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Conhecimento do espaço e do quotidiano

Capítulo V: Estudo do espólio

5.1. Cerâmicas provenientes das estruturas do setor I

5.3.1. Conhecimento do espaço e do quotidiano

O conhecimento do espaço onde provêm os materiais cerâmicos analisados torna-se de difícil perceção, não só pela ausência de dados referentes às camadas estratigráficas, como também pela intensa ocupação humana que a zona da alcáçova teve ao longo dos séculos, traduzindo-se essa presença no local numa série de sobreposição de estruturas e do desmantelamento de outras para a edificação de novas construções, dificultando imenso a leitura do sítio para o período que nos interessa. Ainda assim, através da análise da disposição dessas mesmas estruturas, juntamente com o estudo do espólio, é possível fazer uma aproximação ao conhecimento do espaço e do quotidiano no Período Medieval Muçulmano.

As intervenções dentro da alcáçova muçulmana colocaram a descoberto uma série de estruturas que testemunham a ocupação humana ao longo de vários séculos. No que respeita ao setor I de onde provêm as peças em análise, foram encontrados dois

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Cerâmicas - Decorações

Vidrado Estampilhado Esgrafitado Caneluras Relevo Inciso Pintado Sem decoração

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muros construídos em época muçulmana que se encontravam dispostos perpendicularmente um ao outro, construídos com silhares de pedra ligados nas juntas por terra e pedras de menores dimensões. Um dos muros encontrava-se orientado no sentido sul-norte e o outro no sentido este-oeste, achando-se neste último uma pequena abertura para o escoamento das águas pluviais.

Imediatamente acima daqueles encontraram-se muros alinhados datados das Idades Medieval e Moderna e um outro da época romana, mas que pensamos datar igualmente das épocas primeiramente mencionadas, dado que se encontrava sobreposto aos muros islâmicos, tendo sido, possivelmente, construído com materiais provenientes do desmantelamento das estruturas romanas. Um deles define uma zona de cozinha, não escavada na totalidade, conforme denunciam as marcas de fogo e lareira no local, que possivelmente terá sido edificada durante a ocupação cristã na cidade. Para além das estruturas referidas, foram ainda encontrados dois silos, datáveis da Idade do Ferro, junto de uma das paredes que define o pátio pelo lado exterior, nomeadamente o muro que segue no sentido sul-norte (Fig. 120).

No que respeita às estruturas muçulmanas, como também já mencionamos no capítulo anterior, foram datadas como sendo da Idade do Ferro, todavia pela disposição dos muros, assim como a localização num deles da abertura para o escoamento das águas pluviais, juntamente com a análise do espólio, sugerem tratar-se de um pátio islâmico. Tal afirmação parece-nos plausível, dado que o tipo de abertura identificada é semelhante às existentes em alguns pátios do bairro islâmico de Mértola, sendo frequente estas aberturas localizarem-se nestes locais para expulsar as águas excedentes provenientes das chuvas, dado este ser um espaço a céu aberto, exposto, portanto, às condições climatéricas adversas, servindo estas aberturas também para a libertação das águas provenientes das limpezas que eram efetuadas nos pátios, sendo por isso, indispensável este tipo de estruturas ou de outras com funcionalidade semelhante nestes locais da casa (Macias, 2006, p. 397).

Para compreendermos como se organiza uma casa muçulmana, temos de conhecer o modelo da casa mediterrânea e esta caracteriza-se pela sua organização em redor de um pátio central, sendo este o pólo sociológico e cultural à volta do qual se organizam e diferenciam as outras divisões da habitação, como os salões com a alcova que eram espaços destinados ao descanso onde por vezes os habitantes se entretinham com atividades lúdicas, nomeadamente jogos de tabuleiro, como o alquerque e jogos de

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dados, conforme comprova a descoberta dos mesmos encontrados nesses compartimentos, como em alguns dos salões do bairro islâmico de Mértola (Macias, 2006, p. 399-400).

Para além dos salões, estas habitações tinham também cozinhas que eram espaços destinados à preparação dos alimentos, possuindo por vezes uma divisão para armazenamento dos mesmos, uma latrina que se encontrava normalmente numa pequena divisão retangular e um átrio ou saguão por onde se entrava na casa, normalmente a entrada era realizada em cotovelo para preservar a intimidade do interior e através desta acedia-se ao pátio (Gomes, 2013, p. 39).

Estes espaços eram normalmente pavimentados com tijoleira ou lajes, esta opção para revestir os pátios tem a ver com o facto de esta divisão da casa, por ser uma zona descoberta, estar exposta aos agentes climáticos como a chuva e os raios solares (Macias, 2006, p. 383). Todavia não se encontrou durante as intervenções vestígios de qualquer pavimento no compartimento pertencente a um pátio, este aspeto poderá ter a ver com o facto de esse material ter sido pilhado no local por parte dos cristãos para ser incluído em novas construções, dado que em Alcácer do Sal se verifica muito essa situação, mas também em outros locais. Normalmente nas zonas centrais daqueles havia, por vezes, canteiros para cultivo de ervas aromáticas, como a hortelã, a salsa ou os coentros, mas também podiam haver pequenos tanques com água e até jardins (Gomes, 2013, p. 30).

O pátio era por isso o coração da casa, era ele que fornecia a luz e ventilação e sobretudo era nesse local que os habitantes se reuniam, desempenhando aquele um papel fundamental no quotidiano sobretudo das mulheres, dado que num mundo em que aos homens estavam reservadas as tarefas da guerra, do comércio, ou meramente do convívio nos locais públicos, como os mercados, as mesquitas ou os banhos, era o interior da casa o espaço exclusivo das mulheres. Estas reuniam-se no pátio para preparar e confecionar alimentos, mas também para tecer roupas, era local igualmente de convívio e lazer, desempenhando este um papel primordial na vida da casa, não sendo, por isso, de estranhar que o espólio mais representativo provenha deste compartimento durante uma intervenção arqueológica.

O espólio analisado testemunha o quotidiano desse espaço, as taças que se encontram com maior representatividade no conjunto, eram normalmente utilizadas para colocar os alimentos que depois eram servidos à mesa nos salões, enquanto as mais

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fundas e de menor diâmetro poderiam servir para conter líquidos, tal como as jarras que eram também destinadas a conter aquele elemento e poderiam ser, quer de uso individual, quer de uso coletivo, sendo tapadas com tampa ou testo (Gomes, 2002, p. 35). Duas das taças mostram marcas de fogo, tendo sido substituídas as suas funções iniciais destinadas ao serviço de mesa para passarem a ser utilizadas, possivelmente, como frigideiras para cozinhar.

Era também habitual haver nos pátios das casas uma ou mais talhas para servir os habitantes nas atividades domésticas e até para se refrescarem nos dias de calor em que o corpo necessitava de ser hidratado com maior frequência, sendo, normalmente, utilizadas para este fim as talhas vidradas, enquanto as restantes serviam para o armazenamento de produtos alimentares, enquadrando-se possivelmente, dois dos fragmentos de talha neste grupo, enquanto a talha vidrada a verde estampilhada serviria para conter água (Martínez, 2001a, p. 66; Torres, 2011, p.132; Gomes, 2003, p. 251; Palazón e Castillo, 2003a, p. 107).

Para preparar os alimentos e cozinhá-los usavam-se normalmente, sobretudo na última fase da ocupação islâmica, fogareiros que eram colocados ao ar livre nos pátios, servindo este contentor de fogo como fogão ou grelha para assar ou até mesmo como braseira para o aquecimento doméstico (Martínez, 2011, p. 77).

O lume fornecia calor estável e duradouro, dado que o mesmo ardia lentamente sob a forma de brasas, economizando tempo e permitindo uma cozedura lenta e apurada dos alimentos. Um fragmento de panela e alguidar que também foram encontrados neste espaço, serviam igualmente para essas atividades, a panela era utilizada para cozinhar, enquanto o alguidar poderia ser usado para preparar os alimentos e para a lavagem da loiça (Gomes, 2002, p. 37-38).

Todas estas atividades necessitavam de iluminação, assim como a deslocação dentro dos vários compartimentos da casa e por isso utilizavam-se candis e sobretudo no Período Almóada, generaliza-se o uso das candeias que eram recipientes mais abertos e lamparinas que possuíam uma base em forma de prato, servindo ambos para iluminar (Martínez, 2001, p. 160; Gomes, 2002, p. 41).

Para além dos objetos essenciais no uso do quotidiano referidos e que fazem parte da amostra na analisada, existiam também outro tipo de peças essenciais no interior das casas, como as pias para abluções, conforme demonstra o fragmento

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referido, dado que as cinco orações diárias que um muçulmano devia cumprir com os respetivos rituais de purificação, nomeadamente as abluções, podiam ser realizadas também em casa e não somente na mesquita.

Para além dos quotidianos, estas peças demonstram igualmente a riqueza dos habitantes da alcáçova, dado que para adquirir alguns destes exemplares teriam de possuir meios económicos para importar este tipo de peças com várias decorações, desde vidrados, a estampilhados, esgrafitados, reflexos metálicos de outras zonas do al- Andalus que ali chegariam por via marítima, sendo comercializados no suq e depois adquiridos por estas elites para uso no quotidiano ou meramente função decorativa. Para além destas, também havia peças de produção local, conforme parecem sugerir os dois fragmentos encontrados de taças com cordões sem qualquer tipo de vidrado, sendo esta hipótese ainda reforçada pela existência de várias ruas das olarias distribuídas pela cidade, como já vimos no capítulo anterior.

A análise do espólio, assim como da disposição das estruturas, permite lançar a hipótese daquele compartimento ser um pátio da fase Almóada, não sabemos se poderia ser um pátio do palácio do governador ou um pátio da casa de alguém dedicado às funções militares, por falta de dados mais concretos que só a análise de todo o espólio encontrado nos restantes setores poderá dar mais respostas, todavia cremos que tratar- se-á de um pátio de uma habitação de um soldado e da sua família, dado o local em que se encontra instalado, nomeadamente junto da muralha que separa a alcáçova da medina.

Esta localização permitia um maior controlo militar do local, já que seria mais fácil, dada a localização da habitação, aceder facilmente ao cimo da muralha para vigiar o inimigo. Sendo portanto, mais exequível que o palácio do governador se localizasse onde existe atualmente o Convento de Nossa Senhora de Aracoeli, onde por sua vez foram edificados o Paço da Ordem de Santiago, reaproveitando, provavelmente, partes do palácio Almóada com antecedentes Emirais e Califais, onde se inserem as estruturas descritas anteriormente, nomeadamente o salão, a casa de banho e a cozinha com o respetivo poço e lareira, tal como as estruturas de armazenamento, como os silos e as fossas sépticas.

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