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2 O CAMINHAR NA/DA/COM A PESQUISA NA ESCOLA

4.1 PENSARES MATERNOS SOBRE ESCOLA/ESCOLARIZAÇÃO: MOTIVAÇÕES,

4.1.2 Conhecimento e cultura escolar

As mães observam a força da cultura hegemônica e demarcam o papel da escola nesse processo social de produção e apropriação de um saber que não é próprio ao do seu universo cultural.

Mainha, vamos atravessar na faixa de pedestre. Atravessar na faixa de

pedestre é mais seguro. É uma coisa que a gente não ensina, mas é necessário para ela, para a escola, para a vida dela (Maria).

Nesta perspectiva, a cultura que a escola difunde é observada pelas mães como diferente da vivenciada em seu entorno, como “[...] o conhecimento. Não é?” (Maria), observa que o conhecimento veiculado na escola difere do familiar, o que parece ser consenso, afinal,

esfera educativa, não como uma mera simplificação de conhecimentos produzidos fora da escola. Consideramos, ainda, que o conhecimento escolar tem características próprias que o distinguem de outras formas de conhecimento (MOREIRA; CANDAU, 2008, p. 22).

O conhecimento escolar é específico da instituição de ensino. Há um conhecimento que se vivencia em casa e um de outra estirpe que é próprio à escola: “[...] aonde é que uma pessoa que não estudou e que não foi à escola vai saber disso?” (Maria). A escolarização nas falas maternas possui essa marca da diferença, de saberes dominados em seus grupos sociais e o que é apropriado aprender para viver em um mundo distinto do seu. Como Certeau (1994) observou, na vida prática das pessoas comuns, existe a necessidade de se situarem engenhosamente em espaços que não são seus, estratégicos, porque são de um próprio que os distinguem de si, e o marcam enganosamente numa percepção de consumidores32.

Elas observam de forma recorrente a percepção de mundos culturais distintos e estabelecem essas nuances quando discorrem sobre os aprendizados escolares e familiares. Fazem uso da expressão “ensinar” como representativo do que a escola faz. E, assim, identificam que a escola promove um conhecimento que elas (famílias) não disponibilizam em seus cotidianos e que é importante para viver em uma sociedade demarcada socialmente entre uns e outros.

Eu acho que a escola, o que ensina é a ler e a escrever. Em casa, às vezes, a gente não ensina, porque a gente não tem muito tempo, pra ensinar a ler e escrever. Aí vem outras palavras de educação que a gente... Como, às vezes, a gente não tem muito tempo de ensinar aos filhos. Mas, muita coisa importante a escola ensina. Eu vejo aqui, [...] às vezes, em casa a gente não ensina, por isso que eu acho importante (Ivone).

Podemos, então, depreender que as mães compreendem o que se vivencia no interior da escola, “[...] porque já ensina tudo isso a ele, num modo geral, entenderam? Já ensina, não é? Sem que eles percebam, mas ensina. Eu não sei como é o jeito da escola trabalhar, mas ensina” (Maria). Ou seja, elas observam que a cultura escolar pode ser designada como “o conjunto dos conteúdos cognitivos e simbólicos que, selecionados, organizados, „normalizados‟, „rotinizados‟, sob o efeito dos imperativos de didatização, constituem habitualmente o objeto de uma transmissão deliberada no contexto das escola” (FORQUIN, 1993, p. 167).

32 Consumidores é a expressão utilizada por Certeau (1994) para demonstrar a compreensão equivocada do poder

sobre o homem comum, pois se pensa que eles ficam inertes, assimilando o que lhes é ofertado. Porém, ele defende que estes, ao ficarem aparentemente inertes, estão produzindo outros saberes, fabricando práticas próprias, diferentes do que está sendo supostamente vertido.

As mães sabem que a escola é local de ensino e aprendizagem, mas não conseguem explicitar o como se processa essa demanda no seu interior: “[...] aí, assim, é tanta coisa que eu não sei nem lhe explicar porque hoje a escola ensina assim, quase tudo que uma pessoa precisa para ser um bom cidadão. Não é? Porque ela educa. Ela...” (Maria).

Nesse processo de tentar explicar como a escola desenvolve as práticas educativas, as mães não fazem uso da palavra currículo em seus discursos, mas da ideia de que algo organiza e processa o ensinar. Então, utilizam exemplos práticos do que ocorre com quem estuda para explicar o que pensam ocorrer no interior da escola. Definem o pensarfazer por meio das práticas escolares, conforme o fazem nos demais aspectos de suas vidas.

Elas assimilam a sua essência quando afirmam o que escola faz/promove para os sujeitos que permanecem em seu interior: “[...] a escola ensina muita coisa: educação, participação, os valores...” (Ivone), percebem que “[...] o currículo está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos e nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos produz” (SILVA, 2010, p. 27). Definem a sua existência e os entendem como os saberes imbricados na prática escolar, estabelecendo o que o currículo faz e nos faz, embora não elaborem um entendimento interpretativo denso e argumentativo sobre isso, mas reflexionam que nele se está a essência do que a escolarização proporciona.

Nessa perspectiva, o currículo é um tecido escolar constituído nas relações sociais, produzido em suas diversas linguagens num contexto que implica tensões culturais, pois está impregnado da significação de cada grupo social inserido numa escola. Maria, ao dizer que “[...] a escola ensina tudo que precisa saber para ser um bom cidadão”, denuncia a subvalorização do saber do povo, também reconhece que ao não ir à escola se é alijado da condição de direito pleno, não é assegurado o direito à cidadania; por fim, reafirma a necessária obediência ou compreensão a uma cultura hegemônica para poder ser sujeito de direito.

O embate sobre o que é culturalmente válido se faz presente desde sempre, e se cristaliza na própria concepção de cultura que, inicialmente, segundo Vannucchi (2006), na concepção humanística da Antiguidade, se referia a uma educação erudita, a formação de um espírito superior, ou designativa de certa maneira de se portar em sociedade. Segundo Cuche (s/d) como civilidade, na Idade Média. Nelas, a escola é o lugar de cultivo do espírito, assim sendo, detém o conhecimento, enquanto que as demais formas de expressão e de conhecimento humano são consideradas como de menor valor.

Portanto, em todo o processo de pesquisa temos observado que as mães marcam as suas diferenças culturais com a escola e observam que não há neutralidade nessa complexa

relação família e escola. As mães/famílias veem as lutas culturais implícitas, pois “[...] toda a cultura se elabora nos termos de relações conflituais ou competitivas entre mais fortes e mais fracos, sem que nenhum espaço, [...], possa instalar-se na certeza de neutralidade” (CERTEAU, 1994, p. 86).

A instituição educativa ideologicamente tem algo a ensinar a quem não sabe - “o certo” -, detendo o conhecimento e a cultura porque, nessa perspectiva, o conhecimento popular é compreendido como do senso comum, e o escolar é cientifico, conforme esclarecem Lopes e Macedo (2011) quando discorrem sobre as acepções do termo conhecimento e explicam que no positivismo se acredita que “[...] todo o conhecimento é um saber, mas nem todo o saber é um conhecimento. Só é conhecimento um saber capaz de passar por [...] testes de validação [...]” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 71). Nessa perspectiva, o conhecimento escolar como verdade (conhecimento) e o outro como um saber decorrente da experiência prática cotidiana, de menor valor.

Assim, a cultura escolar, na perspectiva materna, pode ser interpretada de acordo com o que diz Paro (2008, p. 23):

[...] a educação consiste na apropriação da cultura. Esta, entendida também de forma ampla, envolve conhecimentos, informações, valores, crenças, ciência, artes, tecnologia, filosofia, direito, costumes, tudo enfim que o homem produz em sua transcendência da natureza […] visa à formação do homem em sua integralidade.

A afirmação de Paro (2008) sintetiza a compreensão materna sobre a escolarização. Nesse aspecto, a cultura é observada como uma apropriação, como um produto a ser assimilado, diferente do que vem sendo defendido nesta dissertação, todavia, a cultura se caracteriza por deter multidefinições que abarcam uma gama de interpretações como produto e como produção, como essa de Paro (2008) – quando definiu uma possível compreensão da função social da escola dentre outras explicitadas por ele -, que se configura como produto e que foi utilizada para configurar o que as mães pensam porque é essa a conotação dada por elas.

Assim, neste tópico, observamos que as mães elaboram continuamente saberes sobre a escola, compreendem e definem o que ela promove quando se frequenta uma instituição de ensino. A escola deixa marcas que diferenciam um sujeito de outro: “[estudo muda a vida?] Eu acho que muda. A vida da pessoa muda. Tanto muda financeiramente como muda... Com o estudo ele aprende mais” (Joana). As mães parecem dizer que permanecer na escola é alterar o

seu eu, a sua identidade. É ser outra pessoa.