uma mesma; isto porque é necessário tomar a dificuldade de as separar, e, por um exame mais exato, de as distinguir umas das outras. (AT, IX, p. 243)

Ora, para superar a “infância filosófica”, como discutimos na introdução, há um longo caminho a ser elucidado. De sua parte, inicialmente a “Segunda meditação” recupera o efeito psicológico- filosófico da suspensão do juízo alcançada na investigação precedente, ao mesmo tempo em que dá continuidade a essa investigação em primeira pessoa, como se de súbito o sujeito meditador “tivesse caído em águas muito profundas”, sem que possa firmar os pés no fundo, e tampouco nadar para se manter à tona.28

Essa complementaridade entre o efeito psicológico da suspensão do juízo e a crítica ao sensualismo permite que o exame acerca da “natureza do espírito humano” prossiga. Ora, então, que quer dizer, para Descartes, conhecer a alma e não conhecer o corpo? Descartes defende um idealismo embasado na prioridade epistemológica da res cogitans sobre a res extensa. Essa prioridade não é despropositada, mas situada estrategicamente na perspectiva de mostrar que o espírito é a fonte da significação e da compreensão, seja ela conceitual, sensível, ou mesmo objetal em geral. Posta sob a linha mestra que guia as Meditações de filosofia primeira, essa prioridade determinará um resgate, ou um reordenamento, do sensível como fonte fidedigna do saber, pois a crítica ao sensualismo situa o sensível em um âmbito de análise profunda e rigorosa da posição epistêmica e ontológica do que seja a coisa sensível, tal qual ela é. Conhecer o espírito não se desprende, pois, de conhecer o sensível. É sob o jugo dessa posição de Descartes que precisamos orientar a contraposição e a justaposição entre a descoberta e o exame da alma e a análise da crítica ao sensível.

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2.2. A descoberta do cogito: prova da indubitabilidade, da