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Conhecimento Tradicional Indígena: Breves Considerações

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CAPÍTULO IV: ENTRE O GERAL E O PARTICULAR: AVANÇOS E LIMITES NO

4.2. Conhecimento Tradicional Indígena: Breves Considerações

Antes de avançar nos resultados da pesquisa, convém, a luz de referenciais teóricos, rever as considerações de conhecimento tradicional, visto que o objetivo da pesquisa é verificar se acontece o diálogo entre os diferentes saberes no currículo do curso intercultural Teko Arandu.

De acordo com Bessa Freire (1992), as sociedades indígenas do século XVI, eram sociedades ágrafas, isto é, sem escrita alfabética. Dessa forma, os conhecimentos e aspectos imateriais do patrimônio cultural de cada povo eram armazenados na memória humana e transmitidos de uma geração a outra pelo que se convencionou denominar atualmente de tradição oral.

Partindo da definição de tradição oral de Franz Boas, Bessa Freire (1992) a situa como uma “autobiografia” das sociedades ágrafas, constituída pelos mitos, contos, sistemas de crença, histórias e outros relatos. É, portanto, a oralidade, o instrumento de transmissão da cultura e da história das sociedades ágrafas.

Segundo Gallois (2006), essa definição de patrimônio cultural imaterial manifesta-se particularmente nos seguintes âmbitos: as tradições orais e expressões orais, incluindo a língua como veículo do patrimônio cultural imaterial; dança, música e arte da representação tradicionais; as práticas sociais, os rituais e eventos festivos; os conhecimentos e os usos relacionados à natureza e ao universo.

Assim, “a atual conceituação de Patrimônio Cultural imaterial inclui a dimensão social, sempre presente nos saberes e fazeres, como também as interpretações e as transformações que acompanham a transmissão dos saberes” (GALLOIS, 2006, p.11).

A professora Marina faz uma importante observação, quanto ao conhecimento tradicional, ela diz: “A tradição é tão dinâmica quanto à cultura, ou seja, ela não é estática,

congelada, pois quando se congela a tradição ela se transforma em folclore”.

O conhecimento indígena sobre os ecossistemas, as relações homem-natureza e a manipulação dos recursos naturais são construídos através de incontáveis gerações, fruto de tentativas e experiências.

Num texto escrito por Jorge Terena em 1997, “A biodiversidade do ponto de vista de um ìndio”, fica claro que estes conhecimentos e habilidades não aparecem no homem de forma natural ou espontânea, ou como resultado de um evento isolado. Para ele “O conhecimento das leis que regulam a natureza e suas aplicações, é resultado de um caminho viajado não por uma única pessoa, mas de muitas, por milhares de anos, face às mais adversas condições. É resultado de acumulação milenar”.

O que se constata, é que com a dizimação dos grupos indígenas o mundo perdeu milênios de conhecimentos acumulados sobre a vida e a adaptação aos diferentes ecossistemas. As etnias indígenas que habitavam o território brasileiro, antes da presença do colonizador, possuíam distintos padrões culturais de adaptações ao meio ambiente, que também era diferenciado. Segundo Posey (1992), nesse processo adaptativo, eles

58 desenvolveram técnicas de manejo que os fizeram conviver com a natureza sem depredá-la e arruiná-la.

Uma pesquisa etnobiológica24 desenvolvida com os Kayapó de Gorotire/AM, em 1977, demonstrou o sistema de classificação dos recursos naturais em diversos ecossistemas, feito pelos indígenas. Em cada ecossistema percebido pelos índios, existe uma associação específica de plantas e animais.

Profundos conhecedores do comportamento animal, os Kaiapó sabem quais as plantas que interessam a cada animal. Por outro lado associam as diversas espécies de plantas a variedade de solo. Cada ecossistema é, por conseguinte, uma unidade coesa de interação entre plantas, animais, tipo de solo e o próprio homem (POSEY, 1992, p. 23)

Em sua sistematização do ambiente, os Kaiapó, assim como todas as demais etnias indígenas, procuram manipular os ecossistemas para maximizar a diversidade biológica e manter próximos de si os animais e plantas que mais precisam (POSEY, 1992). Pensar no futuro e manipular os recursos naturais em longo prazo são características básicas da sistematização de manejo ecológico dos indígenas.

No texto de Jorge Terena, ele deixa claro que o processo de colonização deixou consequências graves para a forma como a sociedade nacional concebe os conhecimentos dos povos nativos, e mesmo estes. Ele afirma que:

Hoje, sem exceção, tudo que é novidade na área da tecnologia vem do ocidente, e a noção de modernidade está ligada ao acesso que se tem à tecnologia. (...). Tudo que não é do âmbito do ocidente é considerado do passado (...). Vêem a tradição viva como primitiva, porque não segue o paradigma ocidental. Assim, os costumes e as tradições, mesmo sendo adequadas para a sobrevivência, deixam de ser considerados como estratégia de futuro, porque são ou estão no passado.

Aqui, entende-se conhecimento tradicional como um sistema integrado de crenças e práticas; O conhecimento sobre plantas medicinais, biodiversidade agrícola, manejo do solo, do ecossistema, não se separam dos demais aspectos da vida cotidiana, como as práticas espirituais, culturais, e cosmológicas, e esses, são compartilhado ao longo dos anos.

Assim como Posey (1986), compreende-se que o conhecimento indígena não se enquadra nas classificações e subdivisões precisamente definidas como as que a ciência ocidental tenta artificialmente organizar. Os saberes tradicionais são uma junção de plantas, animais, caçadas, horticultura, espíritos, mitos, cerimônias, ritos, reuniões, energia, cantos e danças.

Os ciclos cerimoniais – que incluem ritos específicos, em que determinados animais e plantas são representados nos cantos e danças, a fim de propiciar energia espiritual tendente a obter boas colheitas e caçadas profícuas – podem ser ordenados segundo sequencias mitológicas (POSEY, 1986, p. 15).

24 Segundo Posey (1992), etnobiologia compreende a etnobotânica, etnozoologia, etnopedologia e etnoloecologia. Nesse tipo de estudo combina-se a visão do observador estranho à cultura, refletindo a realidade percebida pelos membros de uma comunidade. É o estudo das percepções de outras culturas, classificação, uso e manejo de recursos biológicos.

59 Durante o IV Seminário Povos Indígenas e Sustentabilidade: “Saberes Tradicionais e Formação Indìgena”, realizado no Campus da UCDB em setembro de 2011, Gersem Baniwa mencionou as dificuldades de se estabelecer o diálogo entre saberes científico e saberes tradicionais. Para ele,

é preciso haver respeito aos limites do outro, pois os saberes tradicionais não são fragmentados, não seguem uma racionalidade cartesiana, eles são complexos e envolvem elementos simbólicos e religiosos, por isso nem tudo pode ser falado; é preciso criar estratégias para que os „segredos‟ indìgenas possam ser preservados durante o diálogo”25

.

Percebe-se com isso, que estas conexões entre os mundos natural, simbólico e social exigem uma abordagem interdisciplinar no estudo das diferentes culturas.

Este é um desafio que os cursos com propostas intercultural precisam enfrentar. É preciso romper a lógica colonialista, da superioridade ocidental, do etnocentrismo, da vaidade de títulos, pois foram, e são essas formulações os produtores da hierarquização dos saberes.

Hoje, há uma preocupação com a questão dos recursos naturais e a sustentabilidade. Segundos dados da ONU em 2011 a população mundial alcançou a faixa dos 7 bilhões de habitantes. O discurso passou a ser o de conservação, uso consciente dos recursos naturais, de novas possibilidades ecológicas, diminuindo, assim, a emissão de gases tóxicos na natureza, gerados na produção de bens industrializados.

Nesse momento, volta-se o olhar para as comunidades indígenas e percebe-se que se ao menos uma das lógicas desse povo, da sustentabilidade, por exemplo, tivesse sido adotada no perìodo das “descobertas” de outros povos, se tivesse acontecido a troca, não de bens materiais, como a prática do escambo26, mas de saberes, hoje não estaríamos enfrentando tantas catástrofes naturais, e incerteza de um futuro para as gerações posteriores.

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